10/07/2021

O cordeiro do sacrifício


Como acontecia frequentemente, o conselheiro Luís Galhardo almoçava nessa quarta-feira no restaurante Valadares, em Lisboa, com o seu amigo Vasco Corvelo, administrador principal do Banco Nacional de Investimentos. Falavam de negócios e saboreavam um carpaccio de lagosta, antes da chegada do linguado au meunier.

Se o Governo se decidir, finalmente, pela privatização da Caixa, é fundamental que eu possa subscrever, pelo menos, setenta milhões de ações — enfatizava Galhardo. Aparentava uns cinquenta e tal anos enxutos, o olhar decidido, as sobrancelhas negras fazendo contraste com o cabelo um pouco grisalho. — Quem entrar em força no capital do banco do Estado, fica com uma posição excecional no mercado. E um fluxo de dividendos inigualável. Nem a petrolífera é tão apetecível.

Eu sei, Luís. É um dos últimos baluartes que o Estado mantém. Todos os funcionários públicos lá têm conta. São valores baixos, mas são milhões de contas. — Corvelo tinha um perfil físico mais arredondado, o rosto rosado, um lábio inferior carnudo. — O teu problema é o aval.

Se o Estado alienar vinte e cinco por cento, convinha-me atingir uma quota de três por cento, o que deve rondar os setecentos milhões de euros.

Pode ser que aliene só dez ou quinze… — avançava Corvelo, cuja preocupação parecia ser a segurança dos empréstimos.

Hmm!, creio que irá bem acima. Repara que a dívida já é maior que o PIB. Só para os juros precisam de uns oito mil milhões.

Também dependerá da cotação por ação, na oferta pública — ponderava Corvelo, enquanto bebericava mais um pouco de alvarinho.

Elas devem valer uns dez, dez e meio — racionalizava Galhardo —, mas o Governo vai fixar um preço mais baixo, com certeza, para que a operação seja um êxito. E será tanto mais baixo quanto mais incerta for a procura previsível, claro. Convinha que o mercado desse a entender que não tem um interesse por aí além, para que o preço não suba acima dos dez.

Mesmo assim, Luís, como é que queres atirar-te para setecentos milhões? Que aval é que podes garantir?

As ações, Vasco! Só as da petrolífera estão a valer cento e oitenta milhões. Todas juntas valem mais de trezentos milhões. Não é uma garantia a cem por cento, mas, na prática, chega bem.

Valem trezentos milhões, mas em que dia e em que conjuntura? É um valor virtual, Luís. Ações não são garantia segura e os bancos evitam fazer grandes empréstimos sobre carteiras de ações, como sabes. Preferem valores menos voláteis.

Também isso da garantia é uma exigência de segurança excessiva. Achas que as ações da Caixa algum dia vão cair abaixo dos cinco euros? Trezentos milhões é mais do que suficiente.

É chato! Vou ter um trabalhão para convencer os outros administradores.

Mas, não és tu que mandas? — gracejou Galhardo.

Não é bem assim; só valho um voto. Tenho é alguma influência... Mas preciso preparar bem a argumentação. Vou ter de apresentar uns gráficos com o teu crescimento económico, e outros com os ativos que já geraste para o banco.

Vá lá! Tu és capaz. — incitava Galhardo. — E já pensaste quanto é que este negócio vai render para o teu banco, se o empréstimo vier do vosso lado?

E também tenho de contar uma treta qualquer à comissão de fiscalização da Bolsa!

A comissão quer é não ter chatices!

Às vezes, ainda me vêm uns pruridos, ainda acho tudo isto muito pouco ético — confessou Corvelo, enquanto dava mais uma garfada no linguado.

Ética… A ética não produz dividendos. A nossa missão é ganhar dinheiro para nós e para os nossos — para a nossa família, para os nossos amigos, para os grupos que fazem andar a sociedade. No teu caso, para os acionistas. E nem sempre é barato ganhar dinheiro. Não te digo quanto é que transferi para uma conta da sogra de um secretário de estado. Eu tenho para mim, desde muito novo, que a gorjeta dá-se antes do serviço e tenho-me dado bem com o sistema. Fui sempre bem servido. Tu não queres ganhar dinheiro?

Eu quero, vou fazer os possíveis para que ambos ganhemos, mas não vais sem resposta; há quem parece que não quer. Tenho um cunhado, que encontrei há dias… É gestor de uma baiuca qualquer, na indústria. Aquele homem deve viver só do trabalho dele, é impressionante. Se visses com que carro ele anda!

Por que é que não o puxas lá para o banco?

E tentei! Propus-lhe um lugar de consultor. Nem precisava de lá ir. Não quis. E ainda bem. O tipo é um bocado esquisito. Ainda me criava lá algum problema, alguma contestação, alguma fuga de informações, sei lá? Nem ele se sentia feliz a trabalhar para uma empresa que tem o investimento de risco — a especulação, como ele prefere dizer — como princípio produtor de riqueza. Há pessoas que são felizes assim, o que é que tu queres?!

Mais razão me dás! A propósito — Galhardo baixou a voz —, foste convocado para logo à noite?

É secreto… Não, não fui. Aliás, não sou um dos grandes interessados diretos; tu, sim, queres atirar-te de cabeça.

Não sei quem vai lá estar. Aliás, é indiferente. Só espero que resulte.

Tu acreditas que aquilo tem alguma influência positiva nos negócios?

Olha, eu sei é que os que lá vão obtêm graças. É curioso, é como dar gorjeta adiantada.

Era preciso que Deus, ou lá que entidade é, se deixasse subornar com sacrifícios.

Na Bíblia, dizem que sim. Deus gosta do cheiro de carne na brasa. Foi por isso que o Caim matou o Abel.

Como assim, não foi uma briga?

Ciúme! O problema é que Deus deleitou-se com o sacrifício do borrego assado do Abel; para as frutas e legumes do Caim, nem olhou. A propósito, queres sobremesa?

Corvelo olhou em volta, disfarçadamente, até descortinar o carrinho de sobremesas.

Noisettes de morango com Porto; é isso. E tu?

Galhardo soltou-se em riso.

Desculpa, lembrei-me duma coisa. Como será uma sobremesa de carne? — riu-se de novo ao gesto lúbrico de Corvelo. — Não, falo a sério. Uma empada de borrego? Um creme de cabidela? Deus bem podia ter honrado alguma fruta do Caim para a sobremesa!

Após uma pausa para mandarem vir sobremesas, voltou à conversa anterior:

Para mim, aquilo é importante, sobretudo, pela força que criamos em nós, por sentirmos que estamos certos e que Deus está do nosso lado; e por nos sabermos rodeados por amigos empenhados nos mesmos objetivos, mesmo não lhes vendo a cara, não achas? A Ação ajuda os seus filhos, como nós a ajudamos. Os membros da Ação são como irmãos, não é… irmão? Olha, venham almoçar lá à minha quinta de Sintra, no domingo, está bem? A Matilde está farta de me dizer para vos voltar a convidar. Venham, que damos uma volta pela serra. Nesta altura está toda florida e o cheiro das acácias é sublime.


Conforme ditava a convocação cifrada, Galhardo chegou às onze e meia da noite à Quinta da Dedaleira, ele próprio ao volante de um carro pequeno. Envergava um albornoz negro com uma cruz de Cristo no peito. Recolheu-se uns minutos a interiorizar o ambiente e o espírito adequados à cerimónia em que iria participar. Antes de sair do carro, colocou o capuz bicudo, também negro, onde só duas aberturas ao nível dos olhos permitiam interação com o exterior.

Percorreu uma alameda sinuosa em declive ascendente, iluminada pela lua, ouvindo apenas os próprios passos, e entrou num túnel, disfarçado por detrás da cantaria de uma fonte. Parou a adaptar a retina à escuridão. Em vão. Resolveu ligar a lanterna do telemóvel. Não havia motivo para se arriscar a tropeçar e cair. Pouco depois, ao dobrar o cotovelo existente no túnel, vislumbrou uma luz ténue vinda do poço vertical escavado na encosta e apagou a lanterna.

Desembocou num ponto intermédio da escadaria espiral embutida na parede interna do poço iniciático. Olhou para cima. A uns doze metros, via-se parte da parede do poço iluminada pela lua cheia, enquadrando o círculo de azul profundo do céu. Para baixo, escuridão. Ouviu passos que desciam da parte superior. Estava na hora. Desceu, com cuidado, os sessenta degraus que o separavam do fundo. Aí, o diâmetro do círculo de chão marmóreo não ultrapassava os três metros. Na sombra, percebeu cinco vultos silenciosos, de que só se percebia o símbolo vermelho no peito, dispostos em semicírculo junto à parede. Ocupou o seu lugar e aguardou.

Pouco depois, chegou o irmão de quem ouvira os passos e outro companheiro que surgiu da sua direita, da galeria que dava para o lago. Em breve, os seus olhos estavam adaptados à escuridão e pôde perceber uma banqueta almofadada e uma grande cruz em aspa encostada e fixada quase verticalmente à parede curva. Ali, ocorreria o ritual que — acreditava-se — desencadearia o mistério da ajuda divina para os que a invocavam. Ele tinha algumas dúvidas, algumas reticências íntimas, mas não podia dar-se à ousadia de as deixar emergir demasiado. Não tinha bem a certeza de quem controlava o quê. Havia demasiados mistérios na vida, apesar dos muitos mecanismos de domínio e manipulação que já conhecia.

No alto do poço, surgiu um halo de luz que se deslocava ao longo da escadaria, fazendo as sombras das colunas desta viajar na parede oposta. Era o cordeiro do sacrifício que chegava. Reparou que todos os irmãos olhavam na direção da luz e percebeu uma certa ansiedade. Um irmão, quase à sua frente, começou a cantar, muito baixo e grave, quase em surdina, o Agnus Dei. Galhardo não teve dúvidas de que se tratava de monsenhor Benedito, o responsável pelas aplicações financeiras do santuário. Todos responderam, nas partes “aleluia” e “digno é o cordeiro”. Pareceu-lhe reconhecer as vozes do presidente do Banco Central de Negócios e do rival e vizinho, o milionário Ricardo Van Keizer. Quando já se via que a luz provinha de um grande círio empunhado por um irmão, começou a revelar-se a forma alva que o seguia. Era uma jovem de branco, com um manto que lhe cobria o cabelo. Galhardo pensou reconhecer, no irmão guia e ofertante, o passo oscilante do ministro das finanças. Fazia sentido.

Chegados junto da assembleia, este colocou o círio num suporte elevado da parede e conduziu a jovem até à banqueta, na qual ela se ajoelhou, de mãos postas e cabeça baixa. Monsenhor, seguido por todos, foi baixando o volume da entoação do cântico até se fazer silêncio. O ofertante puxou para trás o manto da rapariga, descobrindo-lhe a cabeça e revelando uma longa cabeleira escura. Envolvendo a cabeça, uma faixa púrpura com o logótipo da Caixa Geral de Depósitos bordado ao nível da testa. Olhando para todos os companheiros encobertos, através das aberturas do seu capuz, o ofertante anunciou:

Corpo do meu corpo, sangue do meu sangue: eis aqui a escrava do Senhor!

Avé, Maria, cheia de graça! — saudou monsenhor, postado à frente da donzela. — Glorioso será o fruto do teu ventre, que gerarás para nós, para a glória de Deus.

Faça-se em mim, segundo o vosso desejo! — acedeu a inocente.

Monsenhor colocou, então, a mão direita sob o queixo da jovem, introduziu a ponta do polegar na boca dela e anunciou baixinho:

O Senhor entrará a ti e tu produzirás os frutos da tua fertilidade e saciaremos a sede no teu úbere.

O ofertante ajudou a jovem a levantar-se, conduziu-a com doçura e encostou-a à cruz em forma de X. Fez descer a faixa púrpura, de modo a cobrir-lhe os olhos e olhou, de novo, para todos os circunstantes. Num gesto suave, puxou um laço que prendia a longa túnica na zona do pescoço, soltando-a. Esta caiu ao chão, revelando o corpo nu da rapariga. Era uma mulher jovem; “da idade da minha filha” — calculou Galhardo. Os seios eram fartos e estava rapada na zona púbica. Cada um dos dois irmãos que ladeavam a cruz pegou num braço da jovem, amarrou-lhe o pulso com uma fita também púrpura e ergueu-o até ao respetivo braço superior da cruz. Os seios da jovem subiram um pouco e afastaram-se um do outro. Com meia dúzia de pancadas que ecoaram pelo espaço cilíndrico do poço, os dois confrades pregaram as pontas da fita ao madeiro. A seguir, fizeram o mesmo às pernas: afastando-as, prendendo os tornozelos com fitas e pregando estas aos braços inferiores da cruz.

A jovem mulher mostrava-se dócil e submissa. Ofereceu, em voz suave:

Tomai e comei; este é o meu corpo!

Monsenhor aproximou-se de punhal em riste. Parou junto ao cordeiro da imolação, contemplando o seu corpo indefeso. Ergueu o punhal apontando-o ao pescoço, enquanto a mão esquerda segurava o queixo virado para fora, e susteve-se. Galhardo pensou reconhecer a mesma posição em que já vira representado Abraão sacrificando o seu filho Isaac, no momento em que um anjo interveio e evitou o sacrifício. Parecia que monsenhor estava a dar tempo ao anjo para intervir. A jovem inclinou mais a cabeça para a sua direita, oferecendo o pescoço branco.

Galhardo conhecia a jovem, das suas ligações mecenáticas à arte. Era artista de performance e já trabalhara várias vezes para a Ação. Ela e o marido cobravam uns poucos milhares de euros por uma sessão destas, sigilo incluído. Monsenhor encostou o punhal ao pescoço da jovem. Sob a lâmina surgiu um fio de sangue. Monsenhor fê-la deslizar em torno do pescoço nu, pressionando o botão que expulsava do recipiente do cabo sangue de galinha. Grossos veios vermelhos escorreram do pretenso golpe no pescoço unindo-o ao baixo-ventre e escorrendo pela face interior da perna direita, qual gargantilha de múltiplos pendentes longos e sangrentos. O sacrifício estava consumado. A jovem, em voz baixa, voltou a sussurrar:

Este é o meu sangue. Tomai e bebei!

Seguiu-se a fecundação ritual, por cada um dos oito comensais. Monsenhor aproximou-se, abriu o albornoz, agarrou os pulsos do cordeiro e encostou o corpo nu ao da vítima. Fez um movimento para a frente com a pélvis, exclamando:

Abundante seja o fruto do teu ventre!

Galhardo foi o penúltimo. Sentiu a tensão suave do peito da jovem a ceder ao peso do seu, sentiu os sexos encostados, viu à frente dos seus olhos o símbolo de três letras do corpo financeiro desejado. Um início de ereção manifestou-se. Fez o movimento ritual.

Abundante seja o fruto do teu ventre! — completou monsenhor.

Pouco depois, descia a figura arcangélica, pela escadaria. Era alto, de cabelos louros ondeados. Envergava um longo manto de brocado em tons de amarelo e vermelho. Na mão direita, um cetro da Ação, no ombro esquerdo, uma pomba de rabo de leque branca. Aproximou-se da mulher; a pomba voou para a cabeça da escolhida. O delegado da Ação soltou o manto, revelando o corpo nu, musculado e ginasticado. Adotou a mesma posição que os irmãos, havia pouco, executando suaves enleios das ancas. Monsenhor começou a cantar “Forte, forte é o Senhor”, acompanhado por todos. Pouco depois, o enviado penetrava o corpo exposto da eleita, manifestando ritmadas e enérgicas contrações dos glúteos. A assembleia em semicírculo, arrebatada, mantinha uma atenção intensa. O ato não durou mais de minuto e meio. O corpo cansado quedou-se em comunhão física com o corpo do desejo, o rosto tombado no seu ombro. Monsenhor retirou um círio aceso e, ainda cantando, dirigiu-se para o exterior, pela caverna do lago, seguido pelos outros irmãos, em fila cerimonial.


No dia seguinte, Galhardo tomava o pequeno-almoço no alpendre quando recebeu uma chamada do seu amigo Corvelo:

O Governo anunciou agora que vai privatizar vinte e cinco por cento da Caixa ao preço de oito e meio cada ação. Parabéns! Sempre vais conseguir levar a tua avante!

Hurra! — rejubilou Galhardo. — Não vejo a hora de pôr as mãos naquele banco! Agora só dependo de ti para conseguir o empréstimo.

Fica descansado; já comecei a tratar de tudo. Penso que para a semana já tenho notícias para ti. Boas, com certeza!

Ótimo! Outra coisa, já falaste com a tua mulher por causa do almoço de domingo?

Sim, sim! Ficou muito agradada com o convite. No domingo, lá estaremos para o almoço, com todo o gosto. Cumprimentos à Matilde.

O almoço constituiu um ensejo de maior aproximação dos amigos e também das suas esposas. Tantos interesses comuns elas encontraram que combinaram um salto de uma semana a Nova Iorque, para ver umas peças na Broadway, e para compras, claro.


Conforme tinha prometido, Corvelo tinha um empréstimo de setecentos milhões aprovado pela direção do Banco em menos de uma semana. A assinatura do contrato fez-se na sexta-feira, de manhã, na sede do banco de Corvelo, desculpando-se este com a insuficiência da garantia para a taxa de juro ser um ponto mais alta que o esperado pelo amigo. Galhardo compreendeu e aceitou, admitindo para si que até daria mais, desde que isso lhe permitisse aceder a uma fatia da Caixa. Em privado, revelou a Corvelo:

Quero agradecer-te por este empréstimo e pelo esforço que fizeste para o conseguir. Para te mostrar quanto estou reconhecido, quero convidar-te para uma sessão especial de que vais gostar, tenho a certeza. Eu depois confirmo as datas. Não marques nada para aqueles dias em que a Matilde e a Zizi estiverem para fora!


Na tarde do dia seguinte, um dia quente de princípio de primavera, Galhardo ligou para a rapariga da performance no poço iniciático:

Como está, menina Paula? Não me conhece, ou antes, nunca nos falámos, mas eu sei que faz performances especiais, para grupos muito selecionados. Foi uma pessoa altamente colocada que me deu o seu número. Estou a ligar-lhe, exatamente, para saber se está disponível para uma performance temática, deste sábado a oito dias, numa quinta em Sintra.


A primavera passou lenta e majestosa pela quinta de Galhardo e por toda a serra de Sintra. Impercetivelmente, os mantos amarelos das acácias deram lugar a matizados de castanho e verde profundo e as brisas de odores adocicados trazem agora cheiros sensuais de feno e madeira.

Correu bem a escapada a Nova Iorque de Matilde e da nova amiga. Voltaram radiantes e dispostas a outras aventuras por outras capitais de compras. Correu bem a escapadela de Galhardo e do amigo na recriação do episódio bíblico de "Susana e os Velhos". Ficaram com vontade de aprofundar o estudo da Bíblia e selecionar outros episódios inspiradores.

Correu bem a privatização parcial da Caixa. O Estado encaixou quase seis mil milhões, o que permitia ao Governo aliviar por algum tempo o garrote inexorável da dívida. Correu bem a Galhardo a aquisição de ações da Caixa, apesar do receio de que os investidores estrangeiros, nomeadamente os fundos de pensões americanos, entrassem em força na operação, mas o Governo reservou dois terços do alienado para os investidores nacionais. Galhardo, sozinho, subscreveu e obteve os setenta milhões de ações que pretendia, pelos quais pagou seiscentos milhões. Nos primeiros quinze dias, o preço por ação manteve-se a subir, confirmando os palpites otimistas de Galhardo que aproveitou para acumular, aplicando os restantes cem milhões do empréstimo que ainda não tinha usado.

A partir daí, não correu tão bem a investida acionista de Galhardo. Devido a investimentos ruinosos do banco que suportava o seu rival Van Keizer, tornou-se claro, ao longo da primavera, que esse banco corria o risco de falência. Dizia-se que os administradores eram apenas homens de mão de Van Keizer para esvaziar o banco, desapossando liminarmente os depositantes. Acontecia que alguns dos maiores depositantes eram organismos do Estado, atraídos por juros muito tentadores e pelo prestígio de sucesso de Van Keizer. Assim sendo, o Estado, na posição desconfortável de perder milhares de milhões se o banco falisse, resolveu nacionalizá-lo, assumindo os prejuízos, mas tomando em mãos a gestão do banco para não perder tudo o que lá tinha metido por interpostos organismos. Argumentou com o perigo de uma derrocada geral do sistema financeiro do país, mas Galhardo pensou que o facto de Van Keizer pertencer à Ação também teria pesado na decisão do Governo, embora nada mais pudesse fazer que conjeturar.

As perdas do banco nacionalizado eram bem maiores do que a princípio se pensou e, aos poucos, todo o encaixe que o Estado tinha realizado com a privatização de parte da Caixa foi metido no banco de Van Keizer. Na verdade, as perdas repercutiram-se nos outros bancos, o que fez cair as cotações das ações de todos. As da Caixa não foram exceção, caindo em três meses para menos de seis euros. Dadas as dificuldades gerais e da Caixa em particular, esta decidiu não distribuir os dividendos previstos para esse ano. O que tinha custado a Galhardo setecentos milhões valia agora menos duzentos e cinquenta, sem qualquer retorno. A sua garantia de trezentos milhões, que tinha parecido ser mais que suficiente, levou um rombo, quando também as ações da petrolífera caíram, devido à instalação próxima, no Alentejo, de uma fábrica de produção em massa de carros elétricos.


Desta vez foi Corvelo que convidou Galhardo para almoçar. Ainda antes de chegar o rosbife à hortelã, Corvelo encetou o assunto quente:

A tua posição é insustentável, tens de reconhecer. Acho que desta vez arriscaste de mais. Estou a ser pressionado por toda a administração e não há outra volta a dar, senão executar a tua garantia, para cobrir as perdas.

Eu sei que a coisa está feia, mas não achas que a Ação me podia dar uma mão, como deu ao Van Keizer?

É também por isso que tinha de falar contigo. O principal diz que tem de haver sacrificados, alguém que possa ser apontado como culpado. Usou especificamente o termo “cordeiro”. Ele acha que deves ser tu, por jogares um bocado fora do grupo.

Cordeiro!” Galhardo sentiu-se encurralado. O ímpeto predador de há poucos meses estava agora transformado em docilidade impotente.


No dia seguinte, compareceu à reunião convocada pelo banco de Corvelo. Uma dúzia de olhos severos anunciou-lhe que iam executar a garantia e tomar posse das ações da Caixa, que Galhardo subscrevera, dado que, tudo junto, mal dava para cobrir o empréstimo, sem falar nos juros. Que era só assinar um molho de papéis que lhe puseram à frente.

A sala de reuniões do nono andar era grande e estava desagradavelmente fria, devido ao ar condicionado. “Lá fora, o ar está morno”, pensou. Vistas de cima, as árvores do parque fronteiro pareciam colchões, fofos e penugentos. Juntou o maço de papéis que os abutres tinham posto à sua frente, bateu-os, alisou-os, avaliou a sua leveza, o seu volume e dividiu-os em dois molhos iguais, um em cada mão. Estava a poucos metros da janela; podia tornar-se um Ícaro dos tempos modernos, se quisesse. Queria? Teria coragem?

O toque de um telemóvel distraiu-o momentaneamente dos seus pensamentos. Corvelo atendeu, ouviu durante uns segundos e deixou escapar:

Forte é o Senhor!


Quinze dias depois, na sua quinta de Sintra, Galhardo, reconhecido e já recuperado dos momentos tensos que tinha vivido, oferecia ao ministro uma performance temática — "O rapto de Perséfone". A mitologia grega também era interessante.

Joaquim Bispo

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Este conto, de 2010, obteve o 7º lugar no Concurso Literário Osório Alves de Castro, da UFOB — Universidade Federal do Oeste da Bahia , Brasil, em 2016.

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Imagem: Josefa de Óbidos, Cordeiro Pascal, c. 1680.

Basílica dos Congregados, Braga.

Foto: Didier Rykner

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10/06/2021

A transmutação

 


Quando Cacilda deu por si, após um
curto período de sensação de irrealidade, percebeu que se transformara numa árvore do jardim em frente de sua casa.

Permaneceu de braços levantados, curiosamente sem esforço, e pernas bem metidas na terra, como quem tem medo de se mexer em uma situação de perigo. Não conseguia discernir sons nem imagens, mas a agitação do ar trazia-lhe muita informação óbvia e outra que ainda não sabia bem interpretar. O mesmo acontecia às subtis vibrações do solo que lhe faziam tremelicar as pernas.

«O que terá acontecido?», surgiu na nebulosa da sua consciência, o que lhe transmitiu um instante de confiança, por, ao menos, perceber que dispunha dessa capacidade de controlo de si. «Talvez tenha tido uma quebra de tensão quando me levantei. Ou já estava a tomar banho? Não me lembro.»

Era uma chatice, de qualquer modo: entrava às 10 no supermercado e não estava a ver como podia chegar a horas. Felizmente que no início do dia havia poucos clientes e talvez as colegas conseguissem aguentar o serviço sem grandes complicações. Mas do raspanete da chefe não se ia livrar.

Avaliou a situação com detalhe. Era mais do que as pernas o que tinha enterrado. Percebeu a pressão da terra até ao alto da anca, o que um leve roçar das ervas veio confirmar. Para baixo, era humidade e tensão firme. E uma certeza de imobilização. Para cima, secura, agitação do ar e vibração luminosa. Com esta vibração vinha um conforto de ganho de energia. Não enchia quaisquer pulmões, mas a sensação de plenitude respiratória era real.

«Estou com a pele muito rugosa», percebeu. «As partes da barriga e do peito estão bem escamosas. Peito, salvo seja. Está mais espalmado do que quando me deito de costas. Só se forem aquelas elevações junto à confluência dos braços mais baixos. Caramba! Se tiver de aplicar cremes a este corpanzil todo, tenho de trazer a prateleira inteira», gracejou.

Percebeu o carro dos do 3º andar a arrancar. «Ainda bem que não me viram.» Pouco depois, a vizinha da cave a passear o cão. «Se se aproximar, é capaz de reconhecer a tatuagem em forma de coração que tenho ao fundo das costas... Não, acho que nem olhou. E se o cão me vem urinar ao troço… Faço o quê? Atiro-lhe com umas pétalas? Nem sequer ainda tenho vagens rijas… Ai a minha vida!»

Percebeu pela primeira vez o toque múltiplo do que deveriam ser insetos. O primeiro pensamento foi de incómodo, mas pouco depois toda aquela azáfama por sobre o seu corpo, se lhe podia chamar isso, tornou-se confortável e até sensual.

«Sensual, como? Aonde fui buscar esta ideia?», admirou-se. Então percebeu que o seu sexo estava distribuído por uma miríade de pontos do seu corpo, onde as abelhas se atarefavam na recolha de pólen, o que lhe transmitia múltiplas sensações de regozijo. «Devo estar a fazer uma linda figura, de múltiplos braços no ar a agitar pequenos sexos coloridos, entusiasmada com os toques de quem chega, entra, deixa sémen de outras árvores que nem sequer conheço e se vai embora sem um beijo de despedida...» Sorriu-se com o próprio gracejo, mas duvidava que algum outro ser o tivesse notado.

Ser caixa no supermercado era muito cansativo e mal pago, mas tinha essa particularidade de permitir o contacto com muitas pessoas. Durante uma jornada de trabalho trocava palavras, sorrisos, olhares e toques de mãos com dezenas de mulheres e homens. Desde os “gatões” aos “velhadas”.

Fora lá que conhecera o último namorado, da lista que já ia longa e mal sucedida. Na entrega do troco em moedas, um desacerto de gesto provocara um choque de mãos. Houvera risos e troca de gracejos e um toque final de mãos bem mais carinhoso. Ele devia ter gostado, porque quando voltava procurava sempre a caixa dela. E voltava cada vez com mais frequência. Enfim, o costume, em tudo. Ao fim de uns meses a viverem juntos, arranjou uma desculpa esfarrapada de que precisava de espaço. «Espaço… Ele é que devia estar aqui para sentir o que é falta de espaço para as pernas.»

«A esta hora já deram pela minha falta. Vou ter de inventar qualquer coisa com a saúde da minha mãe. Lá se vai um dia de salário! E se isto se prolonga? Quem virá à minha procura? Não será a minha mãe, com certeza, que fica pesarosa quando não lhe atendo o telefone, mas mal sabe onde moro. E os ex-namorados foram de vez.»

Com o avançar do dia e do calor, os festões olorosos de flores brancas, pendentes dos múltiplos ramos da acácia bastarda em que Cacilda se transformara, eram uma atração irresistível para muitas dezenas de abelhas e besouros. Ela não lhes resistia, antes se expunha, num deleite físico de entrega à orgia que os insetos representavam. Nunca se entusiasmara com a ideia de ter sexo com mais de um homem, mas certa vez acontecera. Não gostara. A ilusão de excitação acrescida gorara-se em grande medida. Era muito membro para dar atenção, muito físico e pouca alma, egoísmo a dobrar.

«Será que vou passar aqui a noite? Deve estar frio.» A noite foi estranha. Com o entardecer veio uma espécie de sufocamento. As folhas já não recebiam luz, já não lhe transmitiam energia. Teve medo. Então, paulatinamente, recomeçou a “respirar” com conforto, expirando o que a estava a entupir. Frio não sentiu muito, só um ténue encarquilhamento das folhas. Deixou-se entorpecer, num sossego de que tanto precisava.

O novo dia trouxe-lhe a perceção ténue, fluida, da absorção que se produzia nos recônditos que os seus membros inferiores alcançavam. E a primeira ideia de imobilidade subterrânea também era falsa: impercetivelmente, as suas extremidades tateavam, sondavam e deslocavam-se milimetricamente para a humidade. E bebiam. «Ali, pelo menos, a pele deve estar bem hidratada.» E quando a orgia floral recomeçou, intuiu claramente os movimentos ínfimos que se produziam dentro das suas corolas. E esse conhecimento trouxe-lhe uma alegria que nunca tinha podido sentir — a de que ia ser mãe.

Percebeu a evidência do processo de chegada dos frutos. Daí a uns dias, não podia ainda calcular quantos, ia “parir” vagens cheias de sementes. Era de uma grande ironia o que lhe estava a acontecer. E de certo modo trazia algum consolo às injustiças da vida. Muitas vezes, da janela do seu 2º andar, contemplara a acácia e lamentara a sua imobilidade forçada. Mas, talvez, algumas vezes lhe tivesse invejado a exuberância de flores e frutos, inconscientemente, pelo menos. Ia gerar centenas de filhos, poucos meses depois da constatação dramática de que lhe tinha cessado o período. E não cessara por estar grávida, que já não estava com um homem havia quase um ano. «Nem tudo é mau», alegrou-se.

As lembranças e conjeturas que lhe acudiam, trouxeram-lhe, no momento, uma suspeita assustadora: «E se tudo isto não passa de imaginação, de ideias na minha cabeça? Será que estou à janela a imaginar que sou uma acácia? Lembro-me de, há muitos anos, ter andado “cismática”.» Assim, explicava-se a sensação de irrealidade que experimentara antes de se ver transformada na acácia. Concentrou-se na hipótese, mas daí a pouco pareceu-lhe tão ou mais bizarra do que a própria transformação. «Mais provavelmente sou uma acácia que pensa que pode ser uma mulher na janela do 2º andar a imaginar-se acácia», riu-se, o que, desta vez, transmitiu uma ténue agitação a algumas das suas folhas. De qualquer modo, não havia como saber. Esta constatação foi o primeiro passo do necessário processo de habituação ao seu estado e de aceitação da ideia.

Com a chegada do verão e das cigarras a fazerem vibrar o ar que envolvia o seu corpo carregado de vagens pendentes, como uma mãe cheia de filhos, mais do que resignar-se à sua condição, abraçou-a com todos os ramos da sua fronde.

Joaquim Bispo

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[Esta é a minha humilde homenagem a Kafka e à sua obra “A Metamorfose”, publicada há pouco mais de 100 anos, e que se tornou uma das mais importantes obras de referência da Literatura contemporânea.]

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Em 2016, este conto recebeu uma Menção Especial «pelo seu realismo mágico e muita criatividade» no Concurso Literário da AFEMIL — Academia Feminina Mineira de Letras —, Belo Horizonte/MG, Brasil.

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Em 2017, a professora Margarida Moreira promoveu a adaptação do conto a vídeo [publicado no youtube, mas já indisponível], realizando uma curta metragem com colegas e os seus alunos de Multimédia B, na Escola Secundária Dr. António Carvalho Figueiredo, Loures.

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Em 2021, foi um dos selecionados para a 27ª edição (maio/junho de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 121 a 124).

https://drive.google.com/file/d/1iC5r0e0noWjnN_K_w1cfs8qtMaUvEwcl/view

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Imagem: Gustav Klimt, A Árvore da Vida, 1909.

Museu de Artes Aplicadas, Viena, Áustria.

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10/05/2021

A insuspeita sensualidade da massa

 


A razão porque os homens não são vistos mais vezes na cozinha a preparar rissóis, pastéis de massa tenra, filhós, pizas, folhados é, provavelmente, porque ainda não descobriram as virtualidades sensuais da manipulação das massas.


Roberto não acolheu com muito entusiasmo a determinação da mulher de que nesse ano iriam passar o Natal com os pais dela, numa aldeia perdida das Beiras, mas um par de horas antes do almoço de dia 24 já estavam junto da mãe de Vanda a vê-la amassar as filhós.

Juntava o fermento dissolvido em água morna à farinha peneirada, que formava um grande monte a um lado da masseira, e ia misturando pouco a pouco o azeite morno e as três dúzias de ovos batidos. Quando a massa parecia muito lassa, juntava mais umas mancheias de farinha; se começava a ficar pesada e difícil de manipular, acrescentava mais líquidos ― ovos, azeite, sumo de laranja, aguardente. Por fim, vinho do Porto.

Dona Rosália metia os punhos fechados dentro da massa, com energia, ora um ora outro, pegava numa ponta esparramada de um lado e dobrava-a por cima do resto, voltava a empurrar e a esmurrar, voltava a repuxar pontas para o meio, num sovar diligente e enérgico.

Os seios fartos dançavam-lhe por dentro das roupas grossas, cobertas pela eterna bata de florinhas, num ondear marcado pelas marés da massa a que Roberto não era indiferente.

A operação parecia uma luta deleitosa, sem fim nem propósito utilitário, mas aos poucos a pasta lisa, carnal e maleável como barriga de mulher, ia crescendo a um lado da masseira. Mais um pouco de azeite sobre aquela nudez macia recordou-o de um jogo erótico com a mulher, que uns anos antes acrescentara um pico de excitação ao momento.

«Havemos de experimentar com ovos batidos…», decidiu, sugestionado.

Por fim, misturados todos os ingredientes nas quantidades intuídas, o bolo, polvilhado com uma última capa de farinha, rotundo, alvo e sensual como nádega de mulher, foi acomodado a um lado por Dona Rosália, coberto com panos e um cobertor, para manter a tepidez necessária para a massa levedar. Por baixo da masseira, uma braseira acesa.

A irmã de Vanda e o marido só chegaram depois de almoço. Roberto gostava deles, por razões diversas: Miguel era um companheirão, sempre disponível para uma piada picante; Cláudia, um doce.

Ao fim da tarde, com a massa das filhós quase a transbordar da masseira, reuniram-se todos na cozinha velha ― um espaço que mantinha uma lareira antiga semicoberta por uma chaminé de grande tiragem. Na pedra do lar, vários cavacos acesos a aquecer uma caldeira de cobre, meia de óleo, sobre uma trempe.

Curioso por experimentar, Roberto ofereceu-se para tender as filhós. Sentado num banquinho baixo perto da caldeira, com uma tábua de cozinha sobre os joelhos, separava um punhado de massa, de um alguidar para onde tinha sido transferida, rolava-o nas mãos a formar uma bola e esticava-o com os dedos sobre a tábua até conseguir obter um círculo de uma grossura uniforme de menos de um dedo e um palmo de largura. Então, com uma serrilha, aplicava ao interior uns cortes em ziguezague, para uma fritura eficaz, como era tradição, e largava a filhó suavemente no óleo fervente.

Do outro lado do alguidar, a cunhada também tendia. Miguel com um espeto geria a fritura e tirava do óleo as filhós já fritas. Vanda distribuía-as por cestinhos e caixas, enquanto Dona Rosália as polvilhava com açúcar e mantinha as crianças longe do lume e do óleo quente, deixando-as também pôr o açúcar. O Senhor José, o patriarca, ia administrando o fluxo de lenha, para manter uma chama contínua, mas não excessiva.

O primeiro contacto de Roberto com a massa foi uma surpresa. Não estava habituado àquela deliquescência oleosa e a sensação de mãos sujas retraiu-o. A maleabilidade sugestiva foi a primeira sensação estimulante. Depois, a textura e a densidade carnais tomaram conta dos seus sentidos. A massa macia e moldável transmitia às terminações nervosas das suas mãos sensações de grande carga sensual. A ilusão de tocar e manipular partes de um corpo feminino era muito real e perturbadora. Como bola, a massa dava a ilusão de seio, macio e deformável; como superfície, lembrava pescoço, barriga, interior de coxa. Os sentidos sabiam-se enganados, mas rejubilavam, alucinados.

Enquanto manipulava a bola de massa entre as mãos, permitiu-se imaginar que metia as mãos por dentro das roupas da cunhada, ali mesmo ao lado, e tocava, agarrava, apertava-lhe os seios, fiado na incapacidade de ela e os circunstantes lerem o pensamento. Esta impunidade furtiva acrescentava um patamar de excitação ao seu desatino. Alguma coisa no seu corpo se inteiriçou. Felizmente, a tábua de estender as filhós protegia-o de maiores embaraços.

As pessoas não conseguem ler os pensamentos umas das outras, mas estão muito habituadas a ler os pequenos sinais da linguagem corporal. Talvez o cunhado de Roberto lhe tivesse notado a respiração mais apressada ou algum esgar mais libidinoso no rosto, ou talvez já conhecesse as delícias da manipulação da massa. Ao vê-lo entretido com a bola de massa entre mãos, provocou, irónico e risonho:

Essas são boas, mas eu gosto mais das outras!

Roberto sentiu que fora descoberto e temeu corar, mas logo resolveu assumir:

Claro, as outras é que enchem a alma. Mas mais vale uma destas nas mãos que duas das outras... na caixa… ― concluiu, rindo.

Todos pareceram perceber e riram animadamente, exceto as crianças, sempre atentas:

Eu também quero das outras ― clamaram ambas.

Ah, vocês querem das outras filhós com aguardente? Ainda não têm idade ― trapaceou Dona Rosália. ― Mas arranjo-vos algumas com canela.

Estava lançada a brincadeira brejeira. Pouco depois, Cláudia, com uma expressão maliciosa, produzia com a massa um rolo, em vez de uma bola. As chalaças marotas não se fizeram esperar, a que não faltou a clássica demonstração da flacidez, sempre risível, que a massa ilustrava na perfeição.

Esta não vai lá, nem que lhe faça umas festinhas ― gracejava, enquanto elevava e exibia a evidente “disfunção erétil crónica” do pedaço cilíndrico de massa.

Então, meninos! Hoje é noite de Natal… ― reclamava a matriarca, pouco à-vontade com tanta brejeirice à frente dos genros e das crianças.

Mas o ambiente era de pândega descontraída. Roberto prosseguiu, sugerindo carícias preliminares, ao estender as filhós. A frequente necessidade de abrandar a massa, molhando as pontas dos dedos em azeite, acrescentava realismo às manobras lascivas. Em crescendo, encontrou relações sugestivas entre os cortes da serrilha e alguns aspetos da anatomia íntima feminina:

Esta tem os lábios em ziguezague. Se calhar, dá dentadas. Agora, morde; agora grita! Agora, morde; agora grita... ― ria, visivelmente divertido, espicaçando o cunhado.

Mostra, tio, mostra! ― pediam as crianças, curiosas.

Roberto correspondeu, mimando uma bocarra, com a filhó aberta a meio:

Fujam, que esta é das famintas e vai-vos comer!

Miguel, entretanto, aceitou o repto malicioso de há pouco, retirando da caldeira uma filhó suspensa do espeto pela “anatomia íntima”.

Esta até ficou tesa, quando viu um espeto de meio metro!

A brincadeira e a correspondente risota prosseguiram até que a massa no alguidar se esgotou. Era altura de lavar e arrumar tudo e de saborear as filhós com calma. Estavam divinais!

Depois do bacalhau e das couves do jantar, foram ver a fogueira ao largo da igreja e voltaram para distribuir as prendas, pois já ninguém aguentava as crianças. Antes do deitar, aconchegaram o estômago com mais umas filhós e uns copinhos de jeropiga. Era um remate perfeito.

O patriarca da família estava intimamente feliz. Não era todos os anos que conseguia ter toda a família junta. Já deitado, percebeu gemidos abafados vindos de dois pontos distintos do casarão familiar. Música para os seus ouvidos. Chegou-se a Dona Rosália, amoroso, insinuante, atiçado.

O que é que te deu hoje, Zé? ― fingiu reclamar ela.

Acho que é das filhós! ― sussurrou vaidoso, mentindo com toda a sonsice que a ocasião exigia. ― As tuas são as melhores ― acrescentou, fazendo deslizar os dedos ávidos pelas sinuosidades da massa que tão bem conhecia, pronta a ser amassada.


Joaquim Bispo

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Imagem: Moniz Pereira (1920–1989) [pintor; cenógrafo na RTP], [Título ainda não encontrado], 1980.

Sindicato dos Trabalhadores das Telecomunicações, Lisboa.

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Este conto integra a coletânea Boas Festas — Antologia de Natal, Silkskin Editora, Lisboa, 2015, coordenada por Isidro Sousa [falecido há poucos meses].

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10/04/2021

O crítico de Arte

 


Vou a esta!”, decidiu Carina, acentuando a decisão com um círculo a esferográfica sobre a informação da Agenda Cultural. “Uma palestra sobre aspetos da Arte pelo Sandro Delvaux só pode abrir horizontes mentais. O tipo é um crânio”, pensou, evocando a imagem vertical, ao mesmo tempo sóbria e sofisticada, do crítico de Arte.

Carina é uma dessas jovens mulheres suficientemente maduras para terem feito uma qualquer licenciatura e encetado uma carreira profissional, e suficientemente inseguras por não terem definido um rumo para a sua vida, quer por indecisões próprias, quer pelas circunstâncias. Um namorado que nunca mais ganha vontade de assentar não ajuda. Um dia, a impaciência suplanta a compreensão e o namorado desaparece ou é corrido, como sucedeu com o de Carina. A partir de então, ela vive nesse limbo que tem tanto de espera angustiada como de gosto reganhado de uma liberdade cada vez mais assumida e fruída.

Tem um pequeno grupo de amigas, também de trinta e pouco anos, que convida à vez para ir ao cinema, às compras ou a eventos culturais, conforme a propensão prevalente. Talvez por tê-la convidado em cima da hora, a amiga Sónia declinou o convite “com pena”, pelo que Carina resolveu-se a ir sozinha à palestra no Centro Cultural. Foi cedo, diretamente do escritório, e sentou-se na terceira fila. A primeira estava reservada para convidados e os emproados gostam de se sentar logo a seguir.

Como esperava, Delvaux fê-la aperceber-se de aspetos, no campo da Arte, em que nunca tinha pensado. Aliás, perguntou-se, como teria sido possível ela — que embora adorando Arte, vinha de Letras —, discorrer por si própria que um colecionador, na sua obsessão de juntar objetos belos e de valor, é, em geral, tomado por uma atitude mental de carência, de reminiscência de períodos em que queria ter mais objetos e não pôde, em que queria afagos e não os teve, de uma baixa autoestima, em suma? Ou que é possível detetar falsas pinturas renascentistas só pela análise dos anéis da madeira em que foi pintada? Além disso, a figura do crítico impunha-se não só pela assertividade das declarações, mas também pela imagem límpida: um rosto impecavelmente barbeado a harmonizar-se com o crânio rapado. De roupa, a habitual t-shirt negra, sob um casaco igualmente negro. Uma coerência. A frase final — “A Arte é, por isso, a atividade humana que persegue e explica a nossa vontade de divino” — resumia muito do que fora dito.

Quando terminaram as palmas, Carina sentiu que queria aproximar-se dele, embora só tivesse admitido que devia agraciá-lo com umas palavras pessoais de apreço, com o pretexto de pedir um autógrafo, mas não foi fácil: outras circunstantes também deviam ter sentido apelos de agradecimento, porque se juntaram várias à volta do palestrante. Por fim, a sua figura esbelta de morena chamou a atenção do mestre, que lhe fez um sinal para avançar. A proximidade fê-la temer algum titubeamento, mas a segurança de Delvaux transmitiu-lhe calma. Enquanto ele rabiscava um autógrafo expressivo e esteticamente equilibrado no folheto da palestra, Carina lançou algumas palavras que não tinha preparado, mas que transmitiam bastante do que sentia:

Professor, adorei ouvi-lo. Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados e senti-me num estado de graça tal, como quando ouço As Quatro Estações de Vivaldi.

Pensou ter-se excedido, quando Delvaux levantou os olhos para ela e foi como se se tivesse feito um grande silêncio. Os olhos dele, negros e brilhantes, transmitiam um misto de ternura e comoção, mas também uma curiosidade alienígena. Fixaram-na por um momento, enquanto, impercetivelmente, um sorriso se juntava à ternura do olhar.

Apetece-lhe um café? — soltou Delvaux, num tom de voz doce, mas que não deixava lugar a escusas.

Carina assentiu emocionada e tanto mais embaraçada quanto lhe parecia que o convite excedia em muito as palavras pronunciadas.

Quando Delvaux conseguiu livrar-se do resto do envolvimento festivo da palestra, sentaram-se no pequeno bar do Centro, mas ainda interrompidos esporadicamente por admiradores retardatários. Tanto por essa falta de sossego na conversa, como pela curiosidade que Carina manifestou pela pintura de Delvaux, de que ela não desconfiava, combinaram um encontro para a semana seguinte no ateliê do crítico.

Agitada, ligou a todas as amigas a contar a experiência surpreendente que tivera e o encontro que prometia ser excitante intelectualmente. O resto se veria.

O Delvaux? Uau! Esse tipo é lindo — reagiu Sónia, sem conseguir esconder uma ponta de inveja.

Sabes o que eu lhe disse, a abrir? “Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados.” Eu nem queria acreditar.

Estás muito atiradiça, mulher! Vai-te a ele!

Sónia, ele tem quase cinquenta anos… Eu só me deslumbrei pela cabeça dele — desvalorizou Carina, mentindo com todas as frequências do telemóvel.

Passados uns dias, porém, o entusiasmo expectante foi esmorecendo, à falta do contacto prometido. Duas semanas foi o limite tolerado por Carina. Entre a semi-humilhação e a irritação pela sedução negligenciada, Carina resolveu-se a procurar o crítico e a fazer-lhe notar a indelicadeza, difícil de perceber num homem impecavelmente atencioso. “Talvez esteja doente”, pensou, desejando que “antes isso”.

Descobrir a morada do ateliê não foi difícil e umas informações cruzadas em páginas de Facebook deram-lhe pistas das horas em que Delvaux costumava frequentar o local de pintura. No dia seguinte, de tarde, com uma dispensa no escritório para “obrigações legais”, procurou o “desaparecido”.

Delvaux estava bom, aliás, demasiado bom, o que desarmou qualquer resquício de retaliação que Carina ainda mantivesse. Delicado, insinuante, desculpou-se com um apagamento involuntário do número de Carina. O ateliê eram duas assoalhadas na zona da Bica. No “quarto” instalara Delvaux um pequeno escritório onde provavelmente elaborava a parte ensaística do seu trabalho. A “sala”, uma divisão de uns 3x5 m, também ainda com soalho de madeira, era usada como acanhado estúdio. A um lado, encostavam-se dezenas de telas, frente a um cavalete que recebia luz da janela, à esquerda. Ao lado desta, um espelho de “corpo inteiro”. A toda a volta da divisão, ao nível dos olhos, uma boa dúzia de autorretratos, vários ainda a manifestar outra estrutura capilar do artista.

Só faz autorretratos, professor? — foi a pergunta mais neutra que Carina conseguiu produzir, estupefacta com tão inesperada galeria.

Não, não! Pinto muitos outros géneros, mas este tem a vantagem de me proporcionar um modelo à mão, a qualquer hora, de graça — asseverou, sorrindo.

Mas só tem aqui autorretratos…

É que estes não se vendem; são para consumo próprio — acentuou Delvaux a ironia, com uma gargalhada.

São muito interessantes. Parece um álbum fotográfico. Usa-os como outras pessoas usam fotografias na estante ou em cima da cómoda?

Não exatamente. Repare, um autorretrato é também um exercício de autoconhecimento. Por exemplo este — apontou uma imagem abertamente expressionista, ainda com uma frondosa cabeleira negra — mostra o jovem com pouco tempo de Belas-Artes, cheio de vontade de inovar, um pouco revolucionário até. Veja o brilho no olhar aberto e luminoso. O tratamento plástico ilustra na perfeição o meu estado de espírito de então.

E mantém-no aqui desde essa altura?

Sim, ajuda-me a não me esquecer dos meus sonhos de jovem. Nele, espreito-me nesse tempo, como o meu olhar perscrutava a minha imagem no espelho, ou o que dela eu selecionava.

Em casa deve ter outras imagens nas paredes, não? — lançou Carina, sem ter medido bem o implícito autoconvite que a referência sugeria.

Não; só tenho autorretratos. Minto. Tenho uma moldura-caixa com umas das últimas madeixas de cabelo, enquanto ainda tinha o que cortar — acrescentou em tom vagamente melancólico.

Parece assim um bocadinho narcisístico, não acha? — arriscou.

Sim, talvez. Já me têm acusado disso. Se vissem as pilhas de desenhos a carvão e a sanguínea… — sorriu-se. — Como dizia a publicidade: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” Repare, não estou a fazer mais do que um Durer. Já viu aqueles extraordinários autorretratos em que ele se afirma não só belo e próspero, como um virtuoso da pintura? E os mais de cem autorretratos do grande Rembrandt? São leituras psicológicas que o pintor faz de si próprio, tal como as fará Van Gogh mais tarde. A subjetividade acrescenta-se às outras vertentes da pintura.

O entusiasmo tomara conta do discurso de Delvaux, que agora dava uma aula privada e emocionada à jovem admiradora. Ele próprio tinha consciência de que a admiração que provocava nela era o seu alimento.

Um artista é uma espécie de instrumento do divino. Ao capturar-se a si próprio em momentos de criação está perto de captar o processo divino. Veja este! mostrava-se a mirar-se de meio lado, em tronco nu. — É a imagem de alguém — eu — que observa com toda a atenção a atividade do pintor — eu — que o pinta. Este loop provoca uma quase vida do quadro, mesmo não estando pintado de maneira muito naturalista.

Carina dava-se conta de um misto de deslumbramento, pelo brilho teórico de Delvaux, com um subtil sentimento de opressão, que começava a deixá-la desconfortável.

Deixe-me falar-lhe de Velásquez — prosseguiu o crítico de Arte. — Alguma vez se apercebeu da maneira ardilosa que ele usou para pintar As meninas? Aquilo é um autorretrato disfarçado de cena íntima da corte espanhola. Mas quem sobressai mais do que as infantas? Ah, pois é!

Carina já não aguentava. Pediu desculpa por ter de se retirar: “mas tenho de regressar ao escritório onde uma colega me está a aguentar o trabalho”. Desceu as escadas do prédio rapidamente, enquanto Delvaux, surpreendido e magoado, a chamava. Mas só um vago eco lhe respondia.

Joaquim Bispo

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Uma versão de 3 páginas deste conto foi selecionada para a 26ª edição (março/abril de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 89 a 92).

https://drive.google.com/file/d/1vEVY_wh1RYuyT99vrww9QS2i5gO--Tn8/view

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Em 2015, este conto, com o título Sandro, obteve o 8º lugar, no Primeiro Concurso Literário do ICBIE — Instituto de Cultura Brasil Itália Europa.

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Imagem: Albrecht Dürer, Autorretrato, 1498.

Museu do Prado, Madrid.

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