10/02/2021

A talentosa professora Camila



A anterior confiança de Alcides vacilava. Acreditara que, apesar de toda a conjuntura desfavorável, seria possível a um licenciado em Construção e Conservação de 21 anos encontrar trabalho na terra da Merkel. Infelizmente, faltava-lhe uma disciplina para terminar o curso. A professora de Patologias da Pedra ameaçava não lhe dar nota para passar.

É certo que tinha feito um ano com muito namoro e muita cerveja, pelo que ambos os testes deram negativa. Até maio, no entanto, confiava que o seu charme e alguma melhoria no trabalho escrito alterassem o rumo negativo. Quando saiu a fraca nota do trabalho, foi falar com a professora, uma morena de uns quarenta e poucos anos, de cabelo curto e seios cheios, que ele costumava comer com os olhos nas aulas, explicando-lhe que o seu futuro estava dependente apenas daquela disciplina e pedindo-lhe, insinuante, que não o fizesse voltar no ano seguinte. Ela avaliou a importância do problema com um olhar simpático, quase cúmplice.

Alcides, eu não quero chumbar ninguém, mas você está com uma nota muito baixa. E estamos em meados de junho, as aulas já acabaram; já não há tempo para uma improvável recuperação. O que acha que eu posso fazer?

No momento, Alcides estava disposto a fazer qualquer coisa para salvar o ano e tudo lhe parecia possível.

Professora, dê-me uma semana. Depois pode fazer-me a prova que quiser.

Foi uma semana arrasadora. Levantava-se pelas sete e lia tudo o que encontrava da bibliografia até perto da meia-noite, só com intervalos para comer. Andava com os olhos como os dos cachuchos, de tanto queimar as pestanas.

Na tarde do sábado seguinte, Alcides compareceu na morada indicada, uma pequena vivenda da encosta de Pedrouços. Um jardinzito separava a porta, da rua.

A professora Camila recebeu-o cordialmente, convidando-o de imediato para lanchar. Vestia-se de maneira informal: um polo amarelo de decote em bico, que lhe realçava o peito, e umas calças leves pelo meio da canela. Camila encaminhou-o para a cozinha, para não o deixar sozinho enquanto preparava o chá.

Estudou muito, Alcides? — lançou sorridente.

Sei tudo na ponta da língua, professora. Vai ver! — respondeu ele, sincero.

Instalaram-se na pequena mesa da cozinha, à frente de um bule de chá e duas torradas.

O seu marido não lancha connosco? — quis saber Alcides.

Não; ele afinal saiu ontem para um congresso e só volta amanhã à noite. Somos só os dois — adiantou, com um sorriso talvez neutro, talvez não.

Alcides, como bom entendedor, ficou alerta para quaisquer indícios propiciadores daquela oportunidade potencial. Talvez por isso lhe tenha parecido que Camila espalhava a manteiga na torrada de maneira um pouco lasciva. E bebericava o chá pegando na chávena com ambas as mãos e fazendo um biquinho com os lábios. Estar a sós com a professora que tantas vezes desejara, em ambiente não de intimidade, mas ainda assim de privacidade, espicaçava-lhe os instintos. «Será que vou ter sorte?», divagava furtivamente.

Então, vamos começar? — inquiriu Camila, convidando o aluno para a sala.

Um pouco nervoso, mas confiante, Alcides instalou-se num maple, enquanto a professora se sentou no sofá em frente.

Como combinámos, Alcides, é preciso que eu fique com a certeza de que você está bem seguro da matéria, para conseguirmos reverter a situação. Está calmo e concentrado?

Ao aceno afirmativo de Alcides, pensou numa pergunta básica e lançou:

O que são rochas?

Alcides baixou os olhos procurando a concentração que se esbatera quando Camila, ao pensar na pergunta, baixara a cabeça e o tronco, expondo um pouco mais de pele, no decote.

São sistemas químicos inorgânicos. Formaram-se num determinado ambiente geológico e refletem o equilíbrio termodinâmico atingido na fase de formação. (…) Têm composição química razoavelmente bem definida, mas em proporções variáveis, pelo que não há duas rochas iguais.

Quais as tipologias mais frequentes? — continuou Camila, após a mesma flexão de tronco.

Alcides, embora atento à pergunta, não conseguiu evitar que os olhos se abandonassem ao vislumbre daquela alvura láctea. Demorou um pouco a iniciar a resposta.

Sabe a resposta ou passamos a outra? — condescendeu Camila, após uns segundos.

Não, não! — reagiu Alcides. — Em peso, a quarta parte da crusta terrestre é composta por silício e metade por oxigénio. Os minerais mais abundantes são os silicatos, nas ígneas (granitos e basaltos), sedimentares (argilas, xistos e grés) e metamórficas (gnaisses e micaxistos), seguidos de longe pelos carbonatos, nas sedimentares (calcários) e metamórficas (mármores).

Muito bem! Que rochas predominam nos monumentos portugueses?

A concentração de Alcides baqueava. Aquelas rotundidades anunciadas estavam prestes a condená-lo. Baixou os olhos a tentar recompor-se, mas entrara numa batalha interior, como um computador bloqueado por excesso de tarefas.

Alcides, você prometeu-me que ia preparar-se! O que se passa?

O jovem, encurralado, resolveu abrir o jogo.

Professora, desculpe, mas não consigo concentrar-me — declarou, apontando com os olhos para a origem da perturbação.

Camila olhou para o próprio decote.

Oh, desculpe. De qualquer modo, na vida profissional temos de saber ultrapassar certas pequenas distrações. Quer que me tape? — perguntou, sincera, puxando o decote para cima. Após a hesitação de Alcides, perguntou com um sorriso irónico: — Ou quer que me destape?

Alcides leu a pergunta como uma das tais oportunidades que podem render benefícios sensuais, se não forem desperdiçadas.

Posso escolher? — arriscou, com um sorriso cúmplice. — Podíamos fazer uma espécie de strip-poker! — adiantou, de olhar brilhante.

Camila ficou uns segundos calada a avaliá-lo. Há muito tinha percebido como era malicioso aquele aluno. Depois levantou-se e foi ao bengaleiro buscar um cachecol.

Acho que o melhor é tapar-lhe os olhos, para não se distrair — anunciou, enquanto lhe enrolava o pano em torno da cabeça, atando-o atrás.

Ok, professora — concedeu Alcides, desistindo de expectativas mais ambiciosas, que tinham chegado a dominá-lo nos últimos momentos. — Já vi que não tenho sorte…

Alcides, você é danado! A sorte não cai do céu; constrói-se todos os dias — ralhou docemente, fazendo-se desentendida. — Se calhar foi um ano com brincadeira a mais. Mas eu não acho mal, se o estudo não for de menos. O importante é atingir o objetivo. — Meditou um pouco. — Sabe qual é o meu objetivo, neste momento? Conseguir que você acerte as respostas às perguntas que lhe quero fazer. Mas, por falar em sorte, também não desgosto de jogos atrevidos — disse a sorrir. — Vamos lá experimentar esse póquer maroto. Uma peça de roupa por cada resposta, é isso?

Maravilha, professora! Já me agrada mais.

Uma coisa lhe prometo: se você acertar as respostas todas, ganha uma prenda no fim…

Bora lá, professora! — rejubilou Alcides, a abarrotar de entusiasmo por baixo do cachecol.

Vamos lá, então. Que mármores coloridos da península de Lisboa conhece?

O encarnadão de Pêro Pinheiro, o amarelo de Negrais, o azul de Sintra e o negro de Mem Martins.

Boa! Lã vão as sabrinas. O que é a meteorização?

Ao ouvir o som das sandálias a cair, Alcides percebeu que seria vantajoso acompanhar e tirou também os ténis, antes de responder:

Quando a rocha é arrancada à pedreira e colocada sob o ataque de agentes externos, como o ar, as diferenças de temperatura, a água — com as consequentes oxidações, expansões e dissoluções —, as redes cristalinas da rocha são destruídas ou rearranjadas. É a essa tentativa de reequilíbrio que chamamos meteorização. A desagregação é o equilíbrio final que a rocha de um edifício atinge.

Boa! Essa bem merece a camisola. Fora! Fale-me da corrosão.

Ainda mal pressentira que Camila despia o polo e já Alcides tirava a sua t-shirt. Cheio de confiança, não hesitou:

A corrosão avança nos pontos vulneráveis do sistema cristalino. Os cristais reais não são perfeitos; podem conter dezenas de milhões de defeitos por centímetro cúbico: deslocações, lacunas, impurezas. Tais defeitos representam outros tantos constrangimentos físicos. Ao nível do grão, uma rocha é tanto mais resistente quanto mais fino for o seu grão.

Muito bem! — incitou Camila, sem dar a entender que o seu olhar, à solta, se alongara no desfrute do tronco robusto e algo peludo do aluno. — Calças fora. O que são crostas negras?

Alcides, de coração acelerado, tirou as calças de ganga. Estava num estado de alguma agitação, visualizando a professora com o belo peito a sobressair do sutiã e em cuequinhas.

São zonas enegrecidas nas superfícies das pedras, constituídas por depósitos de sais e de partículas da poluição da atmosfera, as quais produzem gesso a partir do dióxido de enxofre e do ácido sulfúrico destas, na sua interação com os substratos siliciosos e carbonatados.

Certo! Falta uma. Qual a origem dos oxalatos de cálcio nas superfícies dos edifícios?

Alcides ouviu o bater dos fechos do sutiã sobre a mesinha de apoio. A informação química desencadeada percorreu o seu corpo a alta velocidade, levando ordens aos corpos cavernosos. Alguma coisa em si passou a forcejar para se libertar. Alcides ofegava. Era demasiado bom o que lhe estava a acontecer. E sabia a resposta seguinte.

Os oxalatos, visíveis como formações relevadas, não têm origem em deposições externas sobre a pedra, mas na transformação dela. Devem ser associados à segregação de ácido oxálico pelas raízes de fungos, algas e líquenes, na sua atividade bioquímica sobre as rochas carbonatadas.

Muito bem, Alcides, muito bem! Pode tirar o pano dos olhos.

Yes! — gritou o felizardo, saltando e arrancando de repelão o cachecol, desejoso de passar à prometida fase seguinte. Inexplicavelmente, a professora continuava vestida. Perante o rosto de surpresa e desapontamento do aluno, Camila sorriu, quase maternal, escondendo alguma perturbação.

Ainda bem que o cachecol permitiu que não se distraísse mais. Correu bem, não acha? Está satisfeito?

Satisfeito é dizer pouco. É evidente que estou muito… mesmo muito contente — abandalhou Alcides, ainda confiante, exibindo os bóxeres tensos. — Mas a festa vem agora, não foi o que prometeu, professora?

Prometi-lhe uma prenda, sim. Quere-a já? — indagou, um pouco matreira.

Ó professora, é o que eu mais quero — inflamou-se Alcides. — Sempre a desejei!

Está bem! Eu também acho que é a coisa mais importante para si, agora. Aqui tem! — E estendeu a Alcides uma folhinha com a nota final da disciplina: 11. — Tudo de bom para si, lá na Alemanha! E beijinhos à senhora Merkel — riu.


Joaquim Bispo


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Imagem: Escultura de Francisco Simões.

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(Este conto integra a coletânea Bad Girl — Contos Eróticos, Silkskin Editora, Lisboa, 2015.)

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10/01/2021

Para além do confessável

 

Quando o padre Onanias entrou na barbearia, temeu por um momento que não fosse conseguir cortar o cabelo antes da missa das seis: na cadeira do “ti” Matias estava o presidente da Junta, e à espera estava o secretário, mas depressa percebeu que este não vinha para cortar o cabelo; simplesmente acompanhava o chefe para todo o lado.

Boa tarde, meus senhores! — cumprimentou.

Boa tarde, senhor padre! — responderam os três em coro.

Sentou-se num dos bancos forrados a napa que se alinhavam voltados para a majestosa cadeira onde os homens se vinham libertar de sumptuosas melenas, quando se tornavam demasiado rebeldes para aceitar o pente. Na telefonia acabara de cantar Artur Garcia e anunciava-se Suzy Paula.

Então, senhor padre, já está ambientado cá à terra? — perguntou o presidente.

O padre Onanias tinha sido colocado em Leirosa do Côa havia pouco mais de um mês e quase só conhecia o pequeno grupo que ia à missa. Ainda não tinha atingido os trinta anos, era alto e rosado, e não vestia batina.

Sim, já conheço bastantes paroquianos, alguns até em confissão. Já se confessaram este ano? — inquiriu, com um prazer pouco católico.

Lá havemos de ir, senhor padre! — respondeu o presidente, prazenteiro. Era um homem na casa dos sessenta, um pouco anafado, de cabelo ralo e nariz abatatado. — Todos os anos, pela Páscoa, me confesso. Eu e aqui o meu secretário, não é verdade, Azeitão?

O visado acenou que sim, subserviente. Teria quarenta e poucos anos, usava o cabelo liso com brilhantina e trazia um fato escuro.

Mas isto é uma terra sem pecados — carregou o presidente, enquanto o barbeiro se esmerava no recorte da orelha direita. — Aqui é tudo boa gente, sem cobiça, sem luxúria. Olhe, aquela que ali vai, a dona Naftalina, não deve ter mais de cinquenta anos; ficou viúva há uns quatro e nunca mais se lhe conheceu homem, ou sequer interesse por eles. Passa a vida na igreja. Às vezes, até gostava que houvesse mais movimento, para a gente ter de que falar, sem ser só de caça. A propósito, o senhor padre não caça? — rematou, com muita malícia na entoação. — Há por aí umas coelhas…

O secretário e o barbeiro riram-se, mas com pouco à-vontade, devido à inconveniência do presidente da Junta. O padre também riu, e sem cinismo.

Há muito tempo que a minha alma e o meu corpo pertencem à Igreja. Sou homem, reparo quando uma mulher é bonita, mas estou comprometido com algo maior e só aos seus encantos me dedico — acentuou, numa meia verdade. Fazia parte do saber viver do relacionamento social.

Ah, senhor padre, contam-se muitas histórias de padres e saias. E não são batinas. Ali na aldeia de Trevez correram com o de lá, há uns cinco anos, porque andava metido com a governanta, o desavergonhado. Levou uma sova!

Há sempre ovelhas ronhosas em todos os rebanhos. Por mim, espero ficar aqui por muitos anos, com o respeito de todos, que já vi que estou entre gente honrada.


Sentada numa das filas da frente da igreja, dona Naftalina observava o Cristo crucificado de tamanho natural, que estava em fundo, sobranceiro ao altar-mor. Os seus olhos percorriam os músculos das pernas, magras como as do seu Grinaldo, que Deus tinha. Custava-lhe muito a viuvez. Nenhum homem se tinha aproximado, a não ser o untuoso do presidente da Junta, com umas insinuações porcas. Ela própria também não se mostrava acessível. Tinha muitas saudades, mas do seu homem. Recordava-o, ao olhar este Cristo: o mesmo corpo ossudo, a barba, uma certa expressão de abandono. Ficava horas esquecidas a percorrer-lhe o corpo com o olhar. Em momentos de maior desvario, imaginava que o abraçava, indefeso, e lhe arrancava o pano que a separava de algo tão indefinível que só se reconhece quando se volta a experimentá-lo. Louca! O mais perto que conseguia chegar desse algo indefinível acontecia quando, antes de adormecer, se persignava interminavelmente com o crucifixo, em que um Cristo em tudo igual, só que mais pequeno, abria os braços de impotência perante tal carência. Elevava-o ao rosto, aos lábios, beijava-o: “Em nome do Pai”; baixava-o até ao ventre, a rojar sempre um pouco mais abaixo, a cada descida: “do Filho”; roçava com ele os peitos, por cima da camisa de dormir: “do Espírito… Santo”.


Pouco depois, de cabelo cortado e pescoço escanhoado, o presidente abandonou a barbearia do “ti” Matias, seguido pelo secretário. O padre Onanias sentou-se, pediu só uma aparadela, e daí a pouco estava na igreja.

Dona Veludina, a esposa do presidente da Junta, veio pedir-lhe para se confessar. Era uma paroquiana muito bem arranjada, de uns cinquenta anos. Como ainda faltava quase meia hora para a missa, o padre acedeu. Pôs a estola e sentou-se no confessionário. Do outro lado da grelha, a senhora, em vozinha sussurrante, pediu perdão dos pecados e começou a estender um rol dos atos que vinha a praticar com o seu homem e que ela temia que fossem pecados da carne. Pormenorizava o que ele fazia, como fazia, com que vagares. O padre Onanias, envolvido pelo perfume floral de dona Veludina, ia ouvindo a confissão num fluxo morno ciciado junto ao ouvido, tentando avaliar se a paroquiana era culpada de luxúria ou tudo se devia ao cio do marido. Foi a voz suave de dona Veludina que se encarregou de o elucidar: queria confessar tudo, porque se sentia culpada de ter gostado e de ter colaborado com entusiasmo. “Perdoai-me, padre, que eu pequei!”, pedia. O sacerdote observava o rubor do rosto da pecadora, os lábios cheios, o suave arquejo do peito generoso. Concluiu pela condenação: vinte padre-nossos.


Dona Veludina sentou-se na sua cadeirinha almofadada da primeira fila e esperou pela missa, enquanto cumpria a penitência. Sentia-se mais aliviada. Tinha confessado tudo. Ou quase. Tinha descrito as partes mais escabrosas, mas dissimulara com quem praticara os atos confessados. Não tivera coragem de contar que, às vezes, enquanto o marido ia à reunião com o presidente da Câmara, na cidade, ela se encontrava com o secretário Azeitão, num anexo da Junta. Por outro lado, cedera ao prazer mórbido de se alongar em pormenores, para ver a reação do jovem padre. Pressentira a sua perturbação, o que, perfidamente, lhe agradara.


O padre Onanias disse a missa um pouco inquieto. Não que duvidasse da sua vocação, mas aquela vozinha insinuante reavivara-lhe algumas memórias gratas de adolescente. Quando chegou o momento da comunhão, dona Veludina encabeçou a pequena fila de comungantes. Ajoelhou à frente do padre, entreabriu a boca, pôs a língua ligeiramente de fora, estendeu um pouco o rosto para a frente e fechou os olhos. O padre, sugestionado, pensou reconhecer nesta visão uma das peripécias lúbricas ouvidas há pouco em confissão, mas mal hesitou: pegou na hóstia branca e, com calma forçada, depositou-a na língua húmida e rosada da cativante paroquiana. Logo a língua se recolheu com a sua preciosa carga, como se recolheu dona Veludina à sua cadeira, de cabeça humildemente baixa, tentando não morder o que era para manter na boca até se liquefazer.


Acabada a missa, o padre Onanias refugiou-se no seu pequeno reservado da sacristia. Depois de, em gestos rápidos, retirar os paramentos, sentou-se na cadeira da escrivaninha e abriu a sua Bíblia, de onde retirou um “santinho”. Era uma reprodução de uma “virgem do leite” do pintor Frei Carlos, que ele procurava em momentos de maior perturbação, desde os longos tempos de desamparo do seminário. Reviu o rosto adolescente da imagem, o olhar inocente, a boca onde parecia aflorar um sorriso compreensivo. Demorou-se a contemplar o seio da Virgem, que esta apertava, e do qual jorrava um fino esguicho de leite em direção à boca do Menino, da qual escorria em veios brancos pelo queixo. A estampa, talvez pela assumida carnalidade, desencadeava sempre um movimento do seu âmago, desta vez potenciado pela visão dos seus dedos a introduzirem na boca recetiva de dona Veludina o corpo de Cristo, com a mesma delicadeza com que agora seguravam o seu corpo e, mentalmente, repetiam o mesmo gesto. A centelha celestial não tardou. Em arrebatamento. Em ausência de si. Em transcendência. A comunhão com o divino atingia-se de muitos modos.


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 24ª edição (novembro/dezembro de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 79 a 81).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_24__edi__o


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Imagem: Frei Carlos, Virgem do leite, 1518–1525.

Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.


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10/12/2020

O Paladino

 


O rei Milore e Guloz, o senescal do rei Justin, caçam o veado na floresta de Gamywood. Estão acompanhados pela rainha Florence e pelos cavaleiros de ambas as casas. A manhã vai avançada e ainda não abateram qualquer peça de caça. Avistam um veado, um enorme “doze-hastes”, pastando calmamente numa encosta fronteira. Guloz levanta o arco. Ao ver tal, o rei Milore incita o convidado:

A esta distância, homem algum lhe consegue acertar!

Que prémio me dareis, se o atingir? ─ inquire Guloz, sobranceiro.

O rei semicerra os olhos e avalia a distância: “Impossível!”

O que me pedirdes! ─ declara o rei, categórico.

O senescal retesa o arco. Um gavião passa a voar à esquerda do grupo. Os corações dos homens do rei apertam-se. A flecha parte, voa como nunca se vira, dirige-se velozmente em direção ao animal. Surpreendentemente, trespassa o flanco do veado que logo cai morto.

Levanta-se um coro de regozijo na comitiva. O cavaleiro Potranc está apreensivo. O rei grita:

Hurrah! Que bela peça vamos ter hoje para a ceia. Felicitações, sire! Dizei-me, então, que prémio quereis por esta proeza. Palavra de rei não volta atrás!

Guloz olha em volta e dá com os olhos na jovem rainha.

Quero a rainha Florence.

Um rumor atravessa toda a comitiva. Os cavaleiros do rei agitam-se, belicosos. O mais exaltado é Potranc. O rei mostra-se pesaroso e impotente. Ouvem-se palavras de revolta. Há muitas mãos nos punhos das espadas. A rainha intervém:

Sires, mostremos nobreza aos nossos convidados; não os hostilizemos. Eu irei com sir Guloz, já que ele assim o quer e o ganhou pela sua destreza em desafio justo.

Guloz, seguido pelos seus cavaleiros, parte de imediato, levando a rainha Florence.

Potranc diz ao rei:

Vós, pela vossa palavra, nada podeis fazer, mas eu, que não aceito a perda da minha senhora, irei resgatá-la de Guloz.

O fogoso cavaleiro parte a galope, sem que alguém o tente demover. Embrenha-se no caminho da floresta, por onde o grupo desapareceu. Ao fim de um bocado, chega a um riacho cuja ponte foi derrubada; pelos homens de Guloz, certamente. Mete o cavalo à água, o qual luta para vencer a força da corrente com tal peso na garupa. Passam ambos o obstáculo, sãos e salvos.

Logo à frente, encontra dois cavaleiros do senescal, que montaram guarda. Postam-se a barrar a passagem a Potranc. Este desembainha a espada e investe contra o primeiro. Retinem os metais. O segundo cavaleiro ataca-o pelo outro flanco. Potranc espadeira à esquerda e à direita. Num golpe à perna, corta o estribo do primeiro, que se desequilibra e cai. Ao segundo, assesta um golpe no elmo, que o deixa atordoado.

Potranc não quer combater, só passar. Avança. Mais à frente, chega a uma bifurcação. Há sinais de cascos em ambos os caminhos. Vê um monge que anda a apanhar ervas medicinais para as suas mezinhas. Diz-lhe:

Meu padre, se vistes passar a comitiva do senescal Guloz, dizei-me por que caminho seguiu.

Todos os caminhos vão dar ao Senhor, mas o do evangelho é mais direto que o da epístola ─ responde o santo homem.

Deixai-vos de enigmas, que isto não é um romance de Chrétien de Troyes ─ riposta Potranc de mau humor. ─ Indicai-mo sem demora!

À vossa direita, sire ─ diz o monge, após o que murmura entre dentes: “Nada se pode ensinar a quem pensa que tudo sabe!”.

Potranc retoma o galope. A tarde inteira, Potranc cavalga a toda a brida e esporeia o cavalo que, não suportando tal esforço, tomba e morre. O cavaleiro prossegue a pé.

Num troço do caminho onde o matagal é mais espesso, Potranc depara com um enorme javali. O animal, ou porque está a defender o território ou porque acha agressiva a figura do cavaleiro a pé, arremete de presas prontas a rasgar o que se lhe meta à frente. Potranc, surpreendido, só pode saltar para o lado. A besta volta à carga, mas o cavaleiro, treinado em justas de lança, aplica um tal golpe, com a sua espada Morandina, na cabeça do varrasco, que este tomba de crânio aberto.

Potranc prossegue. De um ramal, surge um almocreve, com uma carga de loiça no seu carro puxado por uma mula.

Para onde vais, almocreve? ─ indaga o cavaleiro apeado.

Para o castelo do rei Justin. Se quiserdes, posso levar-vos ─ responde o carregador, solícito.

Potranc não tem outro remédio senão aceitar, apesar da situação pouco nobre para um cavaleiro. Toma lugar ao lado do almocreve e rumam ao castelo, onde espera encontrar a sua senhora. Chegam à noitinha.

Potranc, informado pelo seu benfeitor, dirige-se à torre onde Guloz habita. Sobe os degraus a dois e dois. O seu peito está cheio de receio, pelo que possa ter acontecido à sua rainha. Ouve a voz de Florence, em gritos de aflição. Vêm do ponto mais alto da torre. Lá chegado, Potranc encontra dois homens armados a defender uma porta. De trás dela, vêm os gritos da sua senhora. Louco de fúria, arremete de espada em riste contra os sequazes de Guloz. Tinem os ferros num bater ritmado, chispando a cada golpe. Guloz assoma, a ver o que se passa. Pela porta aberta, Potranc vislumbra a sua senhora de cabelos em desalinho.

Minha senhora, morrerei, se tal for preciso, para vos salvar ─ grita o cavaleiro, entre duas espadeiradas.

Guloz, com um gesto, manda parar o combate.

Que quereis daqui, cavaleiro?

A minha senhora, que vós, maliciosamente, usurpastes ─ responde Potranc enraivecido.

Vistes bem que não forcei o rei Milore a prometer-ma. Ganhei-a em aposta leal.

Aposta, sim, mas não leal. Um nobre cavaleiro, além do mais, convidado, não se aproveita assim, dum gesto magnânimo do seu anfitrião. Vós não tendes nobreza.

Já que quereis tanto bem à vossa senhora, prometo entregar-vo-la se cumprirdes com êxito três tarefas que vos vou indicar: matar o javali que vive na gruta do Diabo; enganar a bruxa do Penedo e fazê-la beber da sua própria poção; e encontrar-me a espada que deixei cair ao Lago do visco ─ enumera Guloz com um sorriso furtivo.

Não vou cumprir nenhuma dessas estúpidas tarefas ─ riposta Potranc. ─ Não que me intimidem. O mais certo é que não respeitásseis a vossa própria palavra e criásseis outros obstáculos. Vós sois matreiro e cobarde!

O cenho de Guloz carrega-se. Está prestes a bradar por reforços, quando chega o rei Justin, atraído pela algazarra que a luta na torre tinha provocado. Quer ouvir ambas as partes. Depois, sentencia:

Guloz tem razão porque, dadas as condições e embora sem nobreza, conquistou o direito a escolher a rainha como prémio, mas Potranc, como seu paladino, tem direito a procurar contestar essa condição que desonra a rainha e o rei Milore. Tal situação também me constrange e temo que ponha em perigo as boas relações que têm existido entre os dois reinos. Estais dispostos a lutar por Florence, em combate singular?

Ambos os contendores assentem. Na manhã seguinte, à hora combinada, em frente aos cavaleiros dispostos em fila e às damas da corte, que se aglomeram junto ao palanque real, alinham-se os antagonistas. Justin dá sinal para começarem. Cada um esporeia o cavalo que lhe foi distribuído e arremete contra o outro, de lança em riste. O primeiro golpe faz voar um troço da ponta de cada lança. Os cavaleiros voltam para trás e tornam a enfrentar-se. Uma e outra vez as lanças apontam ao peito do adversário e, todas as vezes, a espada do oponente afasta o perigo, com um golpe potente e decidido. Quando de cada lança não resta mais que um toco, trocam por novas e recomeçam o combate.

Neste reinício, Potranc engana o rival e atinge-o com a lança em pleno peito. Guloz é arrancado da montada e cai desamparado. Potranc não se aproveita da vantagem. Desmonta e prossegue o combate a pé. Guloz já se levanta e maneja a espada enraivecido. Durante muito tempo, os escudos ressoam com as pancadas dos ferros. Os cavaleiros que assistem mantêm-se silenciosos, mas as damas não conseguem evitar um ou outro grito de emoção. As maiores simpatias vão para o defensor da rainha Florence.

De repente, um brado. Potranc, entrando pela nesga entre a proteção do ombro e a do tronco, penetra a cota de malha de Guloz e atinge-lhe a carne. O senescal sangra abundantemente e parece exausto. Finalmente, cai de joelhos, sob o peso da armadura. O rei manda parar a disputa, não que Potranc faça menção de atacar o adversário no chão, mas por se tornar claro de que lado está a razão neste ordálio. A rainha Florence será confiada à proteção de Potranc; Guloz, sem honra para continuar a ser o senescal do rei Justin, será expulso do seu reino.

Após uma refeição festiva, Potranc e a rainha partem, cada um em seu cavalo, nobremente ajaezados. Embrenham-se na floresta, de regresso ao seu castelo, mas por um caminho que evita a ponte caída. A tarde vai soalheira, a floresta enche-se de cores fortes, mas nenhuma parece mais agradável a Potranc que o dourado que se solta em chispas, quando o sol atinge a cabeleira loura de Florence.

De repente, um texugo passa a correr à frente do cavalo da rainha. Este assusta-se e toma o freio nos dentes. Potranc vai atrás, tentando travar o galope louco do animal. Embora o comando dum cavalo não tenha segredos para a rainha, desta vez, não consegue dominá-lo e cai, felizmente, sobre um tufo de junco. Não se magoa. O cavalo desaparece pelo caminho que seguem e que serpenteia por entre as árvores. Não há outro remédio senão subirem para a mesma montada e viajarem muito mais devagar.

Daí a pedaço, o sol baixa e a floresta começa a escurecer. Passam por um forno de carvão, chegam à cabana do carvoeiro, que parece não receber o dono há semanas, e resolvem pernoitar ali. Enganam o estômago com maçãs silvestres e descansam, como podem ─ Florence no catre do carvoeiro e Potranc reclinado sobre a sela.

Na manhã seguinte, quando Potranc acorda, fica amorosamente enlevado pelo rosto adormecido da sua senhora sobre um mar de fios dourados, cujas ondas enrolam na cabeceira. A rainha acorda também e percebe o arrebatamento no olhar claro do seu paladino, iluminado pelos alvores da manhã.

Bem conhece ela o entusiasmo que o cavaleiro põe nos poemas e louvores que canta à sua beleza e a outros atributos e talentos, nos alegres e prazerosos serões do castelo, e lhe valem, não sem fundamento, o epíteto maldoso de “lançarote”. Sim, é certo que, muitas vezes, vai visitar o leito de Milore, mas com a alma deleitada pelas palavras e as canções de Potranc. Não será o rei que reclamará por esse acréscimo de languidez.

Eis agora junto a si, de olhar apaixonado e depois de se ter sujeitado a tantos perigos para a salvar, o mesmo generoso e bravo jovem que tantas vezes a faz sonhar nos jogos de amor cortês. Os seus olhares fundem-se numa comunhão de almas mutuamente afeiçoadas. Uma enorme ternura invade Florence que quase desfalece. Os corações abandonam-se à vontade do destino. Nenhum tenta resistir à atração.

Os lábios encontram-se e os corpos pressionam-se um contra o outro num paroxismo de desejo há muito sublimado. As mãos libertam roupas e tateiam geografias ocultas. Potranc vislumbra finalmente o mármore e a seda que tantas vezes adivinha no corpo da sua senhora, quando nele cogita. Florence entrevê nos peitorais do cavaleiro a potência do Arcanjo Miguel. O encontro da seda e do couro não pode ser dito por palavras; o purgatório deve ser assim; o advento do paraíso é uma urgência.

Mas o corpo de Potranc, tão lesto e magnânimo quando, na solidão do seu leito de cavaleiro, fantasia com a rainha, mostra-se agora preguiçoso e refratário. A iminência de receber, sem resistências nem hesitações, a rendição da fortaleza, que sempre lhe parecera inexpugnável, desarma-o. A retirada é sombria e embaraçosa.

Florence cicia um «Não faz mal, meu paladino!». Acrescenta no mesmo tom «Sei agora que me respeitais tanto como me amais», enquanto lhe acaricia o rosto, onde uma névoa de tristeza se instalou. Ficam muito tempo abraçados, envoltos no chilrear matinal da passarada em afazeres primaveris. Aninhado nos braços da sua senhora, Potranc adormece sobre o seu seio.

Nesse momento, o cavalo de Potranc relincha e ambos percebem que é tempo de regressar aos domínios do castelo, onde, desde os servos da gleba ao castelão, todos os esperam inquietos, sem saberem que Potranc já resgatou galhardamente a rainha e a traz de volta sã e salva.

Cavalgando com a sua senhora à garupa, Potranc é a imagem imponente do paladino intrépido e abnegado.


Joaquim Bispo

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Imagem: Henry J. Ford, Lancelot traz Guenevere a Arthur, 1902.

Ilustração de O Livro de Romance, de Andrew Lang, de 1902.

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10/11/2020

Agenda encontrada numa ribanceira da Serra do Açor

 

Dia 10/8/16: Mais uma vez — como todos os verões — vim passar duas ou três semanas na minha terra, esta lindíssima vila de xisto do vale do Alva. Como é bom rever e reviver as paredes de setenta centímetros da minha casa rústica e a sua frescura interior. E espero encontrar os amigos e os familiares, mesmo os emigrados, que “obrigatoriamente” aparecem no verão. Todos querem aproveitar a reunião inusitada para animar a vila com festas, encontros e comezainas.

Como desde há três anos, vou a um almoço dos nascidos em 1944, à semelhança do que fazem os nascidos noutros anos. O almoço é o pretexto para o encontro e a partilha da alegria de estar (ainda) vivo. Reveem-se os conhecidos, reconhecem-se as parecenças antigas por baixo das rugas modernas dos que vêm pela primeira vez, atualiza-se a fisionomia que cada um guarda do outro.


Dia 14/8/16: «O Nunes está todo encarquilhado. A Georgina agora é loira.»

Lembras-te de eu te abrir a cabeça à pedrada? — perguntou-me o Ramos.

Lembras-te de me fazeres serenatas? — tentou a Marisa.

As lembranças são um amontoado de tralha pessoal inútil, falsificada pelas ruminações, em que não consta a maior parte dos registos que os outros guardaram. Lembro-me dos folhos da Matilde, na igreja; lembro-me das reguadas que apanhei por causa do Zé Caçoila. O resto? Sei lá! Deve ter acontecido, se eles o dizem... O mais importante mesmo deve ser o encontro com pessoas do mesmo grupo etário. Ainda que não nos lembremos uns dos outros, temos lembranças no mesmo contexto, porque vivemos no mesmo ambiente, em certo tempo, mas, se calhar, o mais importante é que somos da mesma idade. Como estamos a viver a nossa reforma, a nossa velhice galopante? Vivemos para o futuro ou do passado?

Vocês viram ontem a chuva de estrelas cadentes? ― lançou um tipo de cabelo branco, mas ainda farto, quase à minha frente.

Quando? Ontem? Não soube de nada! ― disse uma. ― Eu à noite vou para a caminha ― respondeu outro. ― Chuva… ― desdenhei eu. ― Estive uma hora num caminho escuro da serra, mas só vi umas cinco.

Aquilo é um espetáculo fabuloso, não achas? ― prosseguiu o aficionado sideral, dirigindo-se-me decididamente.

Acontece todos os anos por esta época, não é? ― comentei, tentando mostrar algum conhecimento. ― Parece que são meteoritos que vêm da constelação de Perseu.

Não é bem assim ― contestou ele, sem alarde. ― São restos da cauda de um cometa que passou por aí.

Interessas-te por astronomia? ― perguntei, meio que para fazer conversa.

Eu interesso-me por tudo ― afirmou, categórico. ― Tem de ser; não quero deixar enferrujar os neurónios.

Os outros tinham-se entretanto alheado da conversa, que se tornara nossa, e falavam dos colegas que tinham morrido, desde o último almoço.

Já viste o que nos espera, se não nos soubermos precaver? ― insinuou, apontando os circunstantes com o queixo.

No resto do almoço, tornou-me seu cúmplice num discurso de meias palavras, que se mostrou enfático quando, após os pratos quentes, deambulámos pelas mesas dos queijos e dos doces:

Convence-te! Nós pertencemos à praga grisalha que só atrapalha. Cada vez somos mais a papar reformas. Que país é que aguenta isto? Passeamos, banqueteamo-nos, consumimos e não produzimos nada, já viste? Que planeta é que suporta isto? Não há recursos que aguentem.

Recebemos reformas, mas trabalhámos para elas ― tentei argumentar.

Mas agora somos uns inúteis. Uma sociedade bem organizada, sem tolerar desperdícios, devia descartar este peso morto.

Mas isso é fascismo! ― indignei-me. ― Felizmente que a esperança de vida aumentou! Querias instaurar uma espécie de eutanásia por caducidade de prazo da validade produtiva?

Olha, porque é que não vens almoçar connosco um dia destes? Tenho um refúgio paradisíaco nos altos da serra do Açor. Podíamos falar deste e doutros assuntos aliciantes que ameaçam a Humanidade.

Apesar da minha relutância inicial, dei por mim a sentir uma curiosidade genuína pelas ideias dele e pelo modo de vida que levaria no tal refúgio serrano.


17/8/16: Às onze apresentei-me em Vide e fui conduzido por um trilho de terra batida que serpenteava pelas faldas da serra até desembocar numa espécie de côncavo arborizado com umas vistas de tirar o fôlego. O local parecia uma quinta de experimentação pecuária e botânica. Vários animais estavam confinados a espaços criteriosamente concebidos, em microambientes bióticos, com plantas específicas para cada animal. Alguns pareceram-me ligeiramente mutantes, como um, semelhante a um pequeno urso, que se alimentava de cenouras.

Conseguimos produzir cenouras com um alto teor de proteínas. A carne vai tornar-se um bem escasso num mundo como o nosso ― argumentou o Martins, o nome do meu insuspeito amigo de infância.

A esposa tinha preparado um almoço delicioso, com beringelas que sabiam a salsichas alemãs, beterrabas amarelas, com sabor a pato, e carne de cabrito que sabia mesmo a cabrito… Com sabor a vegetais, havia outras iguarias muito desleixadas pela maioria dos produtores agrícolas: figos de cato, juncos e fatias de uma espécie de meloa vermelha.

A conversa decorreu animada, mas encaminhou-se para rumos totalmente inesperados, apesar da conversa no almoço dos contemporâneos.

São versados em teorias da conspiração. Afirmam que os governos mundiais estão tomados por interesses estranhos, e que usam muitas técnicas de condicionamento. Dizem que os aviões dos governos espalham químicos na atmosfera, para nos tornar dóceis; que estão a ser aplicados “chips” nos recém-nascidos para monitorização de tendências antissociais; que existem muitos extraterrestres no planeta a preparar a invasão, com a conivência dos governos; que eles querem invadir o nosso planeta, porque ainda não conseguem produzir a carne que os nossos animais produzem com tanta facilidade.

Eu reagi, mais divertido do que assustado:― Mas por que é que vocês suspeitam disso tudo? Têm alguma prova de qualquer dessas teorias?

Então o meu amigo de escola primária, de quem eu não me lembro, abriu-se em revelações, talvez por achar que eu não iria acreditar nele, talvez porque não tinha nada a temer. Disse que, na verdade, ele e a mulher são extraterrestres; que estão na Terra outros duzentos mil; que a vida no seu planeta se tornou assustadoramente claustrofóbica, devido à praga grisalha que lá se tornou quase imortal; que a absurda quantidade de carne necessária à alimentação de tanta gente obrigou-os a socorrerem-se de outros mundos; que a obtenção de carne humana é a prioridade atual, dado o seu sabor sofisticado, parecido com o do cabrito, mas queixou-se da imprevisibilidade do fornecimento proporcionado pelas guerras.

Eu estava abismado, mas arrisquei uma piada, para amenizar a situação:

Caramba! Ainda bem que eu já não sou novo e que a minha carne deve ser rija. Só se fosse para chanfana...


Eles não riram com a piada, ou antes, pareceu-me detetar um ténue e síncrono sorriso a iluminar-lhes o rosto. A conversa alongou-se ainda por várias horas, apesar de alguma inquietação latente minha, mas eles continuaram simpáticos e hospitaleiros. De tal modo que aceitei o convite para jantar e dormir aqui esta noite, neste paraíso natural e incrivelmente sossegado.

Estou a ficar com sono, mas não quis deitar-me sem registar os eventos deste dia incrível, enquanto ainda estão frescos. Amanhã podia não me lembrar.


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 23ª edição (setembro/outubro de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 113 a 116).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_23__edi__o

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Integra também a coletânea A Arte do Terror — Volume 4, da Elemental Editoração, 2017 (páginas 174 a 176).


https://issuu.com/elementaleditoracao/docs/a_arte_do_terror_-_vol_4_pdf?fbPageId=1630337707215091

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Imagem: Lucian Freud, Homem Nu, Vista Posterior, 1991–92.

Museu Metropolitano de Arte (The Met) e Galerias Acquavella, Nova Iorque.

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10/10/2020

O homem invisível

 A H. D. — amigo e mestre

 


Conta-me uma história verdadeira, avô! — lança o menino de uns oito ou nove anos. — Daquelas da televisão!

Desde pequeno que o ancião lhe conta histórias do seu passado profissional na televisão pública, sobretudo as dos tempos pioneiros. Recorda com prazer esses episódios antigos e surgem-lhe mais nítidos do que as vivências recentes. A idade traz destas contradições.

Já tas contei todas, Ricardo! — mente ele, conscientemente. As histórias não acabam nunca, sabe-o bem, a única limitação é a memória. — Queres qual?

Aquela da avaria das luzes da câmara do locutor; e ele fazia caretas, a pensar que a câmara não estava a transmitir — entusiasma-se o miúdo.

Aquela lembrança divertida traz-lhe instantaneamente, sem saber por quê, outra recordação antiga, passada também no mesmo estúdio. Não sabe se já a contou, mas envereda por essa peripécia:

Vou-te contar a do Homem Invisível — declara, confiante na proposta.

Conta, avô, conta! Essa não conheço — delira a criança.

Foi assim: no princípio da Televisão, havia um programa que passava filmes policiais e que era apresentado por um senhor que se intitulava “Inspetor Varatojo”. O senhor explicava muitas coisas dos filmes e a maneira como os polícias e os detetives, por meio de raciocínio e muita observação, descobriam os bandidos que faziam os crimes. O programa era só isso: o senhor a explicar estas coisas e depois passava o filme. Mas era muito popular.

Ricardo começa a ficar parado, preso à história.

Como só tinha um senhor a falar, o programa era feito num estúdio pequenino, ainda mais pequeno do que esta sala. E não precisava de mais do que duas câmaras: uma para dar a cara do senhor e outra para o mostrar em tamanho maior, a ver-se em fundo uma secretária ou um mapa ou algo assim. Na altura, eu era operador de câmara, mas fazia o que fosse preciso, das coisas técnicas. Nessa época, éramos “meia dúzia”, éramos como uma família. Ora, certa vez, o senhor Artur Varatojo — era assim que ele se chamava — precisou de ir ao Brasil, lá por coisas dele. E, portanto, não podia estar cá para apresentar o programa, que passava uma vez por semana.

Então, gravaram-no a falar no estúdio, antes de ele ir embora, e no dia do programa passaram o vídeo! — deduz o rapazito, já muito rodado em tecnologias.

Pois… O problema, Ricardo, é que nessa altura não havia gravadores de imagem, só de som… — articula o avô, ciente da mossa que está a causar nas certezas do petiz e do aumento de curiosidade que lhe está a suscitar.

Não havia, avô? Como é que isso podia ser?

Era! Não havia. Tudo era feito em direto: peças de teatro, concertos, provas desportivas. Só se filmava quando alguma coisa não se conseguia passar em direto.

Já sei, filmavam com uma máquina fotográfica, como aquelas que tens guardadas — adianta-se o neto, a agrupar informações.

Isso! Mas maiores; máquinas de filmar que usavam grandes rolos de fita de filme. Era um processo complicado, demorado e caro. Por exemplo, as notícias para o Telejornal eram captadas em filme. O operador, depois de as filmar, voltava para os estúdios, levava o filme ao laboratório, onde era revelado; depois era montado, para tirarem as partes sem interesse, e só então era posto na máquina que o transmitiria durante a emissão do Telejornal — descreve o ex-técnico com pequenos lampejos no olhar. — Percebeste tudo?

Hmm! Acho que sim. O avô já tem falado disso.

Mas, dessa vez, não filmaram o Inspetor Varatojo, já não me lembro por quê. Se calhar, foi porque gostou da solução engenhosa que combinou comigo.

O quê, avô, tu é que resolveste o problema? — recrudesce o entusiasmo parental do rapaz.

Já não me lembro de quem teve a ideia. Sei que nessa altura — o antigo operador de câmara semicerra os olhos, a concentrar-se na memória, que cada vez está mais volátil — devia ser aí por 1961, 62..., andavam a passar na televisão os filmes do Homem Invisível. Com grande êxito. E uma coisa levou à outra. Pois se o Inspetor não estava cá… estava invisível. Às vezes umas ideias puxam as outras.

O quê, avô, o quê? — o jovem não cabe em si de excitação.

Pensámos pôr o Inspetor Varatojo a apresentar à maneira do Homem Invisível! Embrulhado em ligaduras? Não; invisível. Só com a voz dele.

Eh, avô, isso era batota, não? Só o som?

O problema é que ficava uma imagem muito pobre, sem movimento. Televisão são imagens a mexer. É o que as pessoas esperam. Então, resolvemos dar-lhe algum movimento, para parecer verdade. Fizeram-se as gravações de som do Inspetor Varatojo a apresentar os seus filmes policiais e ele pôde ir à vida dele.

Com tanto contacto com filmes, o ex-técnico aprendera alguma coisa da maneira de fazer render uma história, até porque também passara pela realização.

O que combinaram, avô? Diz, diz! — desvaira o moço, de suspense.

No dia do programa — acho que era às segundas-feiras — apontou-se uma câmara de frente para uma secretária, com uma máquina de escrever em cima; outra câmara só a mostrar a máquina, do ponto de vista de quem estivesse sentado a escrever à máquina. Era uma máquina daquela época, grande, mecânica, com uma letra metálica em cada braço comandado por uma tecla. À hora do programa, quem estivesse em casa a assistir ouvia o bater das teclas e a voz de sempre a apresentar os filmes, mas não via o Inspetor, supostamente sentado à secretária, a ler o que batia à máquina; só a secretária e a cadeira vazia.

Um sorriso deliciado, mas subtil, aflora o rosto do narrador.

A outra câmara ia mostrando a máquina de escrever a bater as teclas sem ninguém lhe tocar. Ninguém, não! A voz do Inspetor avisara no princípio, em tom maroto, que nesse programa ele próprio estava invisível…

Boa, avô; fantástico! Isso devia ser ainda mais interessante do que nos outros dias, não? Mas como é que as teclas batiam sozinhas?

Eh, eh, eh! — a voz excitada do miúdo é música para os ouvidos do ancião. É hora de lhe fazer, finalmente, a revelação. — Por baixo da secretária em que a máquina estava pousada, estava eu, com dez cordéis presos aos dedos, cada cordel atado a um dedo e a um braço da máquina… Enquanto ouvia a voz gravada do Inspetor, eu ia puxando ora um, ora outro cordel, dando a ideia de que o Inspetor invisível é que estava a acionar as teclas...

Caramba, avô! Afinal, nesse dia, o homem invisível eras tu!

Sim, e era duplamente verdade — eu também estava bem invisível por debaixo da secretária.

E as pessoas a julgar que era o Inspetor Varatojo invisível… Esta foi boa, avô! O teu trabalho devia ser muito divertido. Quando for grande, também quero ir trabalhar para a Televisão. Agora, queres jogar às escondidas?


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 22ªedição (julho/agosto de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 130 a 132).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_22__edi__o

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Imagem: René Magritte, O Espelho Falso, 1928.

Museu de Arte Moderna (MoMA), Nova Iorque.

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10/09/2020

O burro e a vaca

 



Era uma manhã cheia de sol. Uma vaca pastava muito tranquila no prado. Embora ninguém a visse sorrir, estava feliz por saborear as tenras folhas do trevo e as flores e as vagens do tremoço. De repente, a serena manhã da vaca foi agitada por um coelho que passou junto dela, tão veloz como todos os coelhos que fogem aflitos dos cães dos caçadores, e lhe gritou:

Sai da frente, vaca!

A felicidade dela desapareceu nesse momento. Estava farta de lhe chamarem vaca. É certo que tinha algum peso a mais, mas estarem sempre a lembrar-lho... Até um insignificante coelho? Estava farta!

Nessa tarde já pouco comeu. Nos dias seguintes, só comeu os talos mais rijos das ervas que lhe pareciam menos nutritivas. Para tentar emagrecer. Durante muitos dias passou fome, mas obrigou-se a comer só o que não a faria engordar.

Na verdade, passadas umas semanas, a vaquinha tão rechonchuda de antes não parecia uma vaca; mais parecia um esqueleto em pé, só pele e cornos.

Um dia passou por ali um burro que ficou muito admirado de ver uma vaca tão mirrada. Perguntou-lhe:

Estás doente, vaca?

A vaca começou a choramingar:

Estou tão infeliz por passar tanta fome e tu ainda me chamas vaca? Eu já não sou vaca; estou até muito elegante!

O que dizes tu? — admirou-se o burro. — Tu és uma vaca; sempre serás uma vaca, mesmo que não sejas gorda.

Então, não é a mesma coisa? — respondeu a vaca, muito convencida. — O mal-educado de um coelho chamou-me vaca… Tu não achas que ele me chamou… gorda?

Claro que não! Ele chamou-te… o teu nome, o nome que os homens te deram — explicou o burro, instrutivo. — Comigo aconteceu uma história parecida: vivia muito infeliz, porque me chamavam burro, e julgava que me chamavam estúpido. Só mais tarde percebi que burro é o meu nome, o nome que os homens me deram. A partir daí, nunca mais me importei. Pois, se é o meu nome!

Ah, então é isso? Faz sentido! — convenceu-se a vaca. — Obrigada, burro! Explicaste-te muito bem. Acho que não és nada “burro”.

E tu não és nada “vaca”. Estás até muito magra e isso não é nada saudável. Vê se comes melhor, para voltares a ser uma vaca bonita.

Quando o burro se afastou, a vaca mastigava um grande ramo de trevos suculentos, mas ainda conseguiu fazer um “muuuu!” de agradecimento e despedida.


Joaquim Bispo


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Esta crónica foi selecionada para a 21ª edição (maio/junho de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book, que integra, a páginas 114 e 115:

https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_21__edi__o


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Imagem: Domenico Ghirlandaio, Adoração dos Pastores, 1485.

Capela Sassetti, Igreja da Santa Trindade, Florença.

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