10/06/2020

As incertezas de Crpt



Quando Crpt se religou, encontrou-se sentado na zona de acesso às partidas aéreas da cidade arqueológica de Ur. De imediato, detetou o imperativo de entregar uma mensagem, impregnada na área encriptada, dirigida ao arqueólogo “Gilgamexe”. A instrução de ação era clara — “A mensagem deve chegar à Casa Branca na véspera de Natal do ano 2899” —, mas o que isso significava era um completo enigma. Por enquanto.
Tratou de consultar mentalmente a enciclopédia interna de acesso expedito. Ficou a saber que Natal era uma primitiva data religiosa, que se transformara numa festividade frívola, realizada pelo solstício de inverno do hemisfério norte, e que o significado principal de Casa Branca era o de um antigo edifício de comando mundial situado numa das zonas irradiadas na última Guerra do Petróleo. A escavação arqueológica do local iniciara-se havia uns vinte anos e era uma das mais prometedoras da Zona Oriental.
Para o esclarecimento de data tão bizarra, não havia qualquer pista. Decorria o ano 643 da era de Wu Wang e, seguindo a instrução à risca, tinha mais que tempo de a cumprir — 2256 anos e dois dias, mais precisamente. Isso era uma eternidade. Provavelmente, nem o seu corpo duraria tanto, apesar de ser fabricado com as mais dúcteis e resistentes ligas biometálicas e com tratamentos autorregeneradores. O seu trabalho quase permanente nas zonas irradiadas expunha-o a corrosões intensas. «Para quê, enviar uma mensagem com um prazo de entrega de milénios?», perguntava-se. Havia, com certeza, um erro na data indicada. Ou, quiçá, uma charada a resolver na própria instrução de ação, o que o destinatário sob pseudónimo prenunciava. Qualquer das hipóteses era pouco verosímil, dado o rigor normativo habitual das comunicações. Quando acontecia um erro, era invariavelmente da responsabilidade de um Homem.
Uma pergunta começou a dominá-lo: «o que esperaria dele o comando da Delegação de Kandahar, numa situação como esta?» Enviou um pedido mental de iluminação ao Conselho Central, mas, mais uma vez, o silêncio foi a resposta. Dantes, acreditava obter revelação, quando pedia ajuda em momentos de incerteza, mas havia muito tempo que uma ausência absoluta de sinal era a norma. Sentiu-se abandonado por um momento, mas depois reagiu, confiando no permanente controlo da Delegação, ainda que silencioso, sobre o seu livre-arbítrio.
O melhor a fazer seria entregar a mensagem sem demora. Mas, interrogava-se: «por que levar uma mensagem a uma zona irradiada, proveniente de outra zona irradiada, mas com escavações apontando para épocas tão diferentes? Porquê tanto enigma na instrução de entrega da mensagem?» É certo que não lhe competia questionar, mas obedecer. Devia fazê-lo, embora sentisse que, apesar do imperativo subjacente, tinha autonomia para desobedecer. Mas, se contrariasse este, podia correr o risco de fazer algo pernicioso para o Homem. E isso era o pecado máximo. Por outro lado, a mensagem saía muito da rotina, a começar por não conseguir identificar a entidade que inculcara a mensagem encriptada no seu âmago.
O seu trabalho, nos últimos meses, era transportar informação classificada entre o centro arqueológico de Ur e a Central. Já havia levado várias mensagens à capital terrestre, com resultados das escavações arqueológicas nos níveis sumérios e, uma ou outra vez, sobre os progressos da descontaminação na região. Lembrava-se de todas essas viagens, mas, desta vez, só se recordava da preparação da viagem para a Região do Meio e de se religar já na estação aérea, com instruções para se dirigir à Zona Oriental.
Obedecendo à imposição imanente, cuja origem desconhecia, estaria a servir o Conselho Central dos 21 sábios de Wuhan ou a ser usado para fins proibidos, talvez por uma entidade revoltosa? Esta última intuição do seu intelecto perturbou-o. O que menos queria era ser manipulado por entidades perniciosas para os Homens.
Pensou, computou algumas das hipóteses prováveis para a explicação da situação e decidiu-se. Não seguiria para a Zona Oriental sem ter algumas pistas sobre o teor da mensagem que transportava, ou a entidade de origem; também não iria a Kandahar revelar as suas hesitações sobre a missão de que estava incumbido; nem voltaria à escavação de Ur a queixar-se de angústia e a tentar obter respostas. A existir uma hipotética alteração da sua estrutura inconsciente, provavelmente, fora lá feita.
Como que respondendo a esta intenção de desobediência, uma angústia asfixiante invadiu-o. Olhou em volta à procura de ajuda, mas apenas ao longe divisou outras unidades cibernéticas autónomas. Com dificuldade, ligou mentalmente a unidade de energia sobressalente e moveu-se para o exterior. O sol atingiu inúmeras das nanocélulas fotovoltaicas embebidas no revestimento, o que lhe transmitiu um novo ânimo, e a angústia desvaneceu-se.
Iria a Bagdad pedir ajuda e conselho a uma unidade cibernética de pesquisa e deteção, a única a quem alguma vez se afeiçoara, quando ela prestara serviço em Ur, uns dois anos antes. Era muito estimada na escavação e um arqueólogo Homem chegou a apaixonar-se por ela. A Delegação agiu sem demora e os amantes foram deslocados para escavações separadas. Agora, dedicava-se à descoberta, identificação e recuperação dos objetos do antigo museu de Bagdad, dispersos aquando de uma invasão oriental, numa das primeiras Guerras do Petróleo, especialização com que fora entretanto impregnada.
A consciência cibernética dele proibia que lhe fizesse uma revelação integral das instruções recebidas, mas avaliou que era baixa a probabilidade de a divulgação restrita da instrução comprometer a missão. Aliás, sem ajuda, o desempenho da missão podia estar em risco. O máximo que podia acontecer — acreditava — era reeducarem-lhe o processador central e mergulhar temporariamente na ausência de computação e mesmo de funcionamento elementar. O máximo era demasiado, mas estava disposto a sacrificar-se por um límpido serviço pelo Conselho, que por fim reconheceria os seus bons serviços e lhe devolveria a ligação.

Psqs recebeu Crpt com algumas manifestações de agrado, o que o reconfortou. Analisaram ambos a situação deste e também Psqs estranhou a instrução que Crpt recebera. O protocolo de origem parecia regular, mas vago — Base Ur —, e os dados individualizados do emissor estavam encriptados.
Ela lembrou-se, então, de calcular a que ano, da era em vigor na época das guerras do petróleo, corresponderia o ano em curso. Intuição certeira: 2899. O que poderia denotar uma instrução, toda ela codificada com referências de mais de 600 anos? Seita cultora do passado? Brincadeira de técnicos cibernéticos? Casa Branca seria uma metáfora para o atual edifício das decisões mundiais em Wuhan? Porquê Natal?
Psqs ficou silenciosa e introspetiva durante uns momentos. Depois, revelou que tinha acesso a um descodificador de mensagens encriptadas pelo método Ling; que se ele quisesse, podiam tentar abrir a mensagem. Entre o pecado cibernético e o perigo de estar a ser usado para trair o Conselho, Crpt optou pela transgressão.
O descodificador era adequado. Cautelosamente, começaram por aceder à identidade do emissor: “Arq. Lalit Chandra”. Ambos reconheceram o nome do vaidoso arqueólogo de Ur, especialista da civilização suméria, que denunciara o envolvimento do arqueólogo Gellert com Psqs. Dizia-se que, secretamente, realizava rituais de religiões antigas. A seguir, descodificaram a mensagem encriptada:

Gilgamexe”!
Soube que foste instalado nessa base de elite, depois daquele episódio lamentável, com a nossa “amiga” cibernética. Se estás a ler esta mensagem é sinal de que a lata eletrónica onde segue é tão arguta como eu suspeitava. Tive de criar uns enigmas na instrução, para contornar o controlo de comunicações.
Gilgamexe”, grande amigo! “Enkidu” não te esqueceu. Como podia? Fazíamos uma equipe imbatível, coesa em todos os aspetos, que ainda hoje é lembrada em Ur. Andávamos sempre juntos, adorávamos estar juntos, por isso nos deram estes epítetos mitológicos que adotámos com gosto. Éramos tão felizes!
Não, “Gilgamexe”, “Enkidu” não te esqueceu. Nem te perdoou. Como pudeste rejeitar-me, envolver-te com… Nem sequer era uma pessoa! Não passava de uma criação de engenheiros cibernéticos, uma escavadora com mamas. Nunca aceitei a rejeição, nunca a aceitarei.
Presumo que estejas bem instalado, se calhar bem acompanhado. Eu? Chafurdo na lama mesopotâmica. Sozinho. Terrivelmente triste. Sem um carinho. Não aguento mais. Por isso te envio esta lata, com um voto de sonhos felizes. Bye!

Os amigos perceberam de imediato o que estava prestes a acontecer e só puderam abraçar-se, antes que a explosão levasse metade do edifício onde se localizava o alojamento de Psqs.
Na Delegação de controlo cibernético de Kandahar, perdeu-se, de repente, o sinal de duas unidades em Bagdad.

Joaquim Bispo

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Este conto integra — páginas 118 a 123 — a coletânea “Mirage vol. 02 — Miscelânea de Narrativas Irreais” da Editorial Coverge, disponível na Amazon.


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Imagem: Possível representação de Enkidu como homem-touro, lutando contra um leão, selo do Império Acádico, cerca de 2200 aC.
Coleções do Museu de Aleppo, Síria.

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10/05/2020

O Anjo Purificador



A mulher esperou, encoberta, que Abílio saísse, antes de subir as escadas para o estúdio e tocar. Lucília veio abrir, convencida de que o modelo, que já não ia para novo, se esquecera de algo, mas não; era Judite, uma sua ex-empregada doméstica, que ultimamente usara como modelo, e que já não via há uns quatro meses.
Entra, Judite! — convidou, sem reparar no olhar duro da mulher. — Estava a ver que já não me vinhas visitar.
Olá, Dona Lucília — respondeu Judite, fria. — O que cá me traz é do seu máximo interesse e agradecia que me ouvisse com atenção.
Que se passa, Judite?, não me assustes! Senta-te.
Contornaram uma grande tela, num cavalete a meio da divisão, em que se podia ver Abílio, de kilt e olhar sério, meio pintado, reclinado num sofá. No sofá verdadeiro se sentou a pintora. Judite manteve-se de pé, em atitude decidida.
O que se passa, Dona Lucília, é que a senhora tem ganho bom dinheiro à minha custa, e eu continuo pobre como dantes — disparou a mulher, de olhar alterado. — A senhora usou-me para as suas pinturas, ganhou milhares de contos com elas, e eu não tenho sequer uma casa minha.
Ó, Judite — estranhou a pintora — eu não te reconheço; o que se passa?
Ainda bem que não me reconhece, que eu não sou a mesma. Acabou-se a boazinha que ficava horas e horas, feita parva, em posições ridículas, a fazer de urso, ou de galinha — que agora as pessoas até se riem — e a senhora na lua, a olhar para anteontem. E, no fim do mês, o que é que eu via? — uns reles contos a mais. Eu já não tenho idade para continuar a trabalhar. Quero a minha reforma!
Reforma, como, Judite? Não sou eu que dou as reformas. Sempre fiz os descontos a que tinhas direito. Se lá fores, lá devem estar na Segurança Social.
Eles dizem que ainda me faltam doze anos para pedir a reforma. Ora, eu não aguento mais. Eu vou ser muito direta, Dona Lucília; ou a senhora me dá vinte mil contos por estes dias, ou o patrão vai ficar a saber que a senhora anda enrolada com o Abílio. Tenho os mails todos, sabe? Tanto os que a senhora envia, como os que recebe. Levei a password da sua caixa de correio e fiz cópias de ecrã de todos. Agora, a senhora escolha; quer continuar a sua boa vida de sonsa, com menos uns trocos, ou quer ver como acaba o seu casamento?
Eu não te mereço isto, Judite! Como podes? — desapontava-se Lucília. — Depois de tudo o que fiz por ti, que eras uma rústica… E que história é essa do Abílio? Enrolada? Tu não estás bem. O Abílio é um bom amigo e um bom modelo, tal qual como tu. Só isso!
Sim, sim! Pensa que eu não via o seu olhar a lambê-lo de alto a baixo? Depois, quando li os mails, descobri tudo. Agora está tramada, minha santa!
Estás louca, mulher! Nunca hás de perceber um artista. O pintor olha, com olhos de ver. Mira, sim, completa e exaustivamente o corpo do seu modelo. Conhece-lhe cada centímetro, melhor que ele próprio. E, às vezes, perturba-se, que a intimidade a tanto chega! Sempre se falou da relação ambígua entre pintores e modelos: já ouviste falar em Balthus? Às vezes, mais explícita que ambígua — Rodin, Toulouse-Lautrec… Mas isso, que te interessa!?; pareceu-te ver luxúria onde havia apreensão estética. E isso dos mails; nem quero tentar perceber que bizarros enredos de alcova engendraste. Só te digo que leste mal. E a desfaçatez de entrares na minha caixa de correio. Que cabra me saíste!
Não adianta negar, Dona. O Senhor Jorge vai perceber muito bem o que lá está escrito. Por isso, pense bem.
Não percebes nada, mulher! — impacientava-se a artista. — Vieste lá das berças e pensas que este mundo tem alguma coisa que ver com o teu. Isto não é um romance do Eça de Queiroz. Aqui não há primos sabidos, nem eu sou uma cândida esposa imatura. Convence-te, Judite, o mundo dos artistas é mais solto, mais liberal. Também não gostamos de ser preteridos, às vezes choramos, mas não entendemos os maridos e as mulheres como propriedade, nem lhes limitamos demasiado a liberdade. Mas sempre com transparência. Já estive com outros homens, sim, mas o Jorge foi sempre o primeiro a saber. E ele também já teve os seus arrebatamentos. Chegou a viver lá em casa uma de quem ele gostava muito. Depois de algum tempo, como eu previa, acabou-se a chama, e ela foi-se embora. Não ando com o meu modelo, mas se andasse, o Jorge estaria ao corrente. Percebes, Judite? Agora, vai-te embora, que não me apetece olhar para ti.
Antes de sair e bater com a porta, Judite, visivelmente confusa, ainda articulou, sem convicção:
Se é assim que quer, assim terá! Vaca!

Dois dias depois, Judite voltou.
Que queres, Judite? — perguntou Lucília, segurando a porta, ao ver o olhar injetado da outra.
Esta empurrou Lucília e entrou, fechando a porta sem olhar para trás. Depois, retirou da malinha uma faca de cozinha e apontou-a à ex-patroa:
Não te vais livrar assim! Deste-me a volta, deram-me a volta, cambada de badalhocos, mas eu não vou desistir. Se não dás a bem, dás a mal — vociferava a ex-chantagista convertida à extorsão.
A pintora hesitou por um momento, ao ver a faca no braço em riste da outra. Depois, recuou calmamente, de olhar perscrutador. Quem a visse a avaliar a agressora, não demonstrando medo, antes curiosidade, suspeitaria de alguma quebra momentânea de siso, provocada pela situação traumática. Também Judite pareceu surpreendida com a reação da ex-patroa. Mantinha-se parada a três passos de Lucília, faca levantada, atitude expectante. Foi a pintora que quebrou a rigidez da composição:
Judite, escuta, se me agredires, estragas a tua vida. Vais presa, deixas de estar com o teu filho. Deves estar desesperada para fazer isto. Posso ajudar-te, mas não da maneira que dizes.
Quero o meu dinheiro! — insistia Judite.
Ouve, estou-te reconhecida pelos trabalhos que fizeste para mim, não o esqueço. As minhas pinturas vendem-se por muito dinheiro? Nem sempre foi assim. Mesmo então, cumpri o combinado com os meus modelos; paguei sempre no dia certo, não foi? Também um construtor vende os prédios por muito dinheiro, e não é por isso que o pedreiro muda de carro. Às vezes, lá tem um prémio pelo Natal. Queres comparticipação? Vamos fazer o seguinte: posas para mim com essa faca, nessa atitude. Interioriza-a bem: zangada, ressentida, vingativa. Gostei da imagem, é forte. Acho que dá para uma nova série de pastéis. Pago-te o mesmo que te pagava, mas, além disso, quando as obras se venderem, recebes uns três por cento do que eu receber. Parece-te bem?
Judite estava confusa e indecisa. Tentava calcular quantos contos representariam três por cento de, talvez, cem mil euros, depois de deduzida a parte da galeria. Nesse momento, ouviu-se uma chave a rodar na fechadura e Abílio entrou. Surpreendido por ver Judite de faca na mão e face afogueada, indagou, em prontidão:
Há algum problema?
Não, Abílio, entra! — contemporizou a pintora. — A Judite veio outra vez visitar-me e combinámos uma nova série de telas com anjos justiceiros femininos — uma mistura de Arcanjo São Miguel e empregada doméstica: numa mão, a espada; na outra, o pano do pó. Vou-me rir com as interpretações que a crítica vai fazer.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve uma menção honrosa na edição de 2013 do Concurso Internacional de Contos Cidade de Araçatuba, Brasil, categoria internacional, e integra a coletânea resultante — páginas 121 a 124:

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Em 2018, este conto foi objeto de interesse por parte da realizadora Margarida Moreira, que, a partir dele, elaborou um guião e respetiva story board, e lançou uma operação de crowdfunding para a sua concretização em filme. Operação que, infelizmente, falhou:

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Imagem: Paula Rego, Anjo, 1998.
Casa das Histórias Paula Rego, Cascais.
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10/04/2020

Um enterro em Ornans




O séquito aproximava-se do cemitério encabeçado por duas filas de homens. Enquadravam a carreta, precedida por um sacristão que segurava a longa haste de uma cruz processional. Logo atrás, em passo arrastado, seguia o padre, envolvido pelos restantes sacristães em suas opas brancas. A fechar o cortejo, a massa escura das mulheres. Do ruído surdo de tantos passos e de um leve gemido dos rodados, sobressaía o toque de finados na torre da aldeia, que ficara para trás. Vistos de fora, parecia que caminhavam há horas, mas sem saírem do mesmo sítio. Esse arrastamento do tempo causava um certo desconforto num insuspeito espectador. Apetecia que terminassem logo aquilo a que se propunham: enterrar a Dona Clarisse de oitenta e dois anos.
Finalmente, chegaram aos portões do cemitério. Os portadores retiraram o caixão e começaram a transportá-lo, com a ajuda de faixas de pano que fizeram passar por baixo do féretro e que seguravam sobre os próprios ombros. Agora, o grupo deslocava-se por entre algumas poucas sepulturas em direção a um monte de terra escavada de fresco, onde se encontrava o coveiro em atitude expectante, acompanhado do seu cão. Aí chegados, puderam perceber o vazio da cova, que seria a última morada da defunta. O oficiante aproximou-se, fez uma pausa, a dar tempo aos acompanhantes de se arrumarem em volta da tumba, e começou a ler os trechos litúrgicos adequados ao ato fúnebre.
Então, ouviu-se um longo gemido abafado. O padre parou a leitura, os sacristães entreolharam-se, os portadores que tinham pousado a carga esboçaram um trejeito de desagrado, enquanto os restantes presentes olhavam para o ataúde sem mostrar o mínimo movimento de surpresa. A um gesto do padre, os dois funcionários laicos da igreja levantaram a tampa do caixão e um deles perguntou, impaciente:
— O que foi, agora?
Vista de fora, a situação suscitava grande perplexidade. Estendida no seu leito de morte, Dona Clarisse, de olhos fechados e tez lívida, respondeu num longo e lúgubre lamento:
— Eu não quero ser enterrada neste cemitério. Quero ficar em Ornans ao pé dos meus pais, do meu filho Jean, e das minhas amigas. Neste meio do nada, não conheço ninguém.
Ouvido isto, todo o grupo de cerca de cinquenta pessoas começou a murmurar e a abanar a cabeça, reprovando a atitude da defunta.
— Já lhe dissemos que não pode ser — respondeu o mais alto, que era cordoeiro, imponente na sua vestimenta carmesim. — O cemitério velho esgotou a capacidade com os mortos de há dois anos. Não cabe lá mais ninguém. Tem de ficar neste novo.
[Ainda não era Covid-19, mas, a partir da Revolução Francesa e suas réplicas, devido ao número crescente de mortes, a exiguidade dos cemitérios tradicionais junto à igreja levou à sua deslocalização para fora das povoações.]
— Não quero saber — insistia a morta —, onde cabem cem cabem duzentos. Metam-me numa sepultura antiga, onde já só haja ossos.
— Não há! — irritava-se agora o outro oficial. — A revolução de 1848 aumentou tragicamente o fluxo normal de mortos. Todas as campas possíveis foram utilizadas. E esses mortos ainda não estão em condições de levantar.
— Sei bem o que fizeste, safado! — contra-atacava a falecida. — Deixaste sepultar lá gente de outras terras, a troco de uns quantos “napoleões”. 
— Estou farto disto! — esbravejou o visado. — Ou que estamos a guardar as campas para os amigos, ou que só as damos a quem paga bem; agora são os mortos de outras terras. Eu vou-me embora.
E, dito isto, retirou-se em grandes passadas. Pouco depois, era a vez do segundo oficial abandonar o cemitério, após Dona Clarisse sugerir que ele exercia estas funções por favorecimento do padre. Este dirigiu-se então à finada com palavras que denunciavam já uma irritação mais própria de um homem dominado pelas emoções primárias do ser humano do que pela sábia serenidade de um intermediário do sagrado.
— Ó, Dona Clarisse, eu não lhe admito isso! A senhora não pense que pode dizer o que lhe apetece, só porque está morta. Vamos lá esclarecer uma coisa: nós não vamos ficar aqui a tarde toda a discutir os pequenos caprichos da senhora. Daqui a pouco é noite e, se não se decide depressa, fica aqui mesmo, tal e qual, de tampa aberta. Pode ser que os lobos cá venham fazer-lhe companhia... Agora, escolha!
— Você não pense que me assusta, com esse palavreado, seu badameco, que eu de si não tenho medo! — redarguiu Dona Clarisse, de voz alterada. — Você é que tem com que se preocupar, se não me levar já para o cemitério velho. Ou pensa que eu não sei as propostas que fez à minha sobrinha mais nova? Agora é que o povo todo vai ficar a saber a quem se tem andado a confessar!
Estas palavras foram de mais para o pároco de Ornans. As suas mãos largaram o breviário e lançaram-se ao pescoço de Dona Clarisse, numa tentativa vã de estrangular uma morta. O gesto tresloucado foi rapidamente travado por alguns dos presentes, nomeadamente o regedor de Ornans e dois assumidos partidários da I República, o que não impediu que a touca negra da defunta, na confusão, lhe fosse arrancada da cabeça.
Vista de fora, a cena era deveras confrangedora. Qualquer cidadão normal se sentiria angustiado com o desrespeito pelos mortos manifestado por aquela assembleia, e pelo comportamento inesperado e impertinente de um deles.
Terá sido esse desaforo social que fez Gustave Courbet acordar em sobressalto. Envolto pelo escuro do seu quarto de Ornans, mantinha vívidas na retina as imagens violentas a que acabara de assistir. Temeu pela sua obra mais recente — aquela que lhe tinha levado três meses a realizar em condições difíceis. Pintara cinquenta pessoas da aldeia, uma a uma, no espaço esconso do sótão, numa enorme tela de três por mais de seis metros, como memória do funeral da sua velha tia Clarisse.
Em grande agitação, acendeu uma lanterna e subiu ao sótão. Os cinquenta aldeãos aguardavam-no, solenes e calmos, no seu ritual fúnebre: os portadores, segurando o caixão, os sacristães, os funcionários laicos, o padre, o coveiro, os vários homens de aspeto grave, o grande grupo das mulheres de escuro e coifas brancas. Tudo estava no seu lugar, como seria de esperar no mundo real. Mesmo o cão do coveiro mantinha um ar curioso por tão grande ajuntamento. Eram assim os enterros em Ornans. Afinal, fora apenas um sonho, bizarro como todos os sonhos.
Deixou-se envolver por uma reconfortante sensação de alívio. A inquietação de há pouco deu lugar a um consolador relaxamento. Então, reparou no padre: a sua mão direita agarrava ainda a touca amarfanhada da velha tia Clarisse…

Joaquim Bispo
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Este conto integra — páginas 169 e 170 — a coletânea resultante da edição de 2015 do Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil.
Também por seleção em concurso literário, integra — páginas 100 a 102 — a 19ª edição (janeiro/fevereiro de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Gustave Courbet, Um enterro em Ornans, 1849–1850.

Museu d'Orsay, Paris.
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10/03/2020

O cavalo que queria ser famoso



Era uma vez um cavalo que vivia em Pádua. Servia como montada de um capitão do exército, e o que se vai contar passou-se há muitos anos, quando as guerras eram feitas com cavalos e espadas.
Certo dia, quando o cavalo estava no tronco para ser ferrado, entrou um ladrão no recinto. O meliante, que vinha armado, levantou um ferro para bater na cabeça do ferrador. O cavalo assustou-se, e, como ainda não estava com as patas presas, pregou um valente coice no assaltante, que foi abater-se contra um muro. O ferrador ficou muito agradecido e disse ao cavalo:
Vou cravar-te, no casco da pata direita, uma ferradura, que me deu um génio, há muitos anos, por serviços prestados. Quando estiveres em perigo, raspa com ela no chão e diz três vezes: Hihihipoho.
O cavalo foi-se embora e quase que se esqueceu do assunto, mas um dia, em grande galope numa batalha, tropeçou e estatelou-se com uma pata partida. Lembrou-se logo da ferradura mágica do ferrador; escarvou o chão e disse três vezes “Hihihipoho”. Encontrou-se, de repente, numa clareira duma floresta de carvalhos e viu um génio, que era homem da cintura para cima e cavalo da cintura para baixo, que lhe disse:
Que ajuda precisas, cavalo?
Parti uma pata e quero que me salves de ser abatido. Um cavalo de pata partida já não serve para montada de ninguém.
O génio deu três sacudidelas com a cauda e o cavalo ficou curado.
Ainda tens dois pedidos — disse o génio esfumando-se. — Usa-os bem!
Ora, uns tempos depois, passou o “nosso” cavalo no adro da basílica de Santo António e, como o seu dono encontrou outros cavaleiros e se pôs a conversar, pôde admirar a estátua equestre ali erguida. O cavalo de bronze era tão possante, que parecia ser ele que dirigia o cavaleiro. Perguntou aos outros cavalos, quem era aquele da estátua, mas nenhum soube dizer. Então, interrogou um pombo que por ali andava e este respondeu:
O cavalo, não sei, mas o cavaleiro é o grande comandante veneziano Gattamelata, esculpido pelo, não menos famoso, Donatello. É o que ouço dizer.
O cavalo ficou tão impressionado pela majestade da estátua que, após muito meditar, resolveu que ia dedicar o resto da vida a servir alguém famoso, para ser retratado com ele para a posteridade e também ficar famoso. Quando ficou a salvo dos olhares humanos, raspou com a ferradura mágica no chão e disse três vezes “Hihihipoho”. Viu-se logo na clareira do génio-centauro, e este perguntou:
Que ajuda precisas, cavalo?
Não estou em perigo, génio, desculpa — explicou o cavalo —, mas preciso que me arranjes um dono famoso, para ser retratado para a posteridade, como o cavalo de Gattamelata.
Tu é que sabes! — ralhou o génio. — Olha que este pedido te pode fazer falta mais tarde!
Eu quero ser retratado em bronze, nada mais me interessa!
Então, o génio, vendo a decisão resoluta que o cavalo tinha tomado, disse-lhe:
É pena não teres pensado nisso um pouco mais cedo. Está a ser erigida, em Veneza, uma estátua equestre maravilhosa, a do comandante veneziano Bartolommeo Colleoni. Mas é melhor veres.
Dito isto, apareceu no centro da clareira uma estátua equestre. O cavalo parecia mais pequeno que o de Pádua, mas estava esculpido com tal garbo e com tal realismo de pormenores, que parecia vivo.
É assim mesmo que eu quero! — emocionou-se o cavalo.
Infelizmente, quem fez este já não faz mais; foi esculpido por mestre Verrochio, que morreu há pouco. Mas, sempre te digo, que o seu discípulo Leonardo é um artista prometedor a quem muitos poderosos já recorrem. Queres ficar ao seu serviço?
O cavalo relinchou agradecido e pouco depois achou-se em Milão, na cavalariça usada por Leonardo da Vinci. Estava este a arquitetar uma estátua equestre gigantesca, de mais de sete metros atuais, para a corte de Milão, pelo que observava e desenhava cavalos, anotava a medida de cada parte do seu corpo, para encontrar a proporção ideal, e tentava arranjar maneira de fundir uma peça tão grande. Também o nosso cavalo foi sujeito a medidas rigorosas, o que muito o alegrava, imaginando já, retratada em escala monumental, alguma parte do seu corpo, se não o todo. Ao longo de dois ou três anos, viu multiplicarem-se os esboços, e crescer o modelo em barro. Infelizmente, antes de a estátua final estar acabada, o bronze foi necessário para fazer canhões e o projeto foi abandonado.
Muito triste com o malogro, o nosso cavalo escarvou, outra vez, o chão e disse três vezes “Hihihipoho.
Que ajuda precisas, cavalo? — perguntou o centauro na clareira de carvalhos.
O projeto de Milão fracassou. Estou desesperado, não sei o que fazer — choramingou o cavalo.
Não te prometo nada, mas se te mantiveres sempre perto de Leonardo, estou convencido que acabarás por ter êxito.
E, assim, foi o nosso cavalo parar a Florença, onde Leonardo veio a ter a encomenda da pintura mural de uma batalha, para o salão nobre do palácio do governo da República. Foi escolhida a de Anghiari — uma batalha entre florentinos e milaneses — cujo motivo central Leonardo resumiu ao choque selvático entre quatro cavaleiros. Durante longas horas, o nosso cavalo posou, pacientemente, nas cavalariças de Santa Maria Novella, onde Leonardo preparava um enorme esquiço, que depois transferia para a parede do palácio. Jurava, para si próprio, que a cabeça do cavalo mais à direita, embora em esgar de furor, era tal qual a sua. Infelizmente, Leonardo era lento a trabalhar e começou a ser solicitado por trabalhos mais bem pagos, de modo que a pintura da batalha não chegou a ser concluída.
O nosso cavalo ficou muito desanimado, mas, quando pensava que era o mais infeliz dos cavalos, sobreveio o pior: o seu artista, o homem a quem tinha dedicado tantos anos de sacrifício, em poses longas e difíceis, tencionava abatê-lo para lhe estudar o esqueleto, os nervos e os músculos. Entrou em pânico. Assim que pôde, raspou com a ferradura mágica no chão e gritou:
Hihihipoho. Hihihipoho. Hihihipoho.
Por que me chamas, cavalo? — perguntou o génio.
Salva-me, por favor, que Leonardo quer abater-me para me estudar os ossos.
Ó cavalo, tenho muita pena, mas já esgotaste os pedidos! Eu avisei-te! — respondeu o génio, com um ar muito contristado. — Não posso fazer nada. E, além do mais, já tens que idade!?; mais de vinte anos! Eu, se fosse a ti, continuava com Leonardo. Dizem que os desenhos que faz, de ossos e músculos de homens e animais, são tão admiráveis como as suas pinturas e as suas máquinas de guerra. Assim, como assim, a que é que querias dedicar-te nessa idade?
O nosso cavalo voltou para casa, resignado. Umas semanas depois, Leonardo dissecou-o, examinou e mediu todos os elementos, e desenhou-os com todo o rigor. Nessa altura, andava empenhado em comparar o esqueleto e os músculos dos membros do Cavalo e do Homem.

Assim acaba a história do cavalo que queria ser retratado como os famosos, o que, de certa maneira, conseguiu. Ninguém pode dizer que os rascunhos de Da Vinci para o grande monumento de Milão ou para o salão de Florença tenham elementos de um único cavalo, mas alguns investigadores estão convencidos de que os esboços anatómicos de um cavalo que são comparados com os de um homem são de um só animal, um que nós sabemos!

Joaquim Bispo
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Este conto foi publicado no nº 10 da Revista de Artes e Ideias, Alma Azul, Coimbra, 2014
e,
por seleção em concurso literário, integra — páginas 54 a 58 — a antologia “Zoonarrativas Zooopoéticas” da Editora Jogo de Palavras, de março de 2019:


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Imagem: Maria Leal da Costa, Luís Valadares, Cavalo Alter Real, 2005.
Alter do Chão
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10/02/2020

Os pintassilgos



O verão estava no auge. Das aulas já Albertino se tinha esquecido alegremente, nos seus treze anos ávidos de amplidão campestre, o pé descalço, liberto, as roupas soltas, o chapéu desabado, mas confortável. O seu céu era a ribeira: um charco aqui, outro acolá; o resto, areal sombreado pelos amieiros, o frescor e o jogo das areias, duma firmeza indolente, a acariciar-lhe as solas dos pés a cada passada, a ceder com um ruído arrastado de languidez — música para os seus ouvidos. Por cima, o emaranhado dos salgueiros ou o horizonte mais alto das copas dos amieiros, ondulando suavemente; o sol a vibrar nos seus olhos ao ritmo da folhagem, a atenção concentrada, a fisga preparada, a “coronha” com mais de 30 marcas. Qualquer movimento irregular da ramagem podia indicar um pássaro. Então, era a procura da posição favorável, de maneira uniforme e muito lenta, para não se denunciar. Se a mancha do pássaro se mostrasse desimpedida, era o retesar dos elásticos, a pedra centrada na rodela de cabedal, a pontaria instintiva. E o tiro partia. Caprichosamente, muitas vezes a pedra descrevia um arco ou batia em qualquer pequeno obstáculo e o disparo gorava-se. E a caçada prosseguia. As horas passavam, o prazer inebriava, só o estômago obrigava a regressar ao casarão familiar de telha vã.
A observação dos pássaros e da sua beleza, a fruição dos seus cantos, levava-o a querer engaiolar alguns, para tê-los à disposição do seu prazer auditivo e visual, mas também para ostentação do troféu. Com alguma habilidade, construiu uma gaiola com uma tábua, vários galhos e arames velhos, na qual não faltavam comedouro, bebedouro e uma portinhola com mola. Sabia que não podia engaiolar pássaros que se alimentassem de insetos e larvas. Só os que comessem sementes. E destes, qual seria o mais bonito: o canário ou o pintassilgo?
Um dia descobriu um ninho de pintassilgos nos ramos de uma oliveira pequena. Três ovos. Foi-o guardando, mas evitando aproximar-se demasiado, sabendo que os pássaros chegam a abandonar os ovos, e até os filhotes pequenos, se notam que o ninho anda a ser controlado. Curiosamente, se os encontrarem numa gaiola — ouvia dizer — alimentam-nos até perderem a esperança de os ver soltos e então dão-lhes sementes venenosas para os matar. Por isso, planeou encerrá-los na gaiola poucos dias antes de poderem voar, e deixá-la pendurada na oliveira onde estava o ninho. Isso permitiria não os deixar escapar e esperava que os pais os alimentassem por mais uns dias, os suficientes para que eles conseguissem comer, por si, as sementes que lhes iria pôr na gaiola. E, então, trazê-la para casa.
Os dias foram passando arrastadamente, os passarinhos nasceram e foram-se emplumando. Quando achou que poderiam voar em breve, meteu-os na gaiola, com água no bebedouro e alpista no comedouro. Como a oliveira era demasiado aberta, temeu uma excessiva exposição ao inclemente sol estival e resolveu pendurar a gaiola no ramo alto de uma árvore frondosa que distava dali uns duzentos metros. A distância não seria problema, dado que os pássaros detetam com facilidade os pios uns dos outros. Lá os deixou e voltou feliz para o casarão. Já tinha os seus pintassilgos!
No dia seguinte, chegou a “malhadeira”, aquela monstruosa máquina debulhadora, do tamanho duma camioneta de carreira, com os seus ruídos estranhos e movimentos sinistros, mas com capacidades maravilhosas, com que nessa década de sessenta se debulhava o produto das searas. Recebia molhos de centeio desatados, por uma abertura superior, que, depois de suspeitados safanões, pancadas e outros tratos violentos no seu interior, vertia, por um bocal, o grão, que era aparado em sacas de serapilheira e lançava, pelo outro lado, a palha em borbotões. O cereal era acarretado para a tulha; a palha era acondicionada ao lado da eira em montões redondos de perfil ogival, para resistirem às chuvas. Ameaçadora era a longa correia de transmissão de movimento, que ligava um cilindro metálico giratório, num trator anexo, a um cilindro semelhante na debulhadora, o qual fazia funcionar todas aquelas peças em madeira que iam e vinham num ritmo contínuo e ensurdecedor, cumprindo tarefas difíceis de adivinhar no interior do engenho.
A meda do centeio era grande, a lide contagiante; havia a novidade de toda aquela gente que lidava com a máquina com enorme destreza e rapidez, apesar dos perigos que ela representava. Contavam histórias de outras eiras, de alguém que, ao meter o centeio, tinha deixado ir a mão muito à frente e tinha ficado sem alguns dedos, ou daquela mulher que se desequilibrara e caíra lá para dentro...
Ao fim do segundo dia, cumprida a debulha, foram-se todos embora: os ceifeiros, para as suas terras; a debulhadora, a caminho de outra eira. A paisagem nesta mostrava-se substancialmente alterada. A anterior meda em forma de casa, feita de molhos de centeio carregado de grão, transformara-se nuns cinco ou seis grandes montes de palha leve — cama de gado para o ano inteiro. Ficava no olhar um brilho baço de fim de festa. Voltava a calma, voltava a rotina de todos os outros dias.
De repente, lembrou-se. A ideia retiniu-lhe na cabeça em toque de alarme. Tinha-se esquecido completamente dos pintassilgos. Teriam os pais descoberto os filhotes? Teriam alimentado as crias encarceradas? Desatou a correr para a árvore afastada, em desatino. Trepou rapidamente até ao galho onde os tinha dependurado, mas o coração apertava-se-lhe — não ouvia qualquer pio. Por fim, assomou. O fim de tarde ia ainda quente, mas pelo corpo de Albertino perpassou uma onda do frio glacial das noites de inverno. O olhar tentava discernir o que o remorso persistia em enevoar. Daqueles três passarinhos, já todos cobertos de pequenas penas firmes e bem compostas, já a imitar a coloração dos pais, nada mais restava do que três novelos de penas emaranhadas, desgrenhadas, tombados no chão da gaiola.
Retirou-os. Estavam frios. Tinham morrido há muito. De frio? De fome? De sementes venenosas dadas pelos pais? Tanto fazia. Albertino só sentia que, pela sua cobiça pueril, pela sua negligência, tinham morrido três lindas avezinhas. Morte estúpida, perda pura.
Voltou para casa acabrunhado. Não chorou. Os adultos reprovavam o choro nos rapazes.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 18 a 20 — a edição n.º 63 da revista Brasil Nikkei Bungaku, de novembro de 2019, da Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil, São Paulo.

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Imagem: Federico Barocci, A Madona do Gato, 1575.
National Gallery. Londres.
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10/01/2020

Passos





Naquela noite, quando Zidanta ouviu passos, soube que era o Grande Ceifeiro que já o procurava. Sempre acreditara que viria assim, furtivo e impiedoso; só não sabia quando.
Zidanta, o Grande Rei dos Hititas, o favorito do deus Tarhun, estava velho. Já não podia encabeçar o temível exército de carros e ir ao Sul submeter um príncipe sírio ou fazer recuar os Hurritas no Médio Eufrates. Já raramente visitava alguma das suas rainhas. Mantinha-se no seu palácio de Hattusa, recebia comissões de comerciantes assírios, que queriam negociar no seu reino, ou embaixadas de alguma pequena corte, a reiterar submissão e a pedir proteção contra inimigos regionais. Nesses dias, sentava-se junto a uma janela, assistia à entrada das comitivas pela colossal Porta dos Leões e, depois, assumindo uma postura grave e reservada, esperava-as na sala do trono, ladeado pelo Grande Escriba e seus funcionários.
Os passos, já! O velho guerreiro estava reclinado na sua câmara de dormir, amodorrado, mas de ouvido alerta, quando os ouviu. Eram suaves e furtivos. Mesmo pouco audíveis, Zidanta percebeu-os, por entre os outros ruídos de passos da Guarda, que, pausadamente, fazia a ronda noturna à volta dos aposentos reais. Só um inimigo se deslocaria assim.
Num relance, recordou a curta história do seu reino, em que os soberanos acabavam, muitas vezes, por sucumbir a revoltas, traições e golpes palacianos, que não poupavam sequer o resto da família. Fora assim com o rei Mursili, seu tio, massacrado por si e pelo próprio cunhado Hantili, seu sogro, o qual também veio a ter a mesma sorte: após vários anos de reinado, morreu às suas mãos, juntamente com o filho, netos e todos os que podiam ter pretensões ao trono.
Teria chegado a sua vez? Apurou o ouvido; os passos eram arrastos ténues, de origem incerta, escassos e dissimulados. Pareciam os de um só homem. Estaria dentro da câmara? Manteve-se imóvel, mas de olhos semicerrados, tentando enxergar alguma sombra que se movesse na obscuridade do aposento. Pareceu-lhe notar uma alteração de luminosidade numa coluna junto ao altar doméstico ao Deus da Tempestade. Dirigiu um apelo mudo à divindade para que o livrasse desta provação, como o tinha salvado de tantos outros perigos que vencera ao longo dos anos.
Não queria mover-se, para manter o agressor na ilusão de o poder apanhar desprevenido. Gritar pela Guarda podia não lhe trazer uma ajuda tão rápida como precisava para salvar a vida; decidiu que se defenderia sozinho. Zidanta tinha sempre um machado de bronze à mão. Quando o atacante se aproximasse, teria uma surpresa. Começou a deslizar o braço direito sob os panos, lenta e impercetivelmente, na direção do tamborete junto ao leito, enquanto tentava adivinhar quem seria o agressor.
Conhecia bem o seu povo e os membros da sua corte. Qual poderia querê-lo morto? Talvez o seu cunhado, Huzziya, sempre cheio de mesuras, mas que não conseguia esconder uma certa perfídia no olhar. Criticava veladamente o atual estado do país, onde os Gasgas das montanhas junto ao Mar Negro se estendiam para Sul e ocupavam florestas e pastagens, e os Hurritas, a Sudeste, já se permitiam fazer incursões no país e tomar cidades.
Talvez Zuru, o chefe da Guarda, esse guerreiro do país de Mitani, que procurara refúgio entre os Hititas. Aparentemente leal, tornara-se um militar imune às querelas internas do exército hitita, por não ter ligações de sangue com os outros oficiais. Nunca hesitava perante uma ordem, mas o estado de inquietude do exército, devido à ausência de campanhas, talvez o tornasse vulnerável a intrigas. Ultimamente, vislumbrara-lhe uma ou outra crispação no rosto barbudo.
Seria Neferhotep, a egípcia rainha segunda, que nunca aceitara a posição secundária do seu filho na linha de sucessão? Se assim fosse, iria eliminar também os dois filhos da rainha primeira.
Os passos macios aproximavam-se. Sentiu-os mais perto. Agora, estava certo de que alguém se introduzira na câmara real. Era tempo de agir. A sua mão alcançou o tamborete, tateou, mas nada encontrou. A lâmina de duplo gume não estava onde a tinha posto. Uma onda gelada percorreu-lhe o corpo. O seu coração acelerou e batia ruidosamente, abafando o som dos passos. Teve de fazer um esforço de disciplina para não ofegar, nem se agitar, o que poderia desencadear o ataque do intruso. Percebeu uma sombra acocorada no chão, a uns três passos de distância. Soube então de onde vinha a ameaça. Tinha de aproveitar essa pequena vantagem.
Num só movimento de animal acossado, rodou o corpo para a esquerda, meteu a mão sob a almofada, empunhou a adaga, que sempre o acompanhava e, de um salto, abateu-se sobre o vulto, cravando-lhe a lâmina com quanta força tinha. Bradou então pela Guarda. Dez homens entraram de rompante na câmara real. À luz dos archotes que alguns empunhavam, os guardas depararam com um rei lívido, de olhar incrédulo fixado na tartaruga marinha oferecida nessa manhã pelo embaixador de Luqqa e que exibia uma adaga espetada no alto da carapaça.
Na noite seguinte, cansado e humilhado, Zidanta deitou-se cedo. Antes de adormecer, ainda vislumbrou um brilho fugaz na lâmina do machado, empunhado pelo seu filho Ammuna, quando se abateu sobre si a zunir e o decapitou. No meio da névoa de dor e assombro que o envolveu, num último lampejo de consciência, admirou-se de não ter ouvido passo algum.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 131 a 133 — a 17ª edição (setembro/outubro de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Leoa agonizante, (baixo relevo), Palácio de Assurbanipal, Assíria, século VII a. C..
Museu Britânico, Londres.
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10/12/2019

O tempo dos rebuçados




O primeiro encontro foi como uma caixa de rebuçados. Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. Mas também de uma das primeiras responsabilidades: a escola.
Nos dias de primavera, Orlando, de botas com sola de borracha feitas no sapateiro, palmilhava bem cedo os três quilómetros do caminho entre muros que separava a queijeira, onde morava com a avó, da escola da aldeia, cruzando-se com carros de bois, grupos de mulheres a caminho das hortas, um rebanho a atravessar de um terreno para outro. Se estava frio, apressava o passo a contornar uma ou outra poça de água, mala com cadernos a tiracolo, uma mão a aquecer-se no bolso, a outra a pegar no cabazinho da merenda. Daí a pouco, as letras, as contas, as brincadeiras de recreio e o almoço debaixo de uma olaia, com os outros dois miúdos que também vinham dos campos.
No regresso, o conforto do calor e da falta de pressa convidavam-no a alongar-se em observações da natureza: o lagarto verde esparramado ao sol que, não conseguindo intimidá-lo abrindo a boca vermelha, se esgueirava para um buraco das paredes; o rendilhado de alguns penedos; as poupas, os cucos, os pintassilgos. E a estranheza do mundo do tic-tic-tic ritmado dos canteiros, alguns bem jovens, em alguma das pedreiras adjacentes ao caminho. Um mundo que não era de rebuçados.
Um dia encontrou vinte e cinco tostões no recinto da romaria que o caminho atravessava. Rapidamente se esfumaram em rebuçados embrulhados em estampas de jogadores de futebol.
De inverno, a ida para a escola era mais monótona e mais simples. Era só atravessar o casario, desde a casa da avó, na aldeia. No regresso, a brincadeira com a restante criançada nos quintais e nos casarões familiares. Ao domingo, catequese à tarde e talvez apanhar moedas pretas e rebuçados lançados de alguma janela ou varanda no fim de um batizado. Os dias corriam sem preocupações, com pouca relação uns com os outros. E, de repente…
O primeiro encontro com ela foi como receber uma caixa de rebuçados. A festa era de carnes, da matança do porco e respetiva comezaina. A família alargada habitual estava reunida em casa de um tio por este motivo. Segurar, matar, limpar e desmanchar um porco exigia o concurso de vários homens. E o trabalho de lavar as tripas, preparar os recheios e encher com eles as farinheiras, as morcelas e as chouriças exigia o concurso de várias mulheres. Para também prepararem o banquete para todos aqueles adultos e respetiva miudagem.
Daquela vez, o tio convidou também uma família colateral, que não costumava estar presente neste acontecimento anual em casa de cada tio. E ela apareceu, linda e discreta. Devia ter mais um ano do que Orlando e era muito diferente das outras meninas que orbitavam o mundo dele. As outras eram como que irmãs, na proximidade de parentesco e nas brincadeiras estouvadas. Delfina — esse o seu nome —, não. Ela era outro mundo. Um mundo de arranjo e delicadeza. Os cabelos — oh, os cabelos —, caíam penteados, lisos, a terminar numa volta, sobre os ombros. Os olhos seriam castanhos como os cabelos? Eram suaves e sorriam. A compostura do vestido de golinha, apertado por um cinto do mesmo tecido, também tocou Orlando. E a graça e simpatia que irradiava deslumbraram-no durante toda a tarde.
Ninguém faz planos para se apaixonar, muito menos um menino de sete ou oito anos. Sabe que os homens e as mulheres se casam, mas não sabe muito bem por quê. E calcula que um dia também casará. Talvez por gostar de alguém.
A única experiência que Orlando tivera nesse campo não correra bem. A inconfidência de uma tia, à janela, quando passava Acilda, uma morena de trança, denunciara o seu enlevo encoberto: «Olha, vai ali a tua esposada!» A consequência fora a humilhação de um «Querias-me?! Pff…» que a morena lhe lançou quando o encontrou a caminho da escola e o deixou infeliz, a suspeitar que casar, ainda que gostando, era mais difícil do que parecia.
Orlando não falou a ninguém, sobretudo à desbocada tia, da perturbação que a recente conhecida lhe provocara. Não sabia dizer se era amor — aquilo de que os adultos falavam — o que sentia. Não sabia dar-lhe um nome. Sentia, sim, uma alegria íntima e serena, que não se manifestava por cabriolas, mas também uma inquietação, um temor de não conseguir aprofundar aquela afeição. Sentia ternura e um querer bem que não sentira, talvez, por ninguém.
Nas suas orações antes de adormecer, passou a lembrar e interceder por aquela criatura doce e bela por quem estremecia. O máximo de harmonia com ela vislumbrava-o numa atualização da estampa pendurada por cima da sua cama: ambos de mão dada na travessia de uma ponte frágil sobre um rio caudaloso, mas protegidos por um anjo-da-guarda.
Por aqueles dias, Orlando recebeu uns três ou quatro rebuçados. Logo decidiu que um seria para ela, para lhe oferecer, como prova de bem-querer. Por uma lamentável desatenção das forças celestes, porém, Delfina adoeceu. Orlando, de rebuçado no bolso, não encontrou a estremecida do seu coração nos dois dias seguintes.
No terceiro dia, no regresso à escola depois de almoço, tão alheado ia que automaticamente fez o que não queria: desembrulhou o rebuçado e meteu-o na boca. Chegou a sentir-lhe o doce. Espantado, desagradado consigo próprio, retirou-o da boca, como blasfémia. O rebuçado era para ela, estava prometido em intenção. Tinha de lho entregar, ainda que lhe apetecesse continuar a saboreá-lo.
Resolveu entrar na venda do pai de Delfina e confiar-lhe o rebuçado para ele lho entregar. Temia, no entanto, que algum cliente percebesse o enamoramento no seu gesto e fizesse algum comentário que o envergonhasse. Ganhou coragem e entrou, mas a venda estava vazia. Mesmo o pai de Delfina devia estar lá para dentro. Pensou chamá-lo, mas isso já ia além da sua coragem.
Deixou o rebuçado, embrulhado e um pouco agarrado ao papel, em cima do balcão de mármore e saiu em direção à escola. Não era isto que tinha idealizado, mas cumprira a promessa, tanto quanto conseguira.
No regresso, entrou na venda, mais uma vez deserta. O balcão estava limpo. Nem sinal do pequeno volume roliço do rebuçado. Teria Delfina chegado a recebê-lo? Pouco provável, concedeu. Com certeza que o pai o tinha deitado fora, sem suspeitar da sua importância.
Quando voltou a vê-la, já tinha passado uma semana ou duas e o enamoramento, por falta de alimento, murchara. Casar devia ser muito mais difícil do que parecia.
Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. O que parecia importante num dia esquecia-se alegremente no dia seguinte. O futuro é que traria a compreensão da importância de cada coisa. Talvez.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 207 a 210 — a antologia “Esse jeito doce com que tu me acaricias” da Editora Jogo de Palavras, em 2019:


e obteve o 5º lugar, na categoria Conto, no I Prémio Literário Pescaria (Brasil), de 2015.
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Imagem: Bartolomé Esteban Murillo, Meninos jogando aos dados, c. 1675.
Antiga Pinacoteca, Munique.
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