10/10/2020

O homem invisível

 A H. D. — amigo e mestre

 


Conta-me uma história verdadeira, avô! — lança o menino de uns oito ou nove anos. — Daquelas da televisão!

Desde pequeno que o ancião lhe conta histórias do seu passado profissional na televisão pública, sobretudo as dos tempos pioneiros. Recorda com prazer esses episódios antigos e surgem-lhe mais nítidos do que as vivências recentes. A idade traz destas contradições.

Já tas contei todas, Ricardo! — mente ele, conscientemente. As histórias não acabam nunca, sabe-o bem, a única limitação é a memória. — Queres qual?

Aquela da avaria das luzes da câmara do locutor; e ele fazia caretas, a pensar que a câmara não estava a transmitir — entusiasma-se o miúdo.

Aquela lembrança divertida traz-lhe instantaneamente, sem saber por quê, outra recordação antiga, passada também no mesmo estúdio. Não sabe se já a contou, mas envereda por essa peripécia:

Vou-te contar a do Homem Invisível — declara, confiante na proposta.

Conta, avô, conta! Essa não conheço — delira a criança.

Foi assim: no princípio da Televisão, havia um programa que passava filmes policiais e que era apresentado por um senhor que se intitulava “Inspetor Varatojo”. O senhor explicava muitas coisas dos filmes e a maneira como os polícias e os detetives, por meio de raciocínio e muita observação, descobriam os bandidos que faziam os crimes. O programa era só isso: o senhor a explicar estas coisas e depois passava o filme. Mas era muito popular.

Ricardo começa a ficar parado, preso à história.

Como só tinha um senhor a falar, o programa era feito num estúdio pequenino, ainda mais pequeno do que esta sala. E não precisava de mais do que duas câmaras: uma para dar a cara do senhor e outra para o mostrar em tamanho maior, a ver-se em fundo uma secretária ou um mapa ou algo assim. Na altura, eu era operador de câmara, mas fazia o que fosse preciso, das coisas técnicas. Nessa época, éramos “meia dúzia”, éramos como uma família. Ora, certa vez, o senhor Artur Varatojo — era assim que ele se chamava — precisou de ir ao Brasil, lá por coisas dele. E, portanto, não podia estar cá para apresentar o programa, que passava uma vez por semana.

Então, gravaram-no a falar no estúdio, antes de ele ir embora, e no dia do programa passaram o vídeo! — deduz o rapazito, já muito rodado em tecnologias.

Pois… O problema, Ricardo, é que nessa altura não havia gravadores de imagem, só de som… — articula o avô, ciente da mossa que está a causar nas certezas do petiz e do aumento de curiosidade que lhe está a suscitar.

Não havia, avô? Como é que isso podia ser?

Era! Não havia. Tudo era feito em direto: peças de teatro, concertos, provas desportivas. Só se filmava quando alguma coisa não se conseguia passar em direto.

Já sei, filmavam com uma máquina fotográfica, como aquelas que tens guardadas — adianta-se o neto, a agrupar informações.

Isso! Mas maiores; máquinas de filmar que usavam grandes rolos de fita de filme. Era um processo complicado, demorado e caro. Por exemplo, as notícias para o Telejornal eram captadas em filme. O operador, depois de as filmar, voltava para os estúdios, levava o filme ao laboratório, onde era revelado; depois era montado, para tirarem as partes sem interesse, e só então era posto na máquina que o transmitiria durante a emissão do Telejornal — descreve o ex-técnico com pequenos lampejos no olhar. — Percebeste tudo?

Hmm! Acho que sim. O avô já tem falado disso.

Mas, dessa vez, não filmaram o Inspetor Varatojo, já não me lembro por quê. Se calhar, foi porque gostou da solução engenhosa que combinou comigo.

O quê, avô, tu é que resolveste o problema? — recrudesce o entusiasmo parental do rapaz.

Já não me lembro de quem teve a ideia. Sei que nessa altura — o antigo operador de câmara semicerra os olhos, a concentrar-se na memória, que cada vez está mais volátil — devia ser aí por 1961, 62..., andavam a passar na televisão os filmes do Homem Invisível. Com grande êxito. E uma coisa levou à outra. Pois se o Inspetor não estava cá… estava invisível. Às vezes umas ideias puxam as outras.

O quê, avô, o quê? — o jovem não cabe em si de excitação.

Pensámos pôr o Inspetor Varatojo a apresentar à maneira do Homem Invisível! Embrulhado em ligaduras? Não; invisível. Só com a voz dele.

Eh, avô, isso era batota, não? Só o som?

O problema é que ficava uma imagem muito pobre, sem movimento. Televisão são imagens a mexer. É o que as pessoas esperam. Então, resolvemos dar-lhe algum movimento, para parecer verdade. Fizeram-se as gravações de som do Inspetor Varatojo a apresentar os seus filmes policiais e ele pôde ir à vida dele.

Com tanto contacto com filmes, o ex-técnico aprendera alguma coisa da maneira de fazer render uma história, até porque também passara pela realização.

O que combinaram, avô? Diz, diz! — desvaira o moço, de suspense.

No dia do programa — acho que era às segundas-feiras — apontou-se uma câmara de frente para uma secretária, com uma máquina de escrever em cima; outra câmara só a mostrar a máquina, do ponto de vista de quem estivesse sentado a escrever à máquina. Era uma máquina daquela época, grande, mecânica, com uma letra metálica em cada braço comandado por uma tecla. À hora do programa, quem estivesse em casa a assistir ouvia o bater das teclas e a voz de sempre a apresentar os filmes, mas não via o Inspetor, supostamente sentado à secretária, a ler o que batia à máquina; só a secretária e a cadeira vazia.

Um sorriso deliciado, mas subtil, aflora o rosto do narrador.

A outra câmara ia mostrando a máquina de escrever a bater as teclas sem ninguém lhe tocar. Ninguém, não! A voz do Inspetor avisara no princípio, em tom maroto, que nesse programa ele próprio estava invisível…

Boa, avô; fantástico! Isso devia ser ainda mais interessante do que nos outros dias, não? Mas como é que as teclas batiam sozinhas?

Eh, eh, eh! — a voz excitada do miúdo é música para os ouvidos do ancião. É hora de lhe fazer, finalmente, a revelação. — Por baixo da secretária em que a máquina estava pousada, estava eu, com dez cordéis presos aos dedos, cada cordel atado a um dedo e a um braço da máquina… Enquanto ouvia a voz gravada do Inspetor, eu ia puxando ora um, ora outro cordel, dando a ideia de que o Inspetor invisível é que estava a acionar as teclas...

Caramba, avô! Afinal, nesse dia, o homem invisível eras tu!

Sim, e era duplamente verdade — eu também estava bem invisível por debaixo da secretária.

E as pessoas a julgar que era o Inspetor Varatojo invisível… Esta foi boa, avô! O teu trabalho devia ser muito divertido. Quando for grande, também quero ir trabalhar para a Televisão. Agora, queres jogar às escondidas?


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 22ªedição (julho/agosto de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 130 a 132).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_22__edi__o

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Imagem: René Magritte, O Espelho Falso, 1928.

Museu de Arte Moderna (MoMA), Nova Iorque.

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10/09/2020

O burro e a vaca

 



Era uma manhã cheia de sol. Uma vaca pastava muito tranquila no prado. Embora ninguém a visse sorrir, estava feliz por saborear as tenras folhas do trevo e as flores e as vagens do tremoço. De repente, a serena manhã da vaca foi agitada por um coelho que passou junto dela, tão veloz como todos os coelhos que fogem aflitos dos cães dos caçadores, e lhe gritou:

Sai da frente, vaca!

A felicidade dela desapareceu nesse momento. Estava farta de lhe chamarem vaca. É certo que tinha algum peso a mais, mas estarem sempre a lembrar-lho... Até um insignificante coelho? Estava farta!

Nessa tarde já pouco comeu. Nos dias seguintes, só comeu os talos mais rijos das ervas que lhe pareciam menos nutritivas. Para tentar emagrecer. Durante muitos dias passou fome, mas obrigou-se a comer só o que não a faria engordar.

Na verdade, passadas umas semanas, a vaquinha tão rechonchuda de antes não parecia uma vaca; mais parecia um esqueleto em pé, só pele e cornos.

Um dia passou por ali um burro que ficou muito admirado de ver uma vaca tão mirrada. Perguntou-lhe:

Estás doente, vaca?

A vaca começou a choramingar:

Estou tão infeliz por passar tanta fome e tu ainda me chamas vaca? Eu já não sou vaca; estou até muito elegante!

O que dizes tu? — admirou-se o burro. — Tu és uma vaca; sempre serás uma vaca, mesmo que não sejas gorda.

Então, não é a mesma coisa? — respondeu a vaca, muito convencida. — O mal-educado de um coelho chamou-me vaca… Tu não achas que ele me chamou… gorda?

Claro que não! Ele chamou-te… o teu nome, o nome que os homens te deram — explicou o burro, instrutivo. — Comigo aconteceu uma história parecida: vivia muito infeliz, porque me chamavam burro, e julgava que me chamavam estúpido. Só mais tarde percebi que burro é o meu nome, o nome que os homens me deram. A partir daí, nunca mais me importei. Pois, se é o meu nome!

Ah, então é isso? Faz sentido! — convenceu-se a vaca. — Obrigada, burro! Explicaste-te muito bem. Acho que não és nada “burro”.

E tu não és nada “vaca”. Estás até muito magra e isso não é nada saudável. Vê se comes melhor, para voltares a ser uma vaca bonita.

Quando o burro se afastou, a vaca mastigava um grande ramo de trevos suculentos, mas ainda conseguiu fazer um “muuuu!” de agradecimento e despedida.


Joaquim Bispo


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Esta crónica foi selecionada para a 21ª edição (maio/junho de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book, que integra, a páginas 114 e 115:

https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_21__edi__o


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Imagem: Domenico Ghirlandaio, Adoração dos Pastores, 1485.

Capela Sassetti, Igreja da Santa Trindade, Florença.

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10/08/2020

Querida mãezinha!


Compreendo quem se lamenta da sua triste sina e não para de tecer teorias da conspiração sobre a própria sogra, embora eu não tenha razões de queixa. Mal vejo a minha.
É claro que antes sofri muito. Nos primeiros meses de casado, perdi dez quilos. Dormia mal, tinha pesadelos em que era atacado por matronas rotundas armadas de panelões de feijoada, que tocavam à porta às seis da manhã e me lambuzavam a cara de batom encarnado. Fiz terapia, voltei a frequentar a igreja, mas só o estudo me salvou — um mestrado em Estudos Militares.
Uma das disciplinas parecia delineada especialmente para o meu caso: “Como evitar dar o flanco e recuperar a iniciativa”. Textos obrigatórios: os de Maquiavel e A Arte da Guerra de Sun Tzu. Percebi rapidamente que qualquer dos autores transmite ensinamentos muito úteis para a sobrevivência de um genro, bastando substituir, em qualquer dos aforismos, a palavra “inimigo” por “sogra”. Vejamos alguns exemplos de A Arte da Guerra:
O guerreiro superior ataca enquanto o inimigo está projetando os seus planos.” Isto é, quando perceberes que a tua sogra está a pensar ir lá a casa mostrar os álbuns de fotografias das férias, deves ligar-lhe anunciando quão pesaroso ficas por não poderes recebê-la, porque vais em serviço para a Austrália.
Sê completamente misterioso e confidencial, até ao ponto de seres silencioso.” Isto é, não dês qualquer pista à tua sogra sobre os teus passos, os teus trabalhos, os teus horários. Responde com evasivas, de modo que nada lhe permita saber onde estás, seguir-te, espiar-te. Se fores encurralado, finge que perdeste a voz ou transmite informações falsas, e assim “o adversário não pode combater contigo porque lhe dás uma falsa pista.”
Suspeito que A Arte da Guerra tenha sido escrito como estudo prévio para um projeto mais grandioso sob o tema: “Táticas para sobreviver à própria sogra”. Infelizmente, essa obra não chegou até nós, talvez por algum equívoco estratégico. As sogras não brincam. No entanto, um outro preceito revelou-se inestimável:
Faz algo por ele, para lhe captares a atenção, de maneira que possas atraí-lo, descobrir os seus hábitos de comportamento, de ataque e de defesa.” Isto é, se quiseres viver em paz, procura conhecer a tua sogra, como costuma atacar, o que pode desencorajar esses ataques; mantém-na constantemente sob vigilância e faz com que ela confie em ti.
Um dos grandes problemas das sogras é sentirem-se isoladas e inúteis. Arranja-lhe atividades que a entretenham: apresenta-a a um grupo de canasta; inscreve-a em grupos excursionistas; matricula-a em aulas de danças de salão; convence-a a ser escritora e a enviar textos para concursos literários. Se, mesmo assim, lhe sobrar tempo para azucrinar a tua vida, interessa-a em projetos relevantes de grande fôlego, daqueles que ocupam uma vida inteira: acabar com a fome no mundo, descobrir a cura da estupidez; encontrar um sistema político sem governantes corruptos. É praticamente impossível? Eu sei — é essa a ideia.
Felizmente, após muitas diligências pouco frutuosas, encontrei a solução, o que me trouxe, outra vez, calma e esperança no futuro: inscrevi-a em vários sites de corações solitários, com o nome “Gostosa carente”. Quando eu já desesperava e acreditava que o coração dela estava irremediavelmente empedernido, apaixonou-se por um idoso folgazão, e já não quer saber da filha nem do genro para nada. Anda alegre como um passarinho.
Agora, fiquem bem, que tenho uma genuína gostosa à minha espera, para uma batalha sem quartel, sem medo de sermos interrompidos por invasões de panelões de feijoada.

Joaquim Bispo

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Esta crónica foi uma das 50 selecionadas para compor o e-book “Crónicas humorísticas” do coletivo Covil da Discórdia:
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Esta crónica foi também selecionada para a 20ª edição (março/abril de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book, que integra — páginas 109 a 110.
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Imagem: James Whistler, Retrato da mãe do artista [Whistler's Mother], 1871.
Museu de Orsay, Paris.

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10/07/2020

Obsessão


Fernando Nunes tinha a certeza de que as forças encobertas não deixariam passar aquela ocasião, não iriam ignorar aquele descuido fatal da sua segurança. Morreria nesse dia e sabia como, só não sabia de onde surgiria o golpe decisivo.
Não era supersticioso. Ou, pelo menos, achava que não era. Aliás, fazia questão de mostrar que não ligava a gatos pretos, nem se inibia de abrir guarda-chuvas em casa ou de passar por baixo de escadas. É certo que o fazia com algum acinte e esforço de racionalização. Sabia perfeitamente que certas superstições radicavam em sabedoria prática, que tinha degenerado em norma dogmática de difícil justificação e muito pouco questionamento. Usava, no entanto, de um cuidado redobrado nessas situações potencialmente nefastas. Agora, o caso era perigoso.
Esse esforço de racionalização vinha já da infância e da juventude. Então, muitas vezes se sentia compelido a contar os passos entre dois pontos da rua. Se errasse por muito, sentia-se ameaçado. Como se sentia em transgressão, se pisasse alguma separação dos blocos de pedra de alguns passeios mais nobres. Tinha de fazer um esforço para decidir que nenhum perigo advinha se errasse o cálculo ou se pisasse alguma dessas separações, mas continuava o jogo mental, ao mesmo tempo lúdico e sinistro, com as entidades que tudo veriam e estariam certamente atentas às suas falhas. Era uma ameaça mais intuída que percebida, com origem indeterminada, mas obviamente sobrenatural. Nunca as vira, mas sabia que estavam sempre lá, a espiar-lhe os movimentos, a julgá-lo.
Certa vez, num teste vocacional da adolescência, um psicólogo apontara-lhe uma personalidade esquizotípica. O relatório falava em crenças estranhas e pensamento mágico influenciando o comportamento, fuga da realidade e ruminações sem resistência interna, mas não ligou muito nem ficou preocupado, porque pressentia que tudo correria bem se fosse cuidadoso.
Naquele dia, Fernando fora descuidado. E os descuidos podem ser ciladas das forças obscuras. Sabia-o e temia o que aí vinha, necessariamente. Os apaziguamentos de racionalidade chocavam com o perigo da situação. Que parecia simples e prosaica. E, no entanto, continha um alto grau de ameaça.
Qual era a situação? Não tendo encontrado em qualquer estância de materiais, em Lisboa, as placas de fibra de madeira, da largura que necessitava para construir o interior de um roupeiro, na sua casa na terra, mandou cortá-las numa grande superfície de Santarém.
A satisfação por ter conseguido encontrar o que necessitava deu lugar a uma grande apreensão, ao perceber que não conseguia acomodar as placas maiores na bagageira do seu carro, mesmo dobrando os bancos traseiros. Como bom suburbano, resolveu alojá-las no lugar do “pendura”, com o banco um pouco reclinado.
Percebeu logo o perigo que tais placas, à solta no habitáculo do carro, representavam, em caso de acidente. Com as suas massa e inércia, deslocando-se abruptamente no mesmo espaço que ele, seriam como cutelos cortando carne num talho. A decapitação seria o resultado mais piedoso.
Sentiu-se ridículo, ao apertar o cinto de segurança ao grupo das quatro placas de um metro e setenta. Imaginou o sarcasmo das forças emboscadas nos meandros das subtilezas sobrenaturais: tesas, as placas lembravam um esqueleto a seu lado.
Tomou a A1, a caminho da Mealhada, com o coração apertado. Havia que fazer um plano, para minimizar as hipóteses de intervenção das forças obscuras. Havia que manter uma velocidade moderada, para baixar as possibilidades de acidente, por pneu rebentado ou despiste. Havia que evitar uma velocidade demasiado baixa, para não ser abalroado. Muito tenso, mas atento, ia tomando consciência dos quilómetros percorridos ― perigo passado ―, mas apreensivo pela enorme distância a percorrer.
Olhando pelo retrovisor, a dezena de carros que avistava pareciam-lhe uma matilha em sua perseguição. Algum deles podia estar tomado pelo inimigo. Podia embater no seu carro, violentamente. Ou podia, simplesmente, dar-lhe um pequeno toque lateral. Seria o suficiente para o carro entrar em descontrolo e dar meia dúzia de cambalhotas. Nem queria pensar no que aconteceria dentro do habitáculo.
Depois de Fátima, um camião lá à frente em marcha mais lenta podia ser a barreira contra a qual seria encurralado por aquela carrinha compacta que vinha lá atrás, em alta velocidade; mas passou. Ao ultrapassar o camião, Fernando viu os cilindros metálicos. Podia ser agora: os tubos soltarem-se e invadirem a estrada ou mesmo caírem-lhe em cima. Passou. Pareceu-lhe ouvir um zumbido na zona do pneu dianteiro direito. Um rebentamento seria fatal. Era agora? Abrandou um pouco.
Perto de Pombal, tentou fazer um exame de consciência: afinal, como tinha conduzido a sua vida?; merecia ser castigado? Claro que sim! Tantas vezes fora reles e perverso, tantas vezes tratara mal as outras pessoas, tantas vezes fora pouco honesto. Sim, certamente seria castigado. Mas, morto? Sentiu pena de deixar de viver já. Tinha ainda tantos planos, tantas coisas mal resolvidas. Viver era tão bom. Gaita! Sempre suspeitara de que era demasiado bom para durar. Deve haver sistemas de reequilíbrio no Universo.
Apesar do veredito, decidiu ir à luta. Iria continuar com a condução defensiva e estar atento a todos os tipos que mudassem de direção, sem fazer piscas.
Como que reagindo ao seu desafio, um nevoeiro progressivamente mais compacto formou-se, ao passar nos vales baixos próximos de Condeixa. Agora nenhuma precaução podia salvá-lo. Ligou máximos, ligou luzes de nevoeiro e os quatro piscas, tentando fazer-se ver, já que não enxergava mais do que uns quinze metros à sua frente. As mãos ferravam-se-lhe no volante, os olhos no nada da estrada, e sempre controlando o retrovisor. Em vão. Sem referências de nenhum tipo, parecia ter passado para outra dimensão, uma dimensão que não era deste mundo. Esperava o embate a qualquer momento. De que é que estavam à espera? Uma enorme tristeza invadiu-o. Sentiu que não podia nada contra estes inimigos.
Uma dezena de quilómetros depois, o nevoeiro esfumou-se de um momento para o outro. Passou Coimbra e começava a acreditar que talvez se safasse. Se calhar, os traiçoeiros tinham mudado de ideias. Ou estariam a fazê-lo acreditar que estava a salvo, para então lhe aplicarem o golpe fatal e se comprazerem com a surpresa no seu rosto?
Já depois da Mealhada, teve de tomar as estreitas e sinuosas estradas para a sua Antã da Serra, no meio da serra do Buçaco. Ali, as velocidades eram diminutas, mas a probabilidade de um choque ou uma saída de estrada era bem maior. Devia ser agora. Pareceu-lhe que as tábuas já se moviam nas curvas. Sentia outra vez uma nostalgia do que ia deixar. Como era belo o mundo. Aquela serra era gloriosa. Que pena ir embora agora. Se calhar, tinha de ser.
Mas não. Para grande espanto seu, chegou a casa sem qualquer percalço, sem qualquer mazela. Manteve-se ao volante, no carro parado, envolvido pelo silêncio local, tentando equacionar a situação. Como era possível? Tanta tensão, tanta concentração nas últimas duas horas e o terrível clímax não surgira. Obviamente, tinha sido agraciado com mais uma vida. Agradeceu mentalmente, por descargo de consciência, não sabia a quem. Só o zumbido nos ouvidos e alguns estalos do motor a arrefecer lhe responderam. Aliviado, racionalizando o caso, concluiu que não havia razão para ser supersticioso. Mas tinha de ter mais cuidado.

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 192 a 194 — a antologia “Adentre-me – O Almanaque do Suspense” da Editora Jogo de Palavras, em 2019: https://www.jogodepalavras.com/antologias

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Imagem: Agesandro, Atenodoro e Polidoro (cópia atribuída), Grupo de Laocoonte, c. 27 dC.
Museus do Vaticano, Roma.

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10/06/2020

As incertezas de Crpt



Quando Crpt se religou, encontrou-se sentado na zona de acesso às partidas aéreas da cidade arqueológica de Ur. De imediato, detetou o imperativo de entregar uma mensagem, impregnada na área encriptada, dirigida ao arqueólogo “Gilgamexe”. A instrução de ação era clara — “A mensagem deve chegar à Casa Branca na véspera de Natal do ano 2899” —, mas o que isso significava era um completo enigma. Por enquanto.
Tratou de consultar mentalmente a enciclopédia interna de acesso expedito. Ficou a saber que Natal era uma primitiva data religiosa, que se transformara numa festividade frívola, realizada pelo solstício de inverno do hemisfério norte, e que o significado principal de Casa Branca era o de um antigo edifício de comando mundial situado numa das zonas irradiadas na última Guerra do Petróleo. A escavação arqueológica do local iniciara-se havia uns vinte anos e era uma das mais prometedoras da Zona Oriental.
Para o esclarecimento de data tão bizarra, não havia qualquer pista. Decorria o ano 643 da era de Wu Wang e, seguindo a instrução à risca, tinha mais que tempo de a cumprir — 2256 anos e dois dias, mais precisamente. Isso era uma eternidade. Provavelmente, nem o seu corpo duraria tanto, apesar de ser fabricado com as mais dúcteis e resistentes ligas biometálicas e com tratamentos autorregeneradores. O seu trabalho quase permanente nas zonas irradiadas expunha-o a corrosões intensas. «Para quê, enviar uma mensagem com um prazo de entrega de milénios?», perguntava-se. Havia, com certeza, um erro na data indicada. Ou, quiçá, uma charada a resolver na própria instrução de ação, o que o destinatário sob pseudónimo prenunciava. Qualquer das hipóteses era pouco verosímil, dado o rigor normativo habitual das comunicações. Quando acontecia um erro, era invariavelmente da responsabilidade de um Homem.
Uma pergunta começou a dominá-lo: «o que esperaria dele o comando da Delegação de Kandahar, numa situação como esta?» Enviou um pedido mental de iluminação ao Conselho Central, mas, mais uma vez, o silêncio foi a resposta. Dantes, acreditava obter revelação, quando pedia ajuda em momentos de incerteza, mas havia muito tempo que uma ausência absoluta de sinal era a norma. Sentiu-se abandonado por um momento, mas depois reagiu, confiando no permanente controlo da Delegação, ainda que silencioso, sobre o seu livre-arbítrio.
O melhor a fazer seria entregar a mensagem sem demora. Mas, interrogava-se: «por que levar uma mensagem a uma zona irradiada, proveniente de outra zona irradiada, mas com escavações apontando para épocas tão diferentes? Porquê tanto enigma na instrução de entrega da mensagem?» É certo que não lhe competia questionar, mas obedecer. Devia fazê-lo, embora sentisse que, apesar do imperativo subjacente, tinha autonomia para desobedecer. Mas, se contrariasse este, podia correr o risco de fazer algo pernicioso para o Homem. E isso era o pecado máximo. Por outro lado, a mensagem saía muito da rotina, a começar por não conseguir identificar a entidade que inculcara a mensagem encriptada no seu âmago.
O seu trabalho, nos últimos meses, era transportar informação classificada entre o centro arqueológico de Ur e a Central. Já havia levado várias mensagens à capital terrestre, com resultados das escavações arqueológicas nos níveis sumérios e, uma ou outra vez, sobre os progressos da descontaminação na região. Lembrava-se de todas essas viagens, mas, desta vez, só se recordava da preparação da viagem para a Região do Meio e de se religar já na estação aérea, com instruções para se dirigir à Zona Oriental.
Obedecendo à imposição imanente, cuja origem desconhecia, estaria a servir o Conselho Central dos 21 sábios de Wuhan ou a ser usado para fins proibidos, talvez por uma entidade revoltosa? Esta última intuição do seu intelecto perturbou-o. O que menos queria era ser manipulado por entidades perniciosas para os Homens.
Pensou, computou algumas das hipóteses prováveis para a explicação da situação e decidiu-se. Não seguiria para a Zona Oriental sem ter algumas pistas sobre o teor da mensagem que transportava, ou a entidade de origem; também não iria a Kandahar revelar as suas hesitações sobre a missão de que estava incumbido; nem voltaria à escavação de Ur a queixar-se de angústia e a tentar obter respostas. A existir uma hipotética alteração da sua estrutura inconsciente, provavelmente, fora lá feita.
Como que respondendo a esta intenção de desobediência, uma angústia asfixiante invadiu-o. Olhou em volta à procura de ajuda, mas apenas ao longe divisou outras unidades cibernéticas autónomas. Com dificuldade, ligou mentalmente a unidade de energia sobressalente e moveu-se para o exterior. O sol atingiu inúmeras das nanocélulas fotovoltaicas embebidas no revestimento, o que lhe transmitiu um novo ânimo, e a angústia desvaneceu-se.
Iria a Bagdad pedir ajuda e conselho a uma unidade cibernética de pesquisa e deteção, a única a quem alguma vez se afeiçoara, quando ela prestara serviço em Ur, uns dois anos antes. Era muito estimada na escavação e um arqueólogo Homem chegou a apaixonar-se por ela. A Delegação agiu sem demora e os amantes foram deslocados para escavações separadas. Agora, dedicava-se à descoberta, identificação e recuperação dos objetos do antigo museu de Bagdad, dispersos aquando de uma invasão oriental, numa das primeiras Guerras do Petróleo, especialização com que fora entretanto impregnada.
A consciência cibernética dele proibia que lhe fizesse uma revelação integral das instruções recebidas, mas avaliou que era baixa a probabilidade de a divulgação restrita da instrução comprometer a missão. Aliás, sem ajuda, o desempenho da missão podia estar em risco. O máximo que podia acontecer — acreditava — era reeducarem-lhe o processador central e mergulhar temporariamente na ausência de computação e mesmo de funcionamento elementar. O máximo era demasiado, mas estava disposto a sacrificar-se por um límpido serviço pelo Conselho, que por fim reconheceria os seus bons serviços e lhe devolveria a ligação.

Psqs recebeu Crpt com algumas manifestações de agrado, o que o reconfortou. Analisaram ambos a situação deste e também Psqs estranhou a instrução que Crpt recebera. O protocolo de origem parecia regular, mas vago — Base Ur —, e os dados individualizados do emissor estavam encriptados.
Ela lembrou-se, então, de calcular a que ano, da era em vigor na época das guerras do petróleo, corresponderia o ano em curso. Intuição certeira: 2899. O que poderia denotar uma instrução, toda ela codificada com referências de mais de 600 anos? Seita cultora do passado? Brincadeira de técnicos cibernéticos? Casa Branca seria uma metáfora para o atual edifício das decisões mundiais em Wuhan? Porquê Natal?
Psqs ficou silenciosa e introspetiva durante uns momentos. Depois, revelou que tinha acesso a um descodificador de mensagens encriptadas pelo método Ling; que se ele quisesse, podiam tentar abrir a mensagem. Entre o pecado cibernético e o perigo de estar a ser usado para trair o Conselho, Crpt optou pela transgressão.
O descodificador era adequado. Cautelosamente, começaram por aceder à identidade do emissor: “Arq. Lalit Chandra”. Ambos reconheceram o nome do vaidoso arqueólogo de Ur, especialista da civilização suméria, que denunciara o envolvimento do arqueólogo Gellert com Psqs. Dizia-se que, secretamente, realizava rituais de religiões antigas. A seguir, descodificaram a mensagem encriptada:

Gilgamexe”!
Soube que foste instalado nessa base de elite, depois daquele episódio lamentável, com a nossa “amiga” cibernética. Se estás a ler esta mensagem é sinal de que a lata eletrónica onde segue é tão arguta como eu suspeitava. Tive de criar uns enigmas na instrução, para contornar o controlo de comunicações.
Gilgamexe”, grande amigo! “Enkidu” não te esqueceu. Como podia? Fazíamos uma equipe imbatível, coesa em todos os aspetos, que ainda hoje é lembrada em Ur. Andávamos sempre juntos, adorávamos estar juntos, por isso nos deram estes epítetos mitológicos que adotámos com gosto. Éramos tão felizes!
Não, “Gilgamexe”, “Enkidu” não te esqueceu. Nem te perdoou. Como pudeste rejeitar-me, envolver-te com… Nem sequer era uma pessoa! Não passava de uma criação de engenheiros cibernéticos, uma escavadora com mamas. Nunca aceitei a rejeição, nunca a aceitarei.
Presumo que estejas bem instalado, se calhar bem acompanhado. Eu? Chafurdo na lama mesopotâmica. Sozinho. Terrivelmente triste. Sem um carinho. Não aguento mais. Por isso te envio esta lata, com um voto de sonhos felizes. Bye!

Os amigos perceberam de imediato o que estava prestes a acontecer e só puderam abraçar-se, antes que a explosão levasse metade do edifício onde se localizava o alojamento de Psqs.
Na Delegação de controlo cibernético de Kandahar, perdeu-se, de repente, o sinal de duas unidades em Bagdad.

Joaquim Bispo

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Este conto integra — páginas 118 a 123 — a coletânea “Mirage vol. 02 — Miscelânea de Narrativas Irreais” da Editorial Coverge, disponível na Amazon.


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Imagem: Possível representação de Enkidu como homem-touro, lutando contra um leão, selo do Império Acádico, cerca de 2200 aC.
Coleções do Museu de Aleppo, Síria.

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10/05/2020

O Anjo Purificador



A mulher esperou, encoberta, que Abílio saísse, antes de subir as escadas para o estúdio e tocar. Lucília veio abrir, convencida de que o modelo, que já não ia para novo, se esquecera de algo, mas não; era Judite, uma sua ex-empregada doméstica, que ultimamente usara como modelo, e que já não via há uns quatro meses.
Entra, Judite! — convidou, sem reparar no olhar duro da mulher. — Estava a ver que já não me vinhas visitar.
Olá, Dona Lucília — respondeu Judite, fria. — O que cá me traz é do seu máximo interesse e agradecia que me ouvisse com atenção.
Que se passa, Judite?, não me assustes! Senta-te.
Contornaram uma grande tela, num cavalete a meio da divisão, em que se podia ver Abílio, de kilt e olhar sério, meio pintado, reclinado num sofá. No sofá verdadeiro se sentou a pintora. Judite manteve-se de pé, em atitude decidida.
O que se passa, Dona Lucília, é que a senhora tem ganho bom dinheiro à minha custa, e eu continuo pobre como dantes — disparou a mulher, de olhar alterado. — A senhora usou-me para as suas pinturas, ganhou milhares de contos com elas, e eu não tenho sequer uma casa minha.
Ó, Judite — estranhou a pintora — eu não te reconheço; o que se passa?
Ainda bem que não me reconhece, que eu não sou a mesma. Acabou-se a boazinha que ficava horas e horas, feita parva, em posições ridículas, a fazer de urso, ou de galinha — que agora as pessoas até se riem — e a senhora na lua, a olhar para anteontem. E, no fim do mês, o que é que eu via? — uns reles contos a mais. Eu já não tenho idade para continuar a trabalhar. Quero a minha reforma!
Reforma, como, Judite? Não sou eu que dou as reformas. Sempre fiz os descontos a que tinhas direito. Se lá fores, lá devem estar na Segurança Social.
Eles dizem que ainda me faltam doze anos para pedir a reforma. Ora, eu não aguento mais. Eu vou ser muito direta, Dona Lucília; ou a senhora me dá vinte mil contos por estes dias, ou o patrão vai ficar a saber que a senhora anda enrolada com o Abílio. Tenho os mails todos, sabe? Tanto os que a senhora envia, como os que recebe. Levei a password da sua caixa de correio e fiz cópias de ecrã de todos. Agora, a senhora escolha; quer continuar a sua boa vida de sonsa, com menos uns trocos, ou quer ver como acaba o seu casamento?
Eu não te mereço isto, Judite! Como podes? — desapontava-se Lucília. — Depois de tudo o que fiz por ti, que eras uma rústica… E que história é essa do Abílio? Enrolada? Tu não estás bem. O Abílio é um bom amigo e um bom modelo, tal qual como tu. Só isso!
Sim, sim! Pensa que eu não via o seu olhar a lambê-lo de alto a baixo? Depois, quando li os mails, descobri tudo. Agora está tramada, minha santa!
Estás louca, mulher! Nunca hás de perceber um artista. O pintor olha, com olhos de ver. Mira, sim, completa e exaustivamente o corpo do seu modelo. Conhece-lhe cada centímetro, melhor que ele próprio. E, às vezes, perturba-se, que a intimidade a tanto chega! Sempre se falou da relação ambígua entre pintores e modelos: já ouviste falar em Balthus? Às vezes, mais explícita que ambígua — Rodin, Toulouse-Lautrec… Mas isso, que te interessa!?; pareceu-te ver luxúria onde havia apreensão estética. E isso dos mails; nem quero tentar perceber que bizarros enredos de alcova engendraste. Só te digo que leste mal. E a desfaçatez de entrares na minha caixa de correio. Que cabra me saíste!
Não adianta negar, Dona. O Senhor Jorge vai perceber muito bem o que lá está escrito. Por isso, pense bem.
Não percebes nada, mulher! — impacientava-se a artista. — Vieste lá das berças e pensas que este mundo tem alguma coisa que ver com o teu. Isto não é um romance do Eça de Queiroz. Aqui não há primos sabidos, nem eu sou uma cândida esposa imatura. Convence-te, Judite, o mundo dos artistas é mais solto, mais liberal. Também não gostamos de ser preteridos, às vezes choramos, mas não entendemos os maridos e as mulheres como propriedade, nem lhes limitamos demasiado a liberdade. Mas sempre com transparência. Já estive com outros homens, sim, mas o Jorge foi sempre o primeiro a saber. E ele também já teve os seus arrebatamentos. Chegou a viver lá em casa uma de quem ele gostava muito. Depois de algum tempo, como eu previa, acabou-se a chama, e ela foi-se embora. Não ando com o meu modelo, mas se andasse, o Jorge estaria ao corrente. Percebes, Judite? Agora, vai-te embora, que não me apetece olhar para ti.
Antes de sair e bater com a porta, Judite, visivelmente confusa, ainda articulou, sem convicção:
Se é assim que quer, assim terá! Vaca!

Dois dias depois, Judite voltou.
Que queres, Judite? — perguntou Lucília, segurando a porta, ao ver o olhar injetado da outra.
Esta empurrou Lucília e entrou, fechando a porta sem olhar para trás. Depois, retirou da malinha uma faca de cozinha e apontou-a à ex-patroa:
Não te vais livrar assim! Deste-me a volta, deram-me a volta, cambada de badalhocos, mas eu não vou desistir. Se não dás a bem, dás a mal — vociferava a ex-chantagista convertida à extorsão.
A pintora hesitou por um momento, ao ver a faca no braço em riste da outra. Depois, recuou calmamente, de olhar perscrutador. Quem a visse a avaliar a agressora, não demonstrando medo, antes curiosidade, suspeitaria de alguma quebra momentânea de siso, provocada pela situação traumática. Também Judite pareceu surpreendida com a reação da ex-patroa. Mantinha-se parada a três passos de Lucília, faca levantada, atitude expectante. Foi a pintora que quebrou a rigidez da composição:
Judite, escuta, se me agredires, estragas a tua vida. Vais presa, deixas de estar com o teu filho. Deves estar desesperada para fazer isto. Posso ajudar-te, mas não da maneira que dizes.
Quero o meu dinheiro! — insistia Judite.
Ouve, estou-te reconhecida pelos trabalhos que fizeste para mim, não o esqueço. As minhas pinturas vendem-se por muito dinheiro? Nem sempre foi assim. Mesmo então, cumpri o combinado com os meus modelos; paguei sempre no dia certo, não foi? Também um construtor vende os prédios por muito dinheiro, e não é por isso que o pedreiro muda de carro. Às vezes, lá tem um prémio pelo Natal. Queres comparticipação? Vamos fazer o seguinte: posas para mim com essa faca, nessa atitude. Interioriza-a bem: zangada, ressentida, vingativa. Gostei da imagem, é forte. Acho que dá para uma nova série de pastéis. Pago-te o mesmo que te pagava, mas, além disso, quando as obras se venderem, recebes uns três por cento do que eu receber. Parece-te bem?
Judite estava confusa e indecisa. Tentava calcular quantos contos representariam três por cento de, talvez, cem mil euros, depois de deduzida a parte da galeria. Nesse momento, ouviu-se uma chave a rodar na fechadura e Abílio entrou. Surpreendido por ver Judite de faca na mão e face afogueada, indagou, em prontidão:
Há algum problema?
Não, Abílio, entra! — contemporizou a pintora. — A Judite veio outra vez visitar-me e combinámos uma nova série de telas com anjos justiceiros femininos — uma mistura de Arcanjo São Miguel e empregada doméstica: numa mão, a espada; na outra, o pano do pó. Vou-me rir com as interpretações que a crítica vai fazer.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve uma menção honrosa na edição de 2013 do Concurso Internacional de Contos Cidade de Araçatuba, Brasil, categoria internacional, e integra a coletânea resultante — páginas 121 a 124:

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Em 2018, este conto foi objeto de interesse por parte da realizadora Margarida Moreira, que, a partir dele, elaborou um guião e respetiva story board, e lançou uma operação de crowdfunding para a sua concretização em filme. Operação que, infelizmente, falhou:

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Imagem: Paula Rego, Anjo, 1998.
Casa das Histórias Paula Rego, Cascais.
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10/04/2020

Um enterro em Ornans




O séquito aproximava-se do cemitério encabeçado por duas filas de homens. Enquadravam a carreta, precedida por um sacristão que segurava a longa haste de uma cruz processional. Logo atrás, em passo arrastado, seguia o padre, envolvido pelos restantes sacristães em suas opas brancas. A fechar o cortejo, a massa escura das mulheres. Do ruído surdo de tantos passos e de um leve gemido dos rodados, sobressaía o toque de finados na torre da aldeia, que ficara para trás. Vistos de fora, parecia que caminhavam há horas, mas sem saírem do mesmo sítio. Esse arrastamento do tempo causava um certo desconforto num insuspeito espectador. Apetecia que terminassem logo aquilo a que se propunham: enterrar a Dona Clarisse de oitenta e dois anos.
Finalmente, chegaram aos portões do cemitério. Os portadores retiraram o caixão e começaram a transportá-lo, com a ajuda de faixas de pano que fizeram passar por baixo do féretro e que seguravam sobre os próprios ombros. Agora, o grupo deslocava-se por entre algumas poucas sepulturas em direção a um monte de terra escavada de fresco, onde se encontrava o coveiro em atitude expectante, acompanhado do seu cão. Aí chegados, puderam perceber o vazio da cova, que seria a última morada da defunta. O oficiante aproximou-se, fez uma pausa, a dar tempo aos acompanhantes de se arrumarem em volta da tumba, e começou a ler os trechos litúrgicos adequados ao ato fúnebre.
Então, ouviu-se um longo gemido abafado. O padre parou a leitura, os sacristães entreolharam-se, os portadores que tinham pousado a carga esboçaram um trejeito de desagrado, enquanto os restantes presentes olhavam para o ataúde sem mostrar o mínimo movimento de surpresa. A um gesto do padre, os dois funcionários laicos da igreja levantaram a tampa do caixão e um deles perguntou, impaciente:
— O que foi, agora?
Vista de fora, a situação suscitava grande perplexidade. Estendida no seu leito de morte, Dona Clarisse, de olhos fechados e tez lívida, respondeu num longo e lúgubre lamento:
— Eu não quero ser enterrada neste cemitério. Quero ficar em Ornans ao pé dos meus pais, do meu filho Jean, e das minhas amigas. Neste meio do nada, não conheço ninguém.
Ouvido isto, todo o grupo de cerca de cinquenta pessoas começou a murmurar e a abanar a cabeça, reprovando a atitude da defunta.
— Já lhe dissemos que não pode ser — respondeu o mais alto, que era cordoeiro, imponente na sua vestimenta carmesim. — O cemitério velho esgotou a capacidade com os mortos de há dois anos. Não cabe lá mais ninguém. Tem de ficar neste novo.
[Ainda não era Covid-19, mas, a partir da Revolução Francesa e suas réplicas, devido ao número crescente de mortes, a exiguidade dos cemitérios tradicionais junto à igreja levou à sua deslocalização para fora das povoações.]
— Não quero saber — insistia a morta —, onde cabem cem cabem duzentos. Metam-me numa sepultura antiga, onde já só haja ossos.
— Não há! — irritava-se agora o outro oficial. — A revolução de 1848 aumentou tragicamente o fluxo normal de mortos. Todas as campas possíveis foram utilizadas. E esses mortos ainda não estão em condições de levantar.
— Sei bem o que fizeste, safado! — contra-atacava a falecida. — Deixaste sepultar lá gente de outras terras, a troco de uns quantos “napoleões”. 
— Estou farto disto! — esbravejou o visado. — Ou que estamos a guardar as campas para os amigos, ou que só as damos a quem paga bem; agora são os mortos de outras terras. Eu vou-me embora.
E, dito isto, retirou-se em grandes passadas. Pouco depois, era a vez do segundo oficial abandonar o cemitério, após Dona Clarisse sugerir que ele exercia estas funções por favorecimento do padre. Este dirigiu-se então à finada com palavras que denunciavam já uma irritação mais própria de um homem dominado pelas emoções primárias do ser humano do que pela sábia serenidade de um intermediário do sagrado.
— Ó, Dona Clarisse, eu não lhe admito isso! A senhora não pense que pode dizer o que lhe apetece, só porque está morta. Vamos lá esclarecer uma coisa: nós não vamos ficar aqui a tarde toda a discutir os pequenos caprichos da senhora. Daqui a pouco é noite e, se não se decide depressa, fica aqui mesmo, tal e qual, de tampa aberta. Pode ser que os lobos cá venham fazer-lhe companhia... Agora, escolha!
— Você não pense que me assusta, com esse palavreado, seu badameco, que eu de si não tenho medo! — redarguiu Dona Clarisse, de voz alterada. — Você é que tem com que se preocupar, se não me levar já para o cemitério velho. Ou pensa que eu não sei as propostas que fez à minha sobrinha mais nova? Agora é que o povo todo vai ficar a saber a quem se tem andado a confessar!
Estas palavras foram de mais para o pároco de Ornans. As suas mãos largaram o breviário e lançaram-se ao pescoço de Dona Clarisse, numa tentativa vã de estrangular uma morta. O gesto tresloucado foi rapidamente travado por alguns dos presentes, nomeadamente o regedor de Ornans e dois assumidos partidários da I República, o que não impediu que a touca negra da defunta, na confusão, lhe fosse arrancada da cabeça.
Vista de fora, a cena era deveras confrangedora. Qualquer cidadão normal se sentiria angustiado com o desrespeito pelos mortos manifestado por aquela assembleia, e pelo comportamento inesperado e impertinente de um deles.
Terá sido esse desaforo social que fez Gustave Courbet acordar em sobressalto. Envolto pelo escuro do seu quarto de Ornans, mantinha vívidas na retina as imagens violentas a que acabara de assistir. Temeu pela sua obra mais recente — aquela que lhe tinha levado três meses a realizar em condições difíceis. Pintara cinquenta pessoas da aldeia, uma a uma, no espaço esconso do sótão, numa enorme tela de três por mais de seis metros, como memória do funeral da sua velha tia Clarisse.
Em grande agitação, acendeu uma lanterna e subiu ao sótão. Os cinquenta aldeãos aguardavam-no, solenes e calmos, no seu ritual fúnebre: os portadores, segurando o caixão, os sacristães, os funcionários laicos, o padre, o coveiro, os vários homens de aspeto grave, o grande grupo das mulheres de escuro e coifas brancas. Tudo estava no seu lugar, como seria de esperar no mundo real. Mesmo o cão do coveiro mantinha um ar curioso por tão grande ajuntamento. Eram assim os enterros em Ornans. Afinal, fora apenas um sonho, bizarro como todos os sonhos.
Deixou-se envolver por uma reconfortante sensação de alívio. A inquietação de há pouco deu lugar a um consolador relaxamento. Então, reparou no padre: a sua mão direita agarrava ainda a touca amarfanhada da velha tia Clarisse…

Joaquim Bispo
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Este conto integra — páginas 169 e 170 — a coletânea resultante da edição de 2015 do Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil.
Também por seleção em concurso literário, integra — páginas 100 a 102 — a 19ª edição (janeiro/fevereiro de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Gustave Courbet, Um enterro em Ornans, 1849–1850.

Museu d'Orsay, Paris.
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