10/05/2021

A insuspeita sensualidade da massa

 


A razão porque os homens não são vistos mais vezes na cozinha a preparar rissóis, pastéis de massa tenra, filhós, pizas, folhados é, provavelmente, porque ainda não descobriram as virtualidades sensuais da manipulação das massas.


Roberto não acolheu com muito entusiasmo a determinação da mulher de que nesse ano iriam passar o Natal com os pais dela, numa aldeia perdida das Beiras, mas um par de horas antes do almoço de dia 24 já estavam junto da mãe de Vanda a vê-la amassar as filhós.

Juntava o fermento dissolvido em água morna à farinha peneirada, que formava um grande monte a um lado da masseira, e ia misturando pouco a pouco o azeite morno e as três dúzias de ovos batidos. Quando a massa parecia muito lassa, juntava mais umas mancheias de farinha; se começava a ficar pesada e difícil de manipular, acrescentava mais líquidos ― ovos, azeite, sumo de laranja, aguardente. Por fim, vinho do Porto.

Dona Rosália metia os punhos fechados dentro da massa, com energia, ora um ora outro, pegava numa ponta esparramada de um lado e dobrava-a por cima do resto, voltava a empurrar e a esmurrar, voltava a repuxar pontas para o meio, num sovar diligente e enérgico.

Os seios fartos dançavam-lhe por dentro das roupas grossas, cobertas pela eterna bata de florinhas, num ondear marcado pelas marés da massa a que Roberto não era indiferente.

A operação parecia uma luta deleitosa, sem fim nem propósito utilitário, mas aos poucos a pasta lisa, carnal e maleável como barriga de mulher, ia crescendo a um lado da masseira. Mais um pouco de azeite sobre aquela nudez macia recordou-o de um jogo erótico com a mulher, que uns anos antes acrescentara um pico de excitação ao momento.

«Havemos de experimentar com ovos batidos…», decidiu, sugestionado.

Por fim, misturados todos os ingredientes nas quantidades intuídas, o bolo, polvilhado com uma última capa de farinha, rotundo, alvo e sensual como nádega de mulher, foi acomodado a um lado por Dona Rosália, coberto com panos e um cobertor, para manter a tepidez necessária para a massa levedar. Por baixo da masseira, uma braseira acesa.

A irmã de Vanda e o marido só chegaram depois de almoço. Roberto gostava deles, por razões diversas: Miguel era um companheirão, sempre disponível para uma piada picante; Cláudia, um doce.

Ao fim da tarde, com a massa das filhós quase a transbordar da masseira, reuniram-se todos na cozinha velha ― um espaço que mantinha uma lareira antiga semicoberta por uma chaminé de grande tiragem. Na pedra do lar, vários cavacos acesos a aquecer uma caldeira de cobre, meia de óleo, sobre uma trempe.

Curioso por experimentar, Roberto ofereceu-se para tender as filhós. Sentado num banquinho baixo perto da caldeira, com uma tábua de cozinha sobre os joelhos, separava um punhado de massa, de um alguidar para onde tinha sido transferida, rolava-o nas mãos a formar uma bola e esticava-o com os dedos sobre a tábua até conseguir obter um círculo de uma grossura uniforme de menos de um dedo e um palmo de largura. Então, com uma serrilha, aplicava ao interior uns cortes em ziguezague, para uma fritura eficaz, como era tradição, e largava a filhó suavemente no óleo fervente.

Do outro lado do alguidar, a cunhada também tendia. Miguel com um espeto geria a fritura e tirava do óleo as filhós já fritas. Vanda distribuía-as por cestinhos e caixas, enquanto Dona Rosália as polvilhava com açúcar e mantinha as crianças longe do lume e do óleo quente, deixando-as também pôr o açúcar. O Senhor José, o patriarca, ia administrando o fluxo de lenha, para manter uma chama contínua, mas não excessiva.

O primeiro contacto de Roberto com a massa foi uma surpresa. Não estava habituado àquela deliquescência oleosa e a sensação de mãos sujas retraiu-o. A maleabilidade sugestiva foi a primeira sensação estimulante. Depois, a textura e a densidade carnais tomaram conta dos seus sentidos. A massa macia e moldável transmitia às terminações nervosas das suas mãos sensações de grande carga sensual. A ilusão de tocar e manipular partes de um corpo feminino era muito real e perturbadora. Como bola, a massa dava a ilusão de seio, macio e deformável; como superfície, lembrava pescoço, barriga, interior de coxa. Os sentidos sabiam-se enganados, mas rejubilavam, alucinados.

Enquanto manipulava a bola de massa entre as mãos, permitiu-se imaginar que metia as mãos por dentro das roupas da cunhada, ali mesmo ao lado, e tocava, agarrava, apertava-lhe os seios, fiado na incapacidade de ela e os circunstantes lerem o pensamento. Esta impunidade furtiva acrescentava um patamar de excitação ao seu desatino. Alguma coisa no seu corpo se inteiriçou. Felizmente, a tábua de estender as filhós protegia-o de maiores embaraços.

As pessoas não conseguem ler os pensamentos umas das outras, mas estão muito habituadas a ler os pequenos sinais da linguagem corporal. Talvez o cunhado de Roberto lhe tivesse notado a respiração mais apressada ou algum esgar mais libidinoso no rosto, ou talvez já conhecesse as delícias da manipulação da massa. Ao vê-lo entretido com a bola de massa entre mãos, provocou, irónico e risonho:

Essas são boas, mas eu gosto mais das outras!

Roberto sentiu que fora descoberto e temeu corar, mas logo resolveu assumir:

Claro, as outras é que enchem a alma. Mas mais vale uma destas nas mãos que duas das outras... na caixa… ― concluiu, rindo.

Todos pareceram perceber e riram animadamente, exceto as crianças, sempre atentas:

Eu também quero das outras ― clamaram ambas.

Ah, vocês querem das outras filhós com aguardente? Ainda não têm idade ― trapaceou Dona Rosália. ― Mas arranjo-vos algumas com canela.

Estava lançada a brincadeira brejeira. Pouco depois, Cláudia, com uma expressão maliciosa, produzia com a massa um rolo, em vez de uma bola. As chalaças marotas não se fizeram esperar, a que não faltou a clássica demonstração da flacidez, sempre risível, que a massa ilustrava na perfeição.

Esta não vai lá, nem que lhe faça umas festinhas ― gracejava, enquanto elevava e exibia a evidente “disfunção erétil crónica” do pedaço cilíndrico de massa.

Então, meninos! Hoje é noite de Natal… ― reclamava a matriarca, pouco à-vontade com tanta brejeirice à frente dos genros e das crianças.

Mas o ambiente era de pândega descontraída. Roberto prosseguiu, sugerindo carícias preliminares, ao estender as filhós. A frequente necessidade de abrandar a massa, molhando as pontas dos dedos em azeite, acrescentava realismo às manobras lascivas. Em crescendo, encontrou relações sugestivas entre os cortes da serrilha e alguns aspetos da anatomia íntima feminina:

Esta tem os lábios em ziguezague. Se calhar, dá dentadas. Agora, morde; agora grita! Agora, morde; agora grita... ― ria, visivelmente divertido, espicaçando o cunhado.

Mostra, tio, mostra! ― pediam as crianças, curiosas.

Roberto correspondeu, mimando uma bocarra, com a filhó aberta a meio:

Fujam, que esta é das famintas e vai-vos comer!

Miguel, entretanto, aceitou o repto malicioso de há pouco, retirando da caldeira uma filhó suspensa do espeto pela “anatomia íntima”.

Esta até ficou tesa, quando viu um espeto de meio metro!

A brincadeira e a correspondente risota prosseguiram até que a massa no alguidar se esgotou. Era altura de lavar e arrumar tudo e de saborear as filhós com calma. Estavam divinais!

Depois do bacalhau e das couves do jantar, foram ver a fogueira ao largo da igreja e voltaram para distribuir as prendas, pois já ninguém aguentava as crianças. Antes do deitar, aconchegaram o estômago com mais umas filhós e uns copinhos de jeropiga. Era um remate perfeito.

O patriarca da família estava intimamente feliz. Não era todos os anos que conseguia ter toda a família junta. Já deitado, percebeu gemidos abafados vindos de dois pontos distintos do casarão familiar. Música para os seus ouvidos. Chegou-se a Dona Rosália, amoroso, insinuante, atiçado.

O que é que te deu hoje, Zé? ― fingiu reclamar ela.

Acho que é das filhós! ― sussurrou vaidoso, mentindo com toda a sonsice que a ocasião exigia. ― As tuas são as melhores ― acrescentou, fazendo deslizar os dedos ávidos pelas sinuosidades da massa que tão bem conhecia, pronta a ser amassada.


Joaquim Bispo

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Imagem: Moniz Pereira (1920–1989) [pintor; cenógrafo na RTP], [Título ainda não encontrado], 1980.

Sindicato dos Trabalhadores das Telecomunicações, Lisboa.

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Este conto integra a coletânea Boas Festas — Antologia de Natal, Silkskin Editora, Lisboa, 2015, coordenada por Isidro Sousa [falecido há poucos meses].

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10/04/2021

O crítico de Arte

 


Vou a esta!”, decidiu Carina, acentuando a decisão com um círculo a esferográfica sobre a informação da Agenda Cultural. “Uma palestra sobre aspetos da Arte pelo Sandro Delvaux só pode abrir horizontes mentais. O tipo é um crânio”, pensou, evocando a imagem vertical, ao mesmo tempo sóbria e sofisticada, do crítico de Arte.

Carina é uma dessas jovens mulheres suficientemente maduras para terem feito uma qualquer licenciatura e encetado uma carreira profissional, e suficientemente inseguras por não terem definido um rumo para a sua vida, quer por indecisões próprias, quer pelas circunstâncias. Um namorado que nunca mais ganha vontade de assentar não ajuda. Um dia, a impaciência suplanta a compreensão e o namorado desaparece ou é corrido, como sucedeu com o de Carina. A partir de então, ela vive nesse limbo que tem tanto de espera angustiada como de gosto reganhado de uma liberdade cada vez mais assumida e fruída.

Tem um pequeno grupo de amigas, também de trinta e pouco anos, que convida à vez para ir ao cinema, às compras ou a eventos culturais, conforme a propensão prevalente. Talvez por tê-la convidado em cima da hora, a amiga Sónia declinou o convite “com pena”, pelo que Carina resolveu-se a ir sozinha à palestra no Centro Cultural. Foi cedo, diretamente do escritório, e sentou-se na terceira fila. A primeira estava reservada para convidados e os emproados gostam de se sentar logo a seguir.

Como esperava, Delvaux fê-la aperceber-se de aspetos, no campo da Arte, em que nunca tinha pensado. Aliás, perguntou-se, como teria sido possível ela — que embora adorando Arte, vinha de Letras —, discorrer por si própria que um colecionador, na sua obsessão de juntar objetos belos e de valor, é, em geral, tomado por uma atitude mental de carência, de reminiscência de períodos em que queria ter mais objetos e não pôde, em que queria afagos e não os teve, de uma baixa autoestima, em suma? Ou que é possível detetar falsas pinturas renascentistas só pela análise dos anéis da madeira em que foi pintada? Além disso, a figura do crítico impunha-se não só pela assertividade das declarações, mas também pela imagem límpida: um rosto impecavelmente barbeado a harmonizar-se com o crânio rapado. De roupa, a habitual t-shirt negra, sob um casaco igualmente negro. Uma coerência. A frase final — “A Arte é, por isso, a atividade humana que persegue e explica a nossa vontade de divino” — resumia muito do que fora dito.

Quando terminaram as palmas, Carina sentiu que queria aproximar-se dele, embora só tivesse admitido que devia agraciá-lo com umas palavras pessoais de apreço, com o pretexto de pedir um autógrafo, mas não foi fácil: outras circunstantes também deviam ter sentido apelos de agradecimento, porque se juntaram várias à volta do palestrante. Por fim, a sua figura esbelta de morena chamou a atenção do mestre, que lhe fez um sinal para avançar. A proximidade fê-la temer algum titubeamento, mas a segurança de Delvaux transmitiu-lhe calma. Enquanto ele rabiscava um autógrafo expressivo e esteticamente equilibrado no folheto da palestra, Carina lançou algumas palavras que não tinha preparado, mas que transmitiam bastante do que sentia:

Professor, adorei ouvi-lo. Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados e senti-me num estado de graça tal, como quando ouço As Quatro Estações de Vivaldi.

Pensou ter-se excedido, quando Delvaux levantou os olhos para ela e foi como se se tivesse feito um grande silêncio. Os olhos dele, negros e brilhantes, transmitiam um misto de ternura e comoção, mas também uma curiosidade alienígena. Fixaram-na por um momento, enquanto, impercetivelmente, um sorriso se juntava à ternura do olhar.

Apetece-lhe um café? — soltou Delvaux, num tom de voz doce, mas que não deixava lugar a escusas.

Carina assentiu emocionada e tanto mais embaraçada quanto lhe parecia que o convite excedia em muito as palavras pronunciadas.

Quando Delvaux conseguiu livrar-se do resto do envolvimento festivo da palestra, sentaram-se no pequeno bar do Centro, mas ainda interrompidos esporadicamente por admiradores retardatários. Tanto por essa falta de sossego na conversa, como pela curiosidade que Carina manifestou pela pintura de Delvaux, de que ela não desconfiava, combinaram um encontro para a semana seguinte no ateliê do crítico.

Agitada, ligou a todas as amigas a contar a experiência surpreendente que tivera e o encontro que prometia ser excitante intelectualmente. O resto se veria.

O Delvaux? Uau! Esse tipo é lindo — reagiu Sónia, sem conseguir esconder uma ponta de inveja.

Sabes o que eu lhe disse, a abrir? “Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados.” Eu nem queria acreditar.

Estás muito atiradiça, mulher! Vai-te a ele!

Sónia, ele tem quase cinquenta anos… Eu só me deslumbrei pela cabeça dele — desvalorizou Carina, mentindo com todas as frequências do telemóvel.

Passados uns dias, porém, o entusiasmo expectante foi esmorecendo, à falta do contacto prometido. Duas semanas foi o limite tolerado por Carina. Entre a semi-humilhação e a irritação pela sedução negligenciada, Carina resolveu-se a procurar o crítico e a fazer-lhe notar a indelicadeza, difícil de perceber num homem impecavelmente atencioso. “Talvez esteja doente”, pensou, desejando que “antes isso”.

Descobrir a morada do ateliê não foi difícil e umas informações cruzadas em páginas de Facebook deram-lhe pistas das horas em que Delvaux costumava frequentar o local de pintura. No dia seguinte, de tarde, com uma dispensa no escritório para “obrigações legais”, procurou o “desaparecido”.

Delvaux estava bom, aliás, demasiado bom, o que desarmou qualquer resquício de retaliação que Carina ainda mantivesse. Delicado, insinuante, desculpou-se com um apagamento involuntário do número de Carina. O ateliê eram duas assoalhadas na zona da Bica. No “quarto” instalara Delvaux um pequeno escritório onde provavelmente elaborava a parte ensaística do seu trabalho. A “sala”, uma divisão de uns 3x5 m, também ainda com soalho de madeira, era usada como acanhado estúdio. A um lado, encostavam-se dezenas de telas, frente a um cavalete que recebia luz da janela, à esquerda. Ao lado desta, um espelho de “corpo inteiro”. A toda a volta da divisão, ao nível dos olhos, uma boa dúzia de autorretratos, vários ainda a manifestar outra estrutura capilar do artista.

Só faz autorretratos, professor? — foi a pergunta mais neutra que Carina conseguiu produzir, estupefacta com tão inesperada galeria.

Não, não! Pinto muitos outros géneros, mas este tem a vantagem de me proporcionar um modelo à mão, a qualquer hora, de graça — asseverou, sorrindo.

Mas só tem aqui autorretratos…

É que estes não se vendem; são para consumo próprio — acentuou Delvaux a ironia, com uma gargalhada.

São muito interessantes. Parece um álbum fotográfico. Usa-os como outras pessoas usam fotografias na estante ou em cima da cómoda?

Não exatamente. Repare, um autorretrato é também um exercício de autoconhecimento. Por exemplo este — apontou uma imagem abertamente expressionista, ainda com uma frondosa cabeleira negra — mostra o jovem com pouco tempo de Belas-Artes, cheio de vontade de inovar, um pouco revolucionário até. Veja o brilho no olhar aberto e luminoso. O tratamento plástico ilustra na perfeição o meu estado de espírito de então.

E mantém-no aqui desde essa altura?

Sim, ajuda-me a não me esquecer dos meus sonhos de jovem. Nele, espreito-me nesse tempo, como o meu olhar perscrutava a minha imagem no espelho, ou o que dela eu selecionava.

Em casa deve ter outras imagens nas paredes, não? — lançou Carina, sem ter medido bem o implícito autoconvite que a referência sugeria.

Não; só tenho autorretratos. Minto. Tenho uma moldura-caixa com umas das últimas madeixas de cabelo, enquanto ainda tinha o que cortar — acrescentou em tom vagamente melancólico.

Parece assim um bocadinho narcisístico, não acha? — arriscou.

Sim, talvez. Já me têm acusado disso. Se vissem as pilhas de desenhos a carvão e a sanguínea… — sorriu-se. — Como dizia a publicidade: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” Repare, não estou a fazer mais do que um Durer. Já viu aqueles extraordinários autorretratos em que ele se afirma não só belo e próspero, como um virtuoso da pintura? E os mais de cem autorretratos do grande Rembrandt? São leituras psicológicas que o pintor faz de si próprio, tal como as fará Van Gogh mais tarde. A subjetividade acrescenta-se às outras vertentes da pintura.

O entusiasmo tomara conta do discurso de Delvaux, que agora dava uma aula privada e emocionada à jovem admiradora. Ele próprio tinha consciência de que a admiração que provocava nela era o seu alimento.

Um artista é uma espécie de instrumento do divino. Ao capturar-se a si próprio em momentos de criação está perto de captar o processo divino. Veja este! mostrava-se a mirar-se de meio lado, em tronco nu. — É a imagem de alguém — eu — que observa com toda a atenção a atividade do pintor — eu — que o pinta. Este loop provoca uma quase vida do quadro, mesmo não estando pintado de maneira muito naturalista.

Carina dava-se conta de um misto de deslumbramento, pelo brilho teórico de Delvaux, com um subtil sentimento de opressão, que começava a deixá-la desconfortável.

Deixe-me falar-lhe de Velásquez — prosseguiu o crítico de Arte. — Alguma vez se apercebeu da maneira ardilosa que ele usou para pintar As meninas? Aquilo é um autorretrato disfarçado de cena íntima da corte espanhola. Mas quem sobressai mais do que as infantas? Ah, pois é!

Carina já não aguentava. Pediu desculpa por ter de se retirar: “mas tenho de regressar ao escritório onde uma colega me está a aguentar o trabalho”. Desceu as escadas do prédio rapidamente, enquanto Delvaux, surpreendido e magoado, a chamava. Mas só um vago eco lhe respondia.

Joaquim Bispo

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Uma versão de 3 páginas deste conto foi selecionada para a 26ª edição (março/abril de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 89 a 92).

https://drive.google.com/file/d/1vEVY_wh1RYuyT99vrww9QS2i5gO--Tn8/view

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Em 2015, este conto, com o título Sandro, obteve o 8º lugar, no Primeiro Concurso Literário do ICBIE — Instituto de Cultura Brasil Itália Europa.

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Imagem: Albrecht Dürer, Autorretrato, 1498.

Museu do Prado, Madrid.

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10/03/2021

Confrontação

 



Após o jantar na Casa Vermelha — a mansão campestre do casal Morris em Kent —, o casal e o amigo Dante Rossetti ocupavam o serão, como habitualmente, reafirmando convicções sobre a genuinidade da pintura anterior a Rafael e planeando pôr em prática a arte para o povo, através da empresa de arts & crafts que tinham fundado. Morris, amigo de Engels e socialista assumido, idealizava produzir mobiliário e outros objetos de uso diário, com qualidade funcional e singularidade estética, a um tempo artística e artesã — de que o recheio da mansão era exemplo excelente —, e que pudessem ser alternativa aos da produção em série da indústria, naquele terceiro quartel do século XIX. Nessa noite, centraram-se nas potencialidades estéticas dos jogos de tabuleiro, especialmente o xadrez.

Dispuseram-se a jogar uma partida, mas, como não dava para três jogadores, Jane, a mulher de Morris e modelo de pintura de ambos, aproveitou para propor um jogo bem mais interativo — o strip poker. Galhofou:

Já me despi muitas vezes para vocês. Agora, é altura de vos ver despir para mim!

Prontamente aceite, o jogo foi decorrendo no meio de muitas gargalhadas. Rossetti, percebendo a tensão voyeurista de Jane, ia-se deixando derrotar e expunha mais e mais o seu corpo, sobretudo quando o confronto se resumia aos dois. Este comportamento perdedor tornou-se muito evidente e foi percebido por ambos os membros do casal.

Assim, não vale ― queixou-se Jane. ― És exibicionista ou não te apetece jogar?

Não ― explicou Rossetti ―, tenho estado a pensar se não seria altura de alterarmos a estrutura dos jogos desta sociedade de competição. Os jogos são combates. O mundo anda a combater há demasiado tempo. Os jogos podiam ser idealizados para incentivarem a cooperação altruísta e não a competição egoísta. Aliás, William ― disse, virando-se para o amigo ―, tu próprio construíste um tabuleiro de xadrez para três jogadores, lembras-te?

Sim ― reconheceu Morris ―, mas nunca achei que fosse muito interessante. Era mais cooperativo, sem dúvida, mas não gerava uma cooperação sã: sempre dois dos jogadores se uniam, circunstancialmente, para derrotar o terceiro, para, por fim, se enfrentarem. Nem a cooperação era desinteressada, nem a competição límpida. Não creio que a sociedade já esteja pronta para a abolição da competição.

Talvez seja uma questão de regras ― contrapôs Rossetti. ― Pode ser o momento de criar regras cooperativas para os jogos. E para a vida. A sociedade tem de se defender da competição desenfreada. Vou-vos contar ― sobretudo aqui à nossa musa ― o que se passou em Florença, e o mal que a competição fez à República:

No início do século XVI, o governo da cidade encomendou a pintura de dois murais, para a sala do Grão Conselho do Palazzo Vecchio, aos dois artistas de maior nomeada à época ― Miguel Ângelo e Leonardo da Vinci. Cada um deveria pintar, a fresco, numa enorme parede do salão, uma batalha travada pelos florentinos. Miguel Ângelo foi incumbido de pintar a batalha de Cascina, na qual Florença derrotara Pisa e, na parede oposta, Leonardo deveria pintar a batalha de Anghiari, em que os florentinos bateram os milaneses.

A situação era de grande oposição. Os dois mestres tinham personalidades completamente diferentes: enquanto Leonardo era um homem racionalista e habituado ao brilho dos salões das cortes, Miguel Ângelo era um intuitivo e um emotivo, e pouco hábil nas relações frívolas. Além disso, não gostavam um do outro. Leonardo era, talvez, mais reconhecido, mas o ascendente Miguel Ângelo tinha acabado de produzir a marcante estátua de David. A competição pela aura de maior artista do tempo estava em jogo e resolvia-se nesta contenda decisiva. A comparação, frente a frente, não podia ser mais incontornável e quem perdesse o confronto ficaria, compreensivelmente, humilhado e seriamente debilitado, em termos de estatuto artístico.

Estás a querer comparar essa confrontação com uma partida de poker? ― quis saber Morris.

Sim; perdoai se a comparação vos parece abusiva. Na verdade, cada um conhecia alguns pontos fortes do outro, mas não sabia que “cartas” ele ia apresentar. Leonardo apostou no que conhecia bem, pelos inúmeros estudos que tinha feito: cavalos. Os seus desenhos preparatórios mostravam, na parte central, o embate terrível de dois pares de cavaleiros, em que parecia que cavalos e cavaleiros se interpenetravam, no choque. O virtuosismo do desenho dos animais e as faces de terribilitá dos cavaleiros eram “o par de ases” em que Leonardo pretendia apoiar o restante “jogo”. Miguel Ângelo apostou na sua experiência de desenho do corpo humano, compondo um enorme cartão preparatório onde eram representados muitos soldados florentinos nus, no momento em que tinham sido surpreendidos, pelo exército pisano, a tomar banho no rio Arno. A sua musculatura supra-humana e a composição arrojada seriam as “cartas” de contraposição ao “jogo” do adversário.

Passaram, talvez, dois anos, sem que as paredes do salão vissem os traços planeados. Estariam a adiar o momento em que, finalmente, tivessem de mostrar o que estavam a preparar e não mais pudessem fazer bluff? Não sabemos. Certo é que Miguel Ângelo nunca passou o desenho para a parede, e Leonardo passou parte, mas usou uma inovadora combinação preparatória do suporte que correu mal ― a tinta escorreu quase toda para o chão. Não será crível, mas até parece que esse desaire tenha sido intencional. Para adiar o confronto não desejado e até temido.

Cada um deles foi entretanto chamado para outros projetos e não chegaram a mostrar a força da sua “mão”. Eis a deplorável herança que a competição nos legou ― a perda de duas obras de arte que seriam, provavelmente, extraordinárias.

Na verdade! ― comentou Jane. ― Mas não vejo a relação com o nosso jogo…

Se o jogo perverso que os acirrou à disputa, pelo contrário, os tivesse incentivado à colaboração ― continuou Rossetti ―, poderíamos hoje contemplar as obras-primas que as “roupas” da competição esconderam. Eis os malefícios da competição. Por isto, eu colaborei em perder este nosso jogo. Se eu teimasse em tentar ganhá-lo ― sorria matreiro ―, corrias o risco, minha boa amiga, de não chegar a contemplar a plenitude desta obra que, sem ser prima, tem autenticidade pré-rafaelita.

Dizendo isto e em gestos largos, atirou fora o resto da roupa, para grande gáudio dos amigos.

Tonto! ― ria Jane, divertida. ― Dizes isso porque não sabes jogar. E já vias que ias perder.

Ora, ora ― gracejava Morris, fingindo zombar do amigo ― tanta conversa para isto? Nem sequer um ás… Afinal, estavas a fazer bluff!


Joaquim Bispo


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Imagem: Batalha de Cascina, Cópia do trabalho, desenhada pelo pupilo de Miguel Ângelo: Aristotele da Sangallo, cerca de 1542.

Coleção: Holkham Hall, Norfolk, Inglaterra.

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(Este conto obteve o 1º prémio na categoria “Conto [de autor externo]”, no Concurso Literário da UFLA (Universidade Federal de Lavras) de 2015 — Lavras, Brasil.)

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10/02/2021

A talentosa professora Camila



A anterior confiança de Alcides vacilava. Acreditara que, apesar de toda a conjuntura desfavorável, seria possível a um licenciado em Construção e Conservação de 21 anos encontrar trabalho na terra da Merkel. Infelizmente, faltava-lhe uma disciplina para terminar o curso. A professora de Patologias da Pedra ameaçava não lhe dar nota para passar.

É certo que tinha feito um ano com muito namoro e muita cerveja, pelo que ambos os testes deram negativa. Até maio, no entanto, confiava que o seu charme e alguma melhoria no trabalho escrito alterassem o rumo negativo. Quando saiu a fraca nota do trabalho, foi falar com a professora, uma morena de uns quarenta e poucos anos, de cabelo curto e seios cheios, que ele costumava comer com os olhos nas aulas, explicando-lhe que o seu futuro estava dependente apenas daquela disciplina e pedindo-lhe, insinuante, que não o fizesse voltar no ano seguinte. Ela avaliou a importância do problema com um olhar simpático, quase cúmplice.

Alcides, eu não quero chumbar ninguém, mas você está com uma nota muito baixa. E estamos em meados de junho, as aulas já acabaram; já não há tempo para uma improvável recuperação. O que acha que eu posso fazer?

No momento, Alcides estava disposto a fazer qualquer coisa para salvar o ano e tudo lhe parecia possível.

Professora, dê-me uma semana. Depois pode fazer-me a prova que quiser.

Foi uma semana arrasadora. Levantava-se pelas sete e lia tudo o que encontrava da bibliografia até perto da meia-noite, só com intervalos para comer. Andava com os olhos como os dos cachuchos, de tanto queimar as pestanas.

Na tarde do sábado seguinte, Alcides compareceu na morada indicada, uma pequena vivenda da encosta de Pedrouços. Um jardinzito separava a porta, da rua.

A professora Camila recebeu-o cordialmente, convidando-o de imediato para lanchar. Vestia-se de maneira informal: um polo amarelo de decote em bico, que lhe realçava o peito, e umas calças leves pelo meio da canela. Camila encaminhou-o para a cozinha, para não o deixar sozinho enquanto preparava o chá.

Estudou muito, Alcides? — lançou sorridente.

Sei tudo na ponta da língua, professora. Vai ver! — respondeu ele, sincero.

Instalaram-se na pequena mesa da cozinha, à frente de um bule de chá e duas torradas.

O seu marido não lancha connosco? — quis saber Alcides.

Não; ele afinal saiu ontem para um congresso e só volta amanhã à noite. Somos só os dois — adiantou, com um sorriso talvez neutro, talvez não.

Alcides, como bom entendedor, ficou alerta para quaisquer indícios propiciadores daquela oportunidade potencial. Talvez por isso lhe tenha parecido que Camila espalhava a manteiga na torrada de maneira um pouco lasciva. E bebericava o chá pegando na chávena com ambas as mãos e fazendo um biquinho com os lábios. Estar a sós com a professora que tantas vezes desejara, em ambiente não de intimidade, mas ainda assim de privacidade, espicaçava-lhe os instintos. «Será que vou ter sorte?», divagava furtivamente.

Então, vamos começar? — inquiriu Camila, convidando o aluno para a sala.

Um pouco nervoso, mas confiante, Alcides instalou-se num maple, enquanto a professora se sentou no sofá em frente.

Como combinámos, Alcides, é preciso que eu fique com a certeza de que você está bem seguro da matéria, para conseguirmos reverter a situação. Está calmo e concentrado?

Ao aceno afirmativo de Alcides, pensou numa pergunta básica e lançou:

O que são rochas?

Alcides baixou os olhos procurando a concentração que se esbatera quando Camila, ao pensar na pergunta, baixara a cabeça e o tronco, expondo um pouco mais de pele, no decote.

São sistemas químicos inorgânicos. Formaram-se num determinado ambiente geológico e refletem o equilíbrio termodinâmico atingido na fase de formação. (…) Têm composição química razoavelmente bem definida, mas em proporções variáveis, pelo que não há duas rochas iguais.

Quais as tipologias mais frequentes? — continuou Camila, após a mesma flexão de tronco.

Alcides, embora atento à pergunta, não conseguiu evitar que os olhos se abandonassem ao vislumbre daquela alvura láctea. Demorou um pouco a iniciar a resposta.

Sabe a resposta ou passamos a outra? — condescendeu Camila, após uns segundos.

Não, não! — reagiu Alcides. — Em peso, a quarta parte da crusta terrestre é composta por silício e metade por oxigénio. Os minerais mais abundantes são os silicatos, nas ígneas (granitos e basaltos), sedimentares (argilas, xistos e grés) e metamórficas (gnaisses e micaxistos), seguidos de longe pelos carbonatos, nas sedimentares (calcários) e metamórficas (mármores).

Muito bem! Que rochas predominam nos monumentos portugueses?

A concentração de Alcides baqueava. Aquelas rotundidades anunciadas estavam prestes a condená-lo. Baixou os olhos a tentar recompor-se, mas entrara numa batalha interior, como um computador bloqueado por excesso de tarefas.

Alcides, você prometeu-me que ia preparar-se! O que se passa?

O jovem, encurralado, resolveu abrir o jogo.

Professora, desculpe, mas não consigo concentrar-me — declarou, apontando com os olhos para a origem da perturbação.

Camila olhou para o próprio decote.

Oh, desculpe. De qualquer modo, na vida profissional temos de saber ultrapassar certas pequenas distrações. Quer que me tape? — perguntou, sincera, puxando o decote para cima. Após a hesitação de Alcides, perguntou com um sorriso irónico: — Ou quer que me destape?

Alcides leu a pergunta como uma das tais oportunidades que podem render benefícios sensuais, se não forem desperdiçadas.

Posso escolher? — arriscou, com um sorriso cúmplice. — Podíamos fazer uma espécie de strip-poker! — adiantou, de olhar brilhante.

Camila ficou uns segundos calada a avaliá-lo. Há muito tinha percebido como era malicioso aquele aluno. Depois levantou-se e foi ao bengaleiro buscar um cachecol.

Acho que o melhor é tapar-lhe os olhos, para não se distrair — anunciou, enquanto lhe enrolava o pano em torno da cabeça, atando-o atrás.

Ok, professora — concedeu Alcides, desistindo de expectativas mais ambiciosas, que tinham chegado a dominá-lo nos últimos momentos. — Já vi que não tenho sorte…

Alcides, você é danado! A sorte não cai do céu; constrói-se todos os dias — ralhou docemente, fazendo-se desentendida. — Se calhar foi um ano com brincadeira a mais. Mas eu não acho mal, se o estudo não for de menos. O importante é atingir o objetivo. — Meditou um pouco. — Sabe qual é o meu objetivo, neste momento? Conseguir que você acerte as respostas às perguntas que lhe quero fazer. Mas, por falar em sorte, também não desgosto de jogos atrevidos — disse a sorrir. — Vamos lá experimentar esse póquer maroto. Uma peça de roupa por cada resposta, é isso?

Maravilha, professora! Já me agrada mais.

Uma coisa lhe prometo: se você acertar as respostas todas, ganha uma prenda no fim…

Bora lá, professora! — rejubilou Alcides, a abarrotar de entusiasmo por baixo do cachecol.

Vamos lá, então. Que mármores coloridos da península de Lisboa conhece?

O encarnadão de Pêro Pinheiro, o amarelo de Negrais, o azul de Sintra e o negro de Mem Martins.

Boa! Lã vão as sabrinas. O que é a meteorização?

Ao ouvir o som das sandálias a cair, Alcides percebeu que seria vantajoso acompanhar e tirou também os ténis, antes de responder:

Quando a rocha é arrancada à pedreira e colocada sob o ataque de agentes externos, como o ar, as diferenças de temperatura, a água — com as consequentes oxidações, expansões e dissoluções —, as redes cristalinas da rocha são destruídas ou rearranjadas. É a essa tentativa de reequilíbrio que chamamos meteorização. A desagregação é o equilíbrio final que a rocha de um edifício atinge.

Boa! Essa bem merece a camisola. Fora! Fale-me da corrosão.

Ainda mal pressentira que Camila despia o polo e já Alcides tirava a sua t-shirt. Cheio de confiança, não hesitou:

A corrosão avança nos pontos vulneráveis do sistema cristalino. Os cristais reais não são perfeitos; podem conter dezenas de milhões de defeitos por centímetro cúbico: deslocações, lacunas, impurezas. Tais defeitos representam outros tantos constrangimentos físicos. Ao nível do grão, uma rocha é tanto mais resistente quanto mais fino for o seu grão.

Muito bem! — incitou Camila, sem dar a entender que o seu olhar, à solta, se alongara no desfrute do tronco robusto e algo peludo do aluno. — Calças fora. O que são crostas negras?

Alcides, de coração acelerado, tirou as calças de ganga. Estava num estado de alguma agitação, visualizando a professora com o belo peito a sobressair do sutiã e em cuequinhas.

São zonas enegrecidas nas superfícies das pedras, constituídas por depósitos de sais e de partículas da poluição da atmosfera, as quais produzem gesso a partir do dióxido de enxofre e do ácido sulfúrico destas, na sua interação com os substratos siliciosos e carbonatados.

Certo! Falta uma. Qual a origem dos oxalatos de cálcio nas superfícies dos edifícios?

Alcides ouviu o bater dos fechos do sutiã sobre a mesinha de apoio. A informação química desencadeada percorreu o seu corpo a alta velocidade, levando ordens aos corpos cavernosos. Alguma coisa em si passou a forcejar para se libertar. Alcides ofegava. Era demasiado bom o que lhe estava a acontecer. E sabia a resposta seguinte.

Os oxalatos, visíveis como formações relevadas, não têm origem em deposições externas sobre a pedra, mas na transformação dela. Devem ser associados à segregação de ácido oxálico pelas raízes de fungos, algas e líquenes, na sua atividade bioquímica sobre as rochas carbonatadas.

Muito bem, Alcides, muito bem! Pode tirar o pano dos olhos.

Yes! — gritou o felizardo, saltando e arrancando de repelão o cachecol, desejoso de passar à prometida fase seguinte. Inexplicavelmente, a professora continuava vestida. Perante o rosto de surpresa e desapontamento do aluno, Camila sorriu, quase maternal, escondendo alguma perturbação.

Ainda bem que o cachecol permitiu que não se distraísse mais. Correu bem, não acha? Está satisfeito?

Satisfeito é dizer pouco. É evidente que estou muito… mesmo muito contente — abandalhou Alcides, ainda confiante, exibindo os bóxeres tensos. — Mas a festa vem agora, não foi o que prometeu, professora?

Prometi-lhe uma prenda, sim. Quere-a já? — indagou, um pouco matreira.

Ó professora, é o que eu mais quero — inflamou-se Alcides. — Sempre a desejei!

Está bem! Eu também acho que é a coisa mais importante para si, agora. Aqui tem! — E estendeu a Alcides uma folhinha com a nota final da disciplina: 11. — Tudo de bom para si, lá na Alemanha! E beijinhos à senhora Merkel — riu.


Joaquim Bispo


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Imagem: Escultura de Francisco Simões.

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(Este conto integra a coletânea Bad Girl — Contos Eróticos, Silkskin Editora, Lisboa, 2015.)

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10/01/2021

Para além do confessável

 

Quando o padre Onanias entrou na barbearia, temeu por um momento que não fosse conseguir cortar o cabelo antes da missa das seis: na cadeira do “ti” Matias estava o presidente da Junta, e à espera estava o secretário, mas depressa percebeu que este não vinha para cortar o cabelo; simplesmente acompanhava o chefe para todo o lado.

Boa tarde, meus senhores! — cumprimentou.

Boa tarde, senhor padre! — responderam os três em coro.

Sentou-se num dos bancos forrados a napa que se alinhavam voltados para a majestosa cadeira onde os homens se vinham libertar de sumptuosas melenas, quando se tornavam demasiado rebeldes para aceitar o pente. Na telefonia acabara de cantar Artur Garcia e anunciava-se Suzy Paula.

Então, senhor padre, já está ambientado cá à terra? — perguntou o presidente.

O padre Onanias tinha sido colocado em Leirosa do Côa havia pouco mais de um mês e quase só conhecia o pequeno grupo que ia à missa. Ainda não tinha atingido os trinta anos, era alto e rosado, e não vestia batina.

Sim, já conheço bastantes paroquianos, alguns até em confissão. Já se confessaram este ano? — inquiriu, com um prazer pouco católico.

Lá havemos de ir, senhor padre! — respondeu o presidente, prazenteiro. Era um homem na casa dos sessenta, um pouco anafado, de cabelo ralo e nariz abatatado. — Todos os anos, pela Páscoa, me confesso. Eu e aqui o meu secretário, não é verdade, Azeitão?

O visado acenou que sim, subserviente. Teria quarenta e poucos anos, usava o cabelo liso com brilhantina e trazia um fato escuro.

Mas isto é uma terra sem pecados — carregou o presidente, enquanto o barbeiro se esmerava no recorte da orelha direita. — Aqui é tudo boa gente, sem cobiça, sem luxúria. Olhe, aquela que ali vai, a dona Naftalina, não deve ter mais de cinquenta anos; ficou viúva há uns quatro e nunca mais se lhe conheceu homem, ou sequer interesse por eles. Passa a vida na igreja. Às vezes, até gostava que houvesse mais movimento, para a gente ter de que falar, sem ser só de caça. A propósito, o senhor padre não caça? — rematou, com muita malícia na entoação. — Há por aí umas coelhas…

O secretário e o barbeiro riram-se, mas com pouco à-vontade, devido à inconveniência do presidente da Junta. O padre também riu, e sem cinismo.

Há muito tempo que a minha alma e o meu corpo pertencem à Igreja. Sou homem, reparo quando uma mulher é bonita, mas estou comprometido com algo maior e só aos seus encantos me dedico — acentuou, numa meia verdade. Fazia parte do saber viver do relacionamento social.

Ah, senhor padre, contam-se muitas histórias de padres e saias. E não são batinas. Ali na aldeia de Trevez correram com o de lá, há uns cinco anos, porque andava metido com a governanta, o desavergonhado. Levou uma sova!

Há sempre ovelhas ronhosas em todos os rebanhos. Por mim, espero ficar aqui por muitos anos, com o respeito de todos, que já vi que estou entre gente honrada.


Sentada numa das filas da frente da igreja, dona Naftalina observava o Cristo crucificado de tamanho natural, que estava em fundo, sobranceiro ao altar-mor. Os seus olhos percorriam os músculos das pernas, magras como as do seu Grinaldo, que Deus tinha. Custava-lhe muito a viuvez. Nenhum homem se tinha aproximado, a não ser o untuoso do presidente da Junta, com umas insinuações porcas. Ela própria também não se mostrava acessível. Tinha muitas saudades, mas do seu homem. Recordava-o, ao olhar este Cristo: o mesmo corpo ossudo, a barba, uma certa expressão de abandono. Ficava horas esquecidas a percorrer-lhe o corpo com o olhar. Em momentos de maior desvario, imaginava que o abraçava, indefeso, e lhe arrancava o pano que a separava de algo tão indefinível que só se reconhece quando se volta a experimentá-lo. Louca! O mais perto que conseguia chegar desse algo indefinível acontecia quando, antes de adormecer, se persignava interminavelmente com o crucifixo, em que um Cristo em tudo igual, só que mais pequeno, abria os braços de impotência perante tal carência. Elevava-o ao rosto, aos lábios, beijava-o: “Em nome do Pai”; baixava-o até ao ventre, a rojar sempre um pouco mais abaixo, a cada descida: “do Filho”; roçava com ele os peitos, por cima da camisa de dormir: “do Espírito… Santo”.


Pouco depois, de cabelo cortado e pescoço escanhoado, o presidente abandonou a barbearia do “ti” Matias, seguido pelo secretário. O padre Onanias sentou-se, pediu só uma aparadela, e daí a pouco estava na igreja.

Dona Veludina, a esposa do presidente da Junta, veio pedir-lhe para se confessar. Era uma paroquiana muito bem arranjada, de uns cinquenta anos. Como ainda faltava quase meia hora para a missa, o padre acedeu. Pôs a estola e sentou-se no confessionário. Do outro lado da grelha, a senhora, em vozinha sussurrante, pediu perdão dos pecados e começou a estender um rol dos atos que vinha a praticar com o seu homem e que ela temia que fossem pecados da carne. Pormenorizava o que ele fazia, como fazia, com que vagares. O padre Onanias, envolvido pelo perfume floral de dona Veludina, ia ouvindo a confissão num fluxo morno ciciado junto ao ouvido, tentando avaliar se a paroquiana era culpada de luxúria ou tudo se devia ao cio do marido. Foi a voz suave de dona Veludina que se encarregou de o elucidar: queria confessar tudo, porque se sentia culpada de ter gostado e de ter colaborado com entusiasmo. “Perdoai-me, padre, que eu pequei!”, pedia. O sacerdote observava o rubor do rosto da pecadora, os lábios cheios, o suave arquejo do peito generoso. Concluiu pela condenação: vinte padre-nossos.


Dona Veludina sentou-se na sua cadeirinha almofadada da primeira fila e esperou pela missa, enquanto cumpria a penitência. Sentia-se mais aliviada. Tinha confessado tudo. Ou quase. Tinha descrito as partes mais escabrosas, mas dissimulara com quem praticara os atos confessados. Não tivera coragem de contar que, às vezes, enquanto o marido ia à reunião com o presidente da Câmara, na cidade, ela se encontrava com o secretário Azeitão, num anexo da Junta. Por outro lado, cedera ao prazer mórbido de se alongar em pormenores, para ver a reação do jovem padre. Pressentira a sua perturbação, o que, perfidamente, lhe agradara.


O padre Onanias disse a missa um pouco inquieto. Não que duvidasse da sua vocação, mas aquela vozinha insinuante reavivara-lhe algumas memórias gratas de adolescente. Quando chegou o momento da comunhão, dona Veludina encabeçou a pequena fila de comungantes. Ajoelhou à frente do padre, entreabriu a boca, pôs a língua ligeiramente de fora, estendeu um pouco o rosto para a frente e fechou os olhos. O padre, sugestionado, pensou reconhecer nesta visão uma das peripécias lúbricas ouvidas há pouco em confissão, mas mal hesitou: pegou na hóstia branca e, com calma forçada, depositou-a na língua húmida e rosada da cativante paroquiana. Logo a língua se recolheu com a sua preciosa carga, como se recolheu dona Veludina à sua cadeira, de cabeça humildemente baixa, tentando não morder o que era para manter na boca até se liquefazer.


Acabada a missa, o padre Onanias refugiou-se no seu pequeno reservado da sacristia. Depois de, em gestos rápidos, retirar os paramentos, sentou-se na cadeira da escrivaninha e abriu a sua Bíblia, de onde retirou um “santinho”. Era uma reprodução de uma “virgem do leite” do pintor Frei Carlos, que ele procurava em momentos de maior perturbação, desde os longos tempos de desamparo do seminário. Reviu o rosto adolescente da imagem, o olhar inocente, a boca onde parecia aflorar um sorriso compreensivo. Demorou-se a contemplar o seio da Virgem, que esta apertava, e do qual jorrava um fino esguicho de leite em direção à boca do Menino, da qual escorria em veios brancos pelo queixo. A estampa, talvez pela assumida carnalidade, desencadeava sempre um movimento do seu âmago, desta vez potenciado pela visão dos seus dedos a introduzirem na boca recetiva de dona Veludina o corpo de Cristo, com a mesma delicadeza com que agora seguravam o seu corpo e, mentalmente, repetiam o mesmo gesto. A centelha celestial não tardou. Em arrebatamento. Em ausência de si. Em transcendência. A comunhão com o divino atingia-se de muitos modos.


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 24ª edição (novembro/dezembro de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 79 a 81).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_24__edi__o


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Imagem: Frei Carlos, Virgem do leite, 1518–1525.

Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.


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