10/04/2020

Um enterro em Ornans




O séquito aproximava-se do cemitério encabeçado por duas filas de homens. Enquadravam a carreta, precedida por um sacristão que segurava a longa haste de uma cruz processional. Logo atrás, em passo arrastado, seguia o padre, envolvido pelos restantes sacristães em suas opas brancas. A fechar o cortejo, a massa escura das mulheres. Do ruído surdo de tantos passos e de um leve gemido dos rodados, sobressaía o toque de finados na torre da aldeia, que ficara para trás. Vistos de fora, parecia que caminhavam há horas, mas sem saírem do mesmo sítio. Esse arrastamento do tempo causava um certo desconforto num insuspeito espectador. Apetecia que terminassem logo aquilo a que se propunham: enterrar a Dona Clarisse de oitenta e dois anos.
Finalmente, chegaram aos portões do cemitério. Os portadores retiraram o caixão e começaram a transportá-lo, com a ajuda de faixas de pano que fizeram passar por baixo do féretro e que seguravam sobre os próprios ombros. Agora, o grupo deslocava-se por entre algumas poucas sepulturas em direção a um monte de terra escavada de fresco, onde se encontrava o coveiro em atitude expectante, acompanhado do seu cão. Aí chegados, puderam perceber o vazio da cova, que seria a última morada da defunta. O oficiante aproximou-se, fez uma pausa, a dar tempo aos acompanhantes de se arrumarem em volta da tumba, e começou a ler os trechos litúrgicos adequados ao ato fúnebre.
Então, ouviu-se um longo gemido abafado. O padre parou a leitura, os sacristães entreolharam-se, os portadores que tinham pousado a carga esboçaram um trejeito de desagrado, enquanto os restantes presentes olhavam para o ataúde sem mostrar o mínimo movimento de surpresa. A um gesto do padre, os dois funcionários laicos da igreja levantaram a tampa do caixão e um deles perguntou, impaciente:
— O que foi, agora?
Vista de fora, a situação suscitava grande perplexidade. Estendida no seu leito de morte, Dona Clarisse, de olhos fechados e tez lívida, respondeu num longo e lúgubre lamento:
— Eu não quero ser enterrada neste cemitério. Quero ficar em Ornans ao pé dos meus pais, do meu filho Jean, e das minhas amigas. Neste meio do nada, não conheço ninguém.
Ouvido isto, todo o grupo de cerca de cinquenta pessoas começou a murmurar e a abanar a cabeça, reprovando a atitude da defunta.
— Já lhe dissemos que não pode ser — respondeu o mais alto, que era cordoeiro, imponente na sua vestimenta carmesim. — O cemitério velho esgotou a capacidade com os mortos de há dois anos. Não cabe lá mais ninguém. Tem de ficar neste novo.
[Ainda não era Covid-19, mas, a partir da Revolução Francesa e suas réplicas, devido ao número crescente de mortes, a exiguidade dos cemitérios tradicionais junto à igreja levou à sua deslocalização para fora das povoações.]
— Não quero saber — insistia a morta —, onde cabem cem cabem duzentos. Metam-me numa sepultura antiga, onde já só haja ossos.
— Não há! — irritava-se agora o outro oficial. — A revolução de 1848 aumentou tragicamente o fluxo normal de mortos. Todas as campas possíveis foram utilizadas. E esses mortos ainda não estão em condições de levantar.
— Sei bem o que fizeste, safado! — contra-atacava a falecida. — Deixaste sepultar lá gente de outras terras, a troco de uns quantos “napoleões”. 
— Estou farto disto! — esbravejou o visado. — Ou que estamos a guardar as campas para os amigos, ou que só as damos a quem paga bem; agora são os mortos de outras terras. Eu vou-me embora.
E, dito isto, retirou-se em grandes passadas. Pouco depois, era a vez do segundo oficial abandonar o cemitério, após Dona Clarisse sugerir que ele exercia estas funções por favorecimento do padre. Este dirigiu-se então à finada com palavras que denunciavam já uma irritação mais própria de um homem dominado pelas emoções primárias do ser humano do que pela sábia serenidade de um intermediário do sagrado.
— Ó, Dona Clarisse, eu não lhe admito isso! A senhora não pense que pode dizer o que lhe apetece, só porque está morta. Vamos lá esclarecer uma coisa: nós não vamos ficar aqui a tarde toda a discutir os pequenos caprichos da senhora. Daqui a pouco é noite e, se não se decide depressa, fica aqui mesmo, tal e qual, de tampa aberta. Pode ser que os lobos cá venham fazer-lhe companhia... Agora, escolha!
— Você não pense que me assusta, com esse palavreado, seu badameco, que eu de si não tenho medo! — redarguiu Dona Clarisse, de voz alterada. — Você é que tem com que se preocupar, se não me levar já para o cemitério velho. Ou pensa que eu não sei as propostas que fez à minha sobrinha mais nova? Agora é que o povo todo vai ficar a saber a quem se tem andado a confessar!
Estas palavras foram de mais para o pároco de Ornans. As suas mãos largaram o breviário e lançaram-se ao pescoço de Dona Clarisse, numa tentativa vã de estrangular uma morta. O gesto tresloucado foi rapidamente travado por alguns dos presentes, nomeadamente o regedor de Ornans e dois assumidos partidários da I República, o que não impediu que a touca negra da defunta, na confusão, lhe fosse arrancada da cabeça.
Vista de fora, a cena era deveras confrangedora. Qualquer cidadão normal se sentiria angustiado com o desrespeito pelos mortos manifestado por aquela assembleia, e pelo comportamento inesperado e impertinente de um deles.
Terá sido esse desaforo social que fez Gustave Courbet acordar em sobressalto. Envolto pelo escuro do seu quarto de Ornans, mantinha vívidas na retina as imagens violentas a que acabara de assistir. Temeu pela sua obra mais recente — aquela que lhe tinha levado três meses a realizar em condições difíceis. Pintara cinquenta pessoas da aldeia, uma a uma, no espaço esconso do sótão, numa enorme tela de três por mais de seis metros, como memória do funeral da sua velha tia Clarisse.
Em grande agitação, acendeu uma lanterna e subiu ao sótão. Os cinquenta aldeãos aguardavam-no, solenes e calmos, no seu ritual fúnebre: os portadores, segurando o caixão, os sacristães, os funcionários laicos, o padre, o coveiro, os vários homens de aspeto grave, o grande grupo das mulheres de escuro e coifas brancas. Tudo estava no seu lugar, como seria de esperar no mundo real. Mesmo o cão do coveiro mantinha um ar curioso por tão grande ajuntamento. Eram assim os enterros em Ornans. Afinal, fora apenas um sonho, bizarro como todos os sonhos.
Deixou-se envolver por uma reconfortante sensação de alívio. A inquietação de há pouco deu lugar a um consolador relaxamento. Então, reparou no padre: a sua mão direita agarrava ainda a touca amarfanhada da velha tia Clarisse…

Joaquim Bispo
*
Este conto integra — páginas 169 e 170 — a coletânea resultante da edição de 2015 do Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil.
Também por seleção em concurso literário, integra — páginas 100 a 102 — a 19ª edição (janeiro/fevereiro de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


*
Imagem: Gustave Courbet, Um enterro em Ornans, 1849–1850.

Museu d'Orsay, Paris.
* * *


10/03/2020

O cavalo que queria ser famoso



Era uma vez um cavalo que vivia em Pádua. Servia como montada de um capitão do exército, e o que se vai contar passou-se há muitos anos, quando as guerras eram feitas com cavalos e espadas.
Certo dia, quando o cavalo estava no tronco para ser ferrado, entrou um ladrão no recinto. O meliante, que vinha armado, levantou um ferro para bater na cabeça do ferrador. O cavalo assustou-se, e, como ainda não estava com as patas presas, pregou um valente coice no assaltante, que foi abater-se contra um muro. O ferrador ficou muito agradecido e disse ao cavalo:
Vou cravar-te, no casco da pata direita, uma ferradura, que me deu um génio, há muitos anos, por serviços prestados. Quando estiveres em perigo, raspa com ela no chão e diz três vezes: Hihihipoho.
O cavalo foi-se embora e quase que se esqueceu do assunto, mas um dia, em grande galope numa batalha, tropeçou e estatelou-se com uma pata partida. Lembrou-se logo da ferradura mágica do ferrador; escarvou o chão e disse três vezes “Hihihipoho”. Encontrou-se, de repente, numa clareira duma floresta de carvalhos e viu um génio, que era homem da cintura para cima e cavalo da cintura para baixo, que lhe disse:
Que ajuda precisas, cavalo?
Parti uma pata e quero que me salves de ser abatido. Um cavalo de pata partida já não serve para montada de ninguém.
O génio deu três sacudidelas com a cauda e o cavalo ficou curado.
Ainda tens dois pedidos — disse o génio esfumando-se. — Usa-os bem!
Ora, uns tempos depois, passou o “nosso” cavalo no adro da basílica de Santo António e, como o seu dono encontrou outros cavaleiros e se pôs a conversar, pôde admirar a estátua equestre ali erguida. O cavalo de bronze era tão possante, que parecia ser ele que dirigia o cavaleiro. Perguntou aos outros cavalos, quem era aquele da estátua, mas nenhum soube dizer. Então, interrogou um pombo que por ali andava e este respondeu:
O cavalo, não sei, mas o cavaleiro é o grande comandante veneziano Gattamelata, esculpido pelo, não menos famoso, Donatello. É o que ouço dizer.
O cavalo ficou tão impressionado pela majestade da estátua que, após muito meditar, resolveu que ia dedicar o resto da vida a servir alguém famoso, para ser retratado com ele para a posteridade e também ficar famoso. Quando ficou a salvo dos olhares humanos, raspou com a ferradura mágica no chão e disse três vezes “Hihihipoho”. Viu-se logo na clareira do génio-centauro, e este perguntou:
Que ajuda precisas, cavalo?
Não estou em perigo, génio, desculpa — explicou o cavalo —, mas preciso que me arranjes um dono famoso, para ser retratado para a posteridade, como o cavalo de Gattamelata.
Tu é que sabes! — ralhou o génio. — Olha que este pedido te pode fazer falta mais tarde!
Eu quero ser retratado em bronze, nada mais me interessa!
Então, o génio, vendo a decisão resoluta que o cavalo tinha tomado, disse-lhe:
É pena não teres pensado nisso um pouco mais cedo. Está a ser erigida, em Veneza, uma estátua equestre maravilhosa, a do comandante veneziano Bartolommeo Colleoni. Mas é melhor veres.
Dito isto, apareceu no centro da clareira uma estátua equestre. O cavalo parecia mais pequeno que o de Pádua, mas estava esculpido com tal garbo e com tal realismo de pormenores, que parecia vivo.
É assim mesmo que eu quero! — emocionou-se o cavalo.
Infelizmente, quem fez este já não faz mais; foi esculpido por mestre Verrochio, que morreu há pouco. Mas, sempre te digo, que o seu discípulo Leonardo é um artista prometedor a quem muitos poderosos já recorrem. Queres ficar ao seu serviço?
O cavalo relinchou agradecido e pouco depois achou-se em Milão, na cavalariça usada por Leonardo da Vinci. Estava este a arquitetar uma estátua equestre gigantesca, de mais de sete metros atuais, para a corte de Milão, pelo que observava e desenhava cavalos, anotava a medida de cada parte do seu corpo, para encontrar a proporção ideal, e tentava arranjar maneira de fundir uma peça tão grande. Também o nosso cavalo foi sujeito a medidas rigorosas, o que muito o alegrava, imaginando já, retratada em escala monumental, alguma parte do seu corpo, se não o todo. Ao longo de dois ou três anos, viu multiplicarem-se os esboços, e crescer o modelo em barro. Infelizmente, antes de a estátua final estar acabada, o bronze foi necessário para fazer canhões e o projeto foi abandonado.
Muito triste com o malogro, o nosso cavalo escarvou, outra vez, o chão e disse três vezes “Hihihipoho.
Que ajuda precisas, cavalo? — perguntou o centauro na clareira de carvalhos.
O projeto de Milão fracassou. Estou desesperado, não sei o que fazer — choramingou o cavalo.
Não te prometo nada, mas se te mantiveres sempre perto de Leonardo, estou convencido que acabarás por ter êxito.
E, assim, foi o nosso cavalo parar a Florença, onde Leonardo veio a ter a encomenda da pintura mural de uma batalha, para o salão nobre do palácio do governo da República. Foi escolhida a de Anghiari — uma batalha entre florentinos e milaneses — cujo motivo central Leonardo resumiu ao choque selvático entre quatro cavaleiros. Durante longas horas, o nosso cavalo posou, pacientemente, nas cavalariças de Santa Maria Novella, onde Leonardo preparava um enorme esquiço, que depois transferia para a parede do palácio. Jurava, para si próprio, que a cabeça do cavalo mais à direita, embora em esgar de furor, era tal qual a sua. Infelizmente, Leonardo era lento a trabalhar e começou a ser solicitado por trabalhos mais bem pagos, de modo que a pintura da batalha não chegou a ser concluída.
O nosso cavalo ficou muito desanimado, mas, quando pensava que era o mais infeliz dos cavalos, sobreveio o pior: o seu artista, o homem a quem tinha dedicado tantos anos de sacrifício, em poses longas e difíceis, tencionava abatê-lo para lhe estudar o esqueleto, os nervos e os músculos. Entrou em pânico. Assim que pôde, raspou com a ferradura mágica no chão e gritou:
Hihihipoho. Hihihipoho. Hihihipoho.
Por que me chamas, cavalo? — perguntou o génio.
Salva-me, por favor, que Leonardo quer abater-me para me estudar os ossos.
Ó cavalo, tenho muita pena, mas já esgotaste os pedidos! Eu avisei-te! — respondeu o génio, com um ar muito contristado. — Não posso fazer nada. E, além do mais, já tens que idade!?; mais de vinte anos! Eu, se fosse a ti, continuava com Leonardo. Dizem que os desenhos que faz, de ossos e músculos de homens e animais, são tão admiráveis como as suas pinturas e as suas máquinas de guerra. Assim, como assim, a que é que querias dedicar-te nessa idade?
O nosso cavalo voltou para casa, resignado. Umas semanas depois, Leonardo dissecou-o, examinou e mediu todos os elementos, e desenhou-os com todo o rigor. Nessa altura, andava empenhado em comparar o esqueleto e os músculos dos membros do Cavalo e do Homem.

Assim acaba a história do cavalo que queria ser retratado como os famosos, o que, de certa maneira, conseguiu. Ninguém pode dizer que os rascunhos de Da Vinci para o grande monumento de Milão ou para o salão de Florença tenham elementos de um único cavalo, mas alguns investigadores estão convencidos de que os esboços anatómicos de um cavalo que são comparados com os de um homem são de um só animal, um que nós sabemos!

Joaquim Bispo
*
Este conto foi publicado no nº 10 da Revista de Artes e Ideias, Alma Azul, Coimbra, 2014
e,
por seleção em concurso literário, integra — páginas 54 a 58 — a antologia “Zoonarrativas Zooopoéticas” da Editora Jogo de Palavras, de março de 2019:


*
Imagem: Maria Leal da Costa, Luís Valadares, Cavalo Alter Real, 2005.
Alter do Chão
* * *


10/02/2020

Os pintassilgos



O verão estava no auge. Das aulas já Albertino se tinha esquecido alegremente, nos seus treze anos ávidos de amplidão campestre, o pé descalço, liberto, as roupas soltas, o chapéu desabado, mas confortável. O seu céu era a ribeira: um charco aqui, outro acolá; o resto, areal sombreado pelos amieiros, o frescor e o jogo das areias, duma firmeza indolente, a acariciar-lhe as solas dos pés a cada passada, a ceder com um ruído arrastado de languidez — música para os seus ouvidos. Por cima, o emaranhado dos salgueiros ou o horizonte mais alto das copas dos amieiros, ondulando suavemente; o sol a vibrar nos seus olhos ao ritmo da folhagem, a atenção concentrada, a fisga preparada, a “coronha” com mais de 30 marcas. Qualquer movimento irregular da ramagem podia indicar um pássaro. Então, era a procura da posição favorável, de maneira uniforme e muito lenta, para não se denunciar. Se a mancha do pássaro se mostrasse desimpedida, era o retesar dos elásticos, a pedra centrada na rodela de cabedal, a pontaria instintiva. E o tiro partia. Caprichosamente, muitas vezes a pedra descrevia um arco ou batia em qualquer pequeno obstáculo e o disparo gorava-se. E a caçada prosseguia. As horas passavam, o prazer inebriava, só o estômago obrigava a regressar ao casarão familiar de telha vã.
A observação dos pássaros e da sua beleza, a fruição dos seus cantos, levava-o a querer engaiolar alguns, para tê-los à disposição do seu prazer auditivo e visual, mas também para ostentação do troféu. Com alguma habilidade, construiu uma gaiola com uma tábua, vários galhos e arames velhos, na qual não faltavam comedouro, bebedouro e uma portinhola com mola. Sabia que não podia engaiolar pássaros que se alimentassem de insetos e larvas. Só os que comessem sementes. E destes, qual seria o mais bonito: o canário ou o pintassilgo?
Um dia descobriu um ninho de pintassilgos nos ramos de uma oliveira pequena. Três ovos. Foi-o guardando, mas evitando aproximar-se demasiado, sabendo que os pássaros chegam a abandonar os ovos, e até os filhotes pequenos, se notam que o ninho anda a ser controlado. Curiosamente, se os encontrarem numa gaiola — ouvia dizer — alimentam-nos até perderem a esperança de os ver soltos e então dão-lhes sementes venenosas para os matar. Por isso, planeou encerrá-los na gaiola poucos dias antes de poderem voar, e deixá-la pendurada na oliveira onde estava o ninho. Isso permitiria não os deixar escapar e esperava que os pais os alimentassem por mais uns dias, os suficientes para que eles conseguissem comer, por si, as sementes que lhes iria pôr na gaiola. E, então, trazê-la para casa.
Os dias foram passando arrastadamente, os passarinhos nasceram e foram-se emplumando. Quando achou que poderiam voar em breve, meteu-os na gaiola, com água no bebedouro e alpista no comedouro. Como a oliveira era demasiado aberta, temeu uma excessiva exposição ao inclemente sol estival e resolveu pendurar a gaiola no ramo alto de uma árvore frondosa que distava dali uns duzentos metros. A distância não seria problema, dado que os pássaros detetam com facilidade os pios uns dos outros. Lá os deixou e voltou feliz para o casarão. Já tinha os seus pintassilgos!
No dia seguinte, chegou a “malhadeira”, aquela monstruosa máquina debulhadora, do tamanho duma camioneta de carreira, com os seus ruídos estranhos e movimentos sinistros, mas com capacidades maravilhosas, com que nessa década de sessenta se debulhava o produto das searas. Recebia molhos de centeio desatados, por uma abertura superior, que, depois de suspeitados safanões, pancadas e outros tratos violentos no seu interior, vertia, por um bocal, o grão, que era aparado em sacas de serapilheira e lançava, pelo outro lado, a palha em borbotões. O cereal era acarretado para a tulha; a palha era acondicionada ao lado da eira em montões redondos de perfil ogival, para resistirem às chuvas. Ameaçadora era a longa correia de transmissão de movimento, que ligava um cilindro metálico giratório, num trator anexo, a um cilindro semelhante na debulhadora, o qual fazia funcionar todas aquelas peças em madeira que iam e vinham num ritmo contínuo e ensurdecedor, cumprindo tarefas difíceis de adivinhar no interior do engenho.
A meda do centeio era grande, a lide contagiante; havia a novidade de toda aquela gente que lidava com a máquina com enorme destreza e rapidez, apesar dos perigos que ela representava. Contavam histórias de outras eiras, de alguém que, ao meter o centeio, tinha deixado ir a mão muito à frente e tinha ficado sem alguns dedos, ou daquela mulher que se desequilibrara e caíra lá para dentro...
Ao fim do segundo dia, cumprida a debulha, foram-se todos embora: os ceifeiros, para as suas terras; a debulhadora, a caminho de outra eira. A paisagem nesta mostrava-se substancialmente alterada. A anterior meda em forma de casa, feita de molhos de centeio carregado de grão, transformara-se nuns cinco ou seis grandes montes de palha leve — cama de gado para o ano inteiro. Ficava no olhar um brilho baço de fim de festa. Voltava a calma, voltava a rotina de todos os outros dias.
De repente, lembrou-se. A ideia retiniu-lhe na cabeça em toque de alarme. Tinha-se esquecido completamente dos pintassilgos. Teriam os pais descoberto os filhotes? Teriam alimentado as crias encarceradas? Desatou a correr para a árvore afastada, em desatino. Trepou rapidamente até ao galho onde os tinha dependurado, mas o coração apertava-se-lhe — não ouvia qualquer pio. Por fim, assomou. O fim de tarde ia ainda quente, mas pelo corpo de Albertino perpassou uma onda do frio glacial das noites de inverno. O olhar tentava discernir o que o remorso persistia em enevoar. Daqueles três passarinhos, já todos cobertos de pequenas penas firmes e bem compostas, já a imitar a coloração dos pais, nada mais restava do que três novelos de penas emaranhadas, desgrenhadas, tombados no chão da gaiola.
Retirou-os. Estavam frios. Tinham morrido há muito. De frio? De fome? De sementes venenosas dadas pelos pais? Tanto fazia. Albertino só sentia que, pela sua cobiça pueril, pela sua negligência, tinham morrido três lindas avezinhas. Morte estúpida, perda pura.
Voltou para casa acabrunhado. Não chorou. Os adultos reprovavam o choro nos rapazes.

Joaquim Bispo
*
Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 18 a 20 — a edição n.º 63 da revista Brasil Nikkei Bungaku, de novembro de 2019, da Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil, São Paulo.

*
Imagem: Federico Barocci, A Madona do Gato, 1575.
National Gallery. Londres.
* * *

10/01/2020

Passos





Naquela noite, quando Zidanta ouviu passos, soube que era o Grande Ceifeiro que já o procurava. Sempre acreditara que viria assim, furtivo e impiedoso; só não sabia quando.
Zidanta, o Grande Rei dos Hititas, o favorito do deus Tarhun, estava velho. Já não podia encabeçar o temível exército de carros e ir ao Sul submeter um príncipe sírio ou fazer recuar os Hurritas no Médio Eufrates. Já raramente visitava alguma das suas rainhas. Mantinha-se no seu palácio de Hattusa, recebia comissões de comerciantes assírios, que queriam negociar no seu reino, ou embaixadas de alguma pequena corte, a reiterar submissão e a pedir proteção contra inimigos regionais. Nesses dias, sentava-se junto a uma janela, assistia à entrada das comitivas pela colossal Porta dos Leões e, depois, assumindo uma postura grave e reservada, esperava-as na sala do trono, ladeado pelo Grande Escriba e seus funcionários.
Os passos, já! O velho guerreiro estava reclinado na sua câmara de dormir, amodorrado, mas de ouvido alerta, quando os ouviu. Eram suaves e furtivos. Mesmo pouco audíveis, Zidanta percebeu-os, por entre os outros ruídos de passos da Guarda, que, pausadamente, fazia a ronda noturna à volta dos aposentos reais. Só um inimigo se deslocaria assim.
Num relance, recordou a curta história do seu reino, em que os soberanos acabavam, muitas vezes, por sucumbir a revoltas, traições e golpes palacianos, que não poupavam sequer o resto da família. Fora assim com o rei Mursili, seu tio, massacrado por si e pelo próprio cunhado Hantili, seu sogro, o qual também veio a ter a mesma sorte: após vários anos de reinado, morreu às suas mãos, juntamente com o filho, netos e todos os que podiam ter pretensões ao trono.
Teria chegado a sua vez? Apurou o ouvido; os passos eram arrastos ténues, de origem incerta, escassos e dissimulados. Pareciam os de um só homem. Estaria dentro da câmara? Manteve-se imóvel, mas de olhos semicerrados, tentando enxergar alguma sombra que se movesse na obscuridade do aposento. Pareceu-lhe notar uma alteração de luminosidade numa coluna junto ao altar doméstico ao Deus da Tempestade. Dirigiu um apelo mudo à divindade para que o livrasse desta provação, como o tinha salvado de tantos outros perigos que vencera ao longo dos anos.
Não queria mover-se, para manter o agressor na ilusão de o poder apanhar desprevenido. Gritar pela Guarda podia não lhe trazer uma ajuda tão rápida como precisava para salvar a vida; decidiu que se defenderia sozinho. Zidanta tinha sempre um machado de bronze à mão. Quando o atacante se aproximasse, teria uma surpresa. Começou a deslizar o braço direito sob os panos, lenta e impercetivelmente, na direção do tamborete junto ao leito, enquanto tentava adivinhar quem seria o agressor.
Conhecia bem o seu povo e os membros da sua corte. Qual poderia querê-lo morto? Talvez o seu cunhado, Huzziya, sempre cheio de mesuras, mas que não conseguia esconder uma certa perfídia no olhar. Criticava veladamente o atual estado do país, onde os Gasgas das montanhas junto ao Mar Negro se estendiam para Sul e ocupavam florestas e pastagens, e os Hurritas, a Sudeste, já se permitiam fazer incursões no país e tomar cidades.
Talvez Zuru, o chefe da Guarda, esse guerreiro do país de Mitani, que procurara refúgio entre os Hititas. Aparentemente leal, tornara-se um militar imune às querelas internas do exército hitita, por não ter ligações de sangue com os outros oficiais. Nunca hesitava perante uma ordem, mas o estado de inquietude do exército, devido à ausência de campanhas, talvez o tornasse vulnerável a intrigas. Ultimamente, vislumbrara-lhe uma ou outra crispação no rosto barbudo.
Seria Neferhotep, a egípcia rainha segunda, que nunca aceitara a posição secundária do seu filho na linha de sucessão? Se assim fosse, iria eliminar também os dois filhos da rainha primeira.
Os passos macios aproximavam-se. Sentiu-os mais perto. Agora, estava certo de que alguém se introduzira na câmara real. Era tempo de agir. A sua mão alcançou o tamborete, tateou, mas nada encontrou. A lâmina de duplo gume não estava onde a tinha posto. Uma onda gelada percorreu-lhe o corpo. O seu coração acelerou e batia ruidosamente, abafando o som dos passos. Teve de fazer um esforço de disciplina para não ofegar, nem se agitar, o que poderia desencadear o ataque do intruso. Percebeu uma sombra acocorada no chão, a uns três passos de distância. Soube então de onde vinha a ameaça. Tinha de aproveitar essa pequena vantagem.
Num só movimento de animal acossado, rodou o corpo para a esquerda, meteu a mão sob a almofada, empunhou a adaga, que sempre o acompanhava e, de um salto, abateu-se sobre o vulto, cravando-lhe a lâmina com quanta força tinha. Bradou então pela Guarda. Dez homens entraram de rompante na câmara real. À luz dos archotes que alguns empunhavam, os guardas depararam com um rei lívido, de olhar incrédulo fixado na tartaruga marinha oferecida nessa manhã pelo embaixador de Luqqa e que exibia uma adaga espetada no alto da carapaça.
Na noite seguinte, cansado e humilhado, Zidanta deitou-se cedo. Antes de adormecer, ainda vislumbrou um brilho fugaz na lâmina do machado, empunhado pelo seu filho Ammuna, quando se abateu sobre si a zunir e o decapitou. No meio da névoa de dor e assombro que o envolveu, num último lampejo de consciência, admirou-se de não ter ouvido passo algum.

Joaquim Bispo
*
Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 131 a 133 — a 17ª edição (setembro/outubro de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


*
Imagem: Leoa agonizante, (baixo relevo), Palácio de Assurbanipal, Assíria, século VII a. C..
Museu Britânico, Londres.
* * *



10/12/2019

O tempo dos rebuçados




O primeiro encontro foi como uma caixa de rebuçados. Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. Mas também de uma das primeiras responsabilidades: a escola.
Nos dias de primavera, Orlando, de botas com sola de borracha feitas no sapateiro, palmilhava bem cedo os três quilómetros do caminho entre muros que separava a queijeira, onde morava com a avó, da escola da aldeia, cruzando-se com carros de bois, grupos de mulheres a caminho das hortas, um rebanho a atravessar de um terreno para outro. Se estava frio, apressava o passo a contornar uma ou outra poça de água, mala com cadernos a tiracolo, uma mão a aquecer-se no bolso, a outra a pegar no cabazinho da merenda. Daí a pouco, as letras, as contas, as brincadeiras de recreio e o almoço debaixo de uma olaia, com os outros dois miúdos que também vinham dos campos.
No regresso, o conforto do calor e da falta de pressa convidavam-no a alongar-se em observações da natureza: o lagarto verde esparramado ao sol que, não conseguindo intimidá-lo abrindo a boca vermelha, se esgueirava para um buraco das paredes; o rendilhado de alguns penedos; as poupas, os cucos, os pintassilgos. E a estranheza do mundo do tic-tic-tic ritmado dos canteiros, alguns bem jovens, em alguma das pedreiras adjacentes ao caminho. Um mundo que não era de rebuçados.
Um dia encontrou vinte e cinco tostões no recinto da romaria que o caminho atravessava. Rapidamente se esfumaram em rebuçados embrulhados em estampas de jogadores de futebol.
De inverno, a ida para a escola era mais monótona e mais simples. Era só atravessar o casario, desde a casa da avó, na aldeia. No regresso, a brincadeira com a restante criançada nos quintais e nos casarões familiares. Ao domingo, catequese à tarde e talvez apanhar moedas pretas e rebuçados lançados de alguma janela ou varanda no fim de um batizado. Os dias corriam sem preocupações, com pouca relação uns com os outros. E, de repente…
O primeiro encontro com ela foi como receber uma caixa de rebuçados. A festa era de carnes, da matança do porco e respetiva comezaina. A família alargada habitual estava reunida em casa de um tio por este motivo. Segurar, matar, limpar e desmanchar um porco exigia o concurso de vários homens. E o trabalho de lavar as tripas, preparar os recheios e encher com eles as farinheiras, as morcelas e as chouriças exigia o concurso de várias mulheres. Para também prepararem o banquete para todos aqueles adultos e respetiva miudagem.
Daquela vez, o tio convidou também uma família colateral, que não costumava estar presente neste acontecimento anual em casa de cada tio. E ela apareceu, linda e discreta. Devia ter mais um ano do que Orlando e era muito diferente das outras meninas que orbitavam o mundo dele. As outras eram como que irmãs, na proximidade de parentesco e nas brincadeiras estouvadas. Delfina — esse o seu nome —, não. Ela era outro mundo. Um mundo de arranjo e delicadeza. Os cabelos — oh, os cabelos —, caíam penteados, lisos, a terminar numa volta, sobre os ombros. Os olhos seriam castanhos como os cabelos? Eram suaves e sorriam. A compostura do vestido de golinha, apertado por um cinto do mesmo tecido, também tocou Orlando. E a graça e simpatia que irradiava deslumbraram-no durante toda a tarde.
Ninguém faz planos para se apaixonar, muito menos um menino de sete ou oito anos. Sabe que os homens e as mulheres se casam, mas não sabe muito bem por quê. E calcula que um dia também casará. Talvez por gostar de alguém.
A única experiência que Orlando tivera nesse campo não correra bem. A inconfidência de uma tia, à janela, quando passava Acilda, uma morena de trança, denunciara o seu enlevo encoberto: «Olha, vai ali a tua esposada!» A consequência fora a humilhação de um «Querias-me?! Pff…» que a morena lhe lançou quando o encontrou a caminho da escola e o deixou infeliz, a suspeitar que casar, ainda que gostando, era mais difícil do que parecia.
Orlando não falou a ninguém, sobretudo à desbocada tia, da perturbação que a recente conhecida lhe provocara. Não sabia dizer se era amor — aquilo de que os adultos falavam — o que sentia. Não sabia dar-lhe um nome. Sentia, sim, uma alegria íntima e serena, que não se manifestava por cabriolas, mas também uma inquietação, um temor de não conseguir aprofundar aquela afeição. Sentia ternura e um querer bem que não sentira, talvez, por ninguém.
Nas suas orações antes de adormecer, passou a lembrar e interceder por aquela criatura doce e bela por quem estremecia. O máximo de harmonia com ela vislumbrava-o numa atualização da estampa pendurada por cima da sua cama: ambos de mão dada na travessia de uma ponte frágil sobre um rio caudaloso, mas protegidos por um anjo-da-guarda.
Por aqueles dias, Orlando recebeu uns três ou quatro rebuçados. Logo decidiu que um seria para ela, para lhe oferecer, como prova de bem-querer. Por uma lamentável desatenção das forças celestes, porém, Delfina adoeceu. Orlando, de rebuçado no bolso, não encontrou a estremecida do seu coração nos dois dias seguintes.
No terceiro dia, no regresso à escola depois de almoço, tão alheado ia que automaticamente fez o que não queria: desembrulhou o rebuçado e meteu-o na boca. Chegou a sentir-lhe o doce. Espantado, desagradado consigo próprio, retirou-o da boca, como blasfémia. O rebuçado era para ela, estava prometido em intenção. Tinha de lho entregar, ainda que lhe apetecesse continuar a saboreá-lo.
Resolveu entrar na venda do pai de Delfina e confiar-lhe o rebuçado para ele lho entregar. Temia, no entanto, que algum cliente percebesse o enamoramento no seu gesto e fizesse algum comentário que o envergonhasse. Ganhou coragem e entrou, mas a venda estava vazia. Mesmo o pai de Delfina devia estar lá para dentro. Pensou chamá-lo, mas isso já ia além da sua coragem.
Deixou o rebuçado, embrulhado e um pouco agarrado ao papel, em cima do balcão de mármore e saiu em direção à escola. Não era isto que tinha idealizado, mas cumprira a promessa, tanto quanto conseguira.
No regresso, entrou na venda, mais uma vez deserta. O balcão estava limpo. Nem sinal do pequeno volume roliço do rebuçado. Teria Delfina chegado a recebê-lo? Pouco provável, concedeu. Com certeza que o pai o tinha deitado fora, sem suspeitar da sua importância.
Quando voltou a vê-la, já tinha passado uma semana ou duas e o enamoramento, por falta de alimento, murchara. Casar devia ser muito mais difícil do que parecia.
Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. O que parecia importante num dia esquecia-se alegremente no dia seguinte. O futuro é que traria a compreensão da importância de cada coisa. Talvez.

Joaquim Bispo
*
Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 207 a 210 — a antologia “Esse jeito doce com que tu me acaricias” da Editora Jogo de Palavras, em 2019:


e obteve o 5º lugar, na categoria Conto, no I Prémio Literário Pescaria (Brasil), de 2015.
*
Imagem: Bartolomé Esteban Murillo, Meninos jogando aos dados, c. 1675.
Antiga Pinacoteca, Munique.
* * *


10/11/2019

A zorra


A vida de Anselmo Carvalho, sempre acompanhada por uma corrente de consciência palradora, decorria num ramerrame pontuado pela regularidade pendular das refeições domésticas, a vacuidade dos programas televisivos e a futilidade dos seus passatempos, em que avultava o sudoku. Há muito tinha deixado o interior para conquistar a grande capital, que muitas vezes se revelara uma amante perversa. “Porra!” acudia-lhe aos lábios quando se lembrava desses tempos de desenraizado.
Na sua meia-idade, cultivava uma postura pouco ativa e vagamente agreste, como a árvore que lhe dava o sobrenome, e estava sempre disposto a deixar para melhor oportunidade alguma tarefa agendada. Trabalhar e competir tinham tido o seu tempo. Agora, reformado e apaziguado dos antigos afãs, Anselmo só queria sossego, algum silêncio, e desfrutar a boa-vida. Junto a um sofá onde fazia umas sestas tinha um pequeno quadrinho com a frase: “Que bom é não fazer nada e depois descansar!”
Nessa manhã acordou com um auspicioso sinal: o consolo gratificante de uma ereção. Era uma prova de vida mais relevante do que a habitual confirmação de conseguir mexer o dedo grande do pé, em cada início de mais um dia. A sua mente, seduzida pelo contentamento do físico, deixou-se invadir por um júbilo sereno. O dia que aí vinha só podia correr bem.
Pouco depois de verificar que a manhã prenunciava brindá-lo com as primeiras chuvas de outono, pegou no caderninho com problemas de sudoku que o entretinha por horas e instalou-se ao comprido no sofá da salinha, cabeça no braço do lado da janela, para apanhar o máximo de luz no papel.
Um sorriso subtil aflorou-lhe os lábios ao ouvir a chuva a bater na vidraça. Esticou os pés para a frente e para trás, que estalaram agradavelmente. Ia ser uma manhã daquelas!
Enquanto alguns dos seus ex-colegas tentavam continuar a ganhar dinheiro, e outros arranjavam depressões por se sentirem inúteis, Anselmo declarava que “Inútil” era o seu nome do meio e convivia bem com ele. “Quanto menos chatices, melhor!”
No fim dessa manhã teve a satisfação orgástica de terminar um problema de 16x16 que já o vinha deliciando havia três dias, como metodicamente anotara na margem do caderninho. “Ah, dia abençoado!”
Depois de almoço, como a chuva parara, deu um passeio até ao parque próximo de sua casa. O tempo estava fresco e agora eram brancas, em borbotões de algodão, as nuvens que evoluíam no céu estranhamente luminoso. Durante um pouco, aceitou o jogo das formas para o qual estas nuvens, autónomas e bem delineadas, sempre convidavam. Uma pareceu-lhe uma ovelha, tão presente na sua infância no campo; outra, um torso feminino deitado.
Cães de apartamento frustrados, na ânsia de encontrarem almas-gémeas pelo cheiro, arrastavam cinquentonas solitárias pela trela, ao longo das estreitas e sinuosas alamedas em que já eram evidentes os despojos que o outono impõe às árvores. “Por baixo da roupa, todas vão nuas”, pensou.
Junto ao banco em que se sentara, chamou-lhe a atenção um formigueiro. Diligentes e sem hesitações, os insetos negros espalhavam no chão em volta do buraco de entrada todos os haveres que a chuva da manhã tinha ensopado — sementes, pedaços de talos, folhas e carcaças de bichinhos vários. Depois de secos, voltariam a recolhê-los.
Deu uma volta pausada pelo parque. Num recanto onde a autarquia instalara mesa e cadeiras metálicas, um magote de outros reformados rodeava quatro compenetrados jogadores de sueca, apreciando provavelmente os seus requintes de estratégia. “Muito reformado há em Portugal!” Anselmo não se aproximou; cultivava o individualismo dos autossuficientes conterrâneos. “Formigueiros, não!”
Saboreando o sol oblíquo que alegrara a tarde, avançou para uma zona mais recôndita que confinava com uma área de mata. Ao fundo de uma álea, avistou a mancha arruivada de uma zorra, confiante, mas alerta, em incursão em território adverso. “Que bonita!” Há quanto tempo não estava tão próximo de uma... Seguiu-a de longe, a observar o seu deambular furtivo e elegante. Aos poucos, embrenhou-se mais e mais na mata, o entusiasmo da ruptura a fazer-lhe brilhar o olhar.
Era quase noite quando Anselmo chegou a casa. A mulher já estava preocupada, já tinha pensado telefonar para os Bombeiros e para a Polícia a saber se tinha havido algum acidente com o marido. Toda a aflição desapareceu quando ele se desculpou com uma opção errada:
Porra! Quem se mete por atalhos mete-se em trabalhos!
Nessa noite dormiu de um sono só. No dia seguinte retomou o ramerrame quotidiano, com as divagações da consciência, os programas tontos da televisão, e, sobretudo, o seu sudoku.

Joaquim Bispo

*
Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 7 a 10 — a antologia “Literatura de Outono” da Editora Jogo de Palavras:

*
Imagem: Santiago Rusiñol, Carreiro num parque, 1920–1925.

* * *


10/10/2019

O meu 25 de abril



Antes. É-me praticamente impossível fornecer aos meus compatriotas mais novos uma ideia clara de como se vivia em Portugal durante o Estado Novo — o regime que vigorou entre 1926 e 1974, sensivelmente com os mesmos valores: Deus, Pátria, Família. Ainda pensei descrever uma lista de situações que contextualizassem a vida de então, mas desisti de o fazer, tão descomunal me parece a tarefa.
Então, a 25 de abril de 1974, na sequência de uma reivindicação corporativa, os oficiais menos graduados das Forças Armadas, capitães e majores, sobretudo, lideraram uma ação militar que derrubou o regime, ato que foi imediata, entusiástica e maciçamente apoiado pela população. Com tal unanimidade, durante os meses seguintes, nem o céu parecia o limite.

25 de abril, quinta-feira, 9 horas. O jovem atravessa o parque Eduardo VII em diagonal. Está dez minutos atrasado para o emprego, como habitualmente. À vista da rua onde trabalha, percebe que o trânsito para o bairro está cortado por militares. Inquirido, um deles diz-lhe que não pode passar, sem mais explicações. O jovem volta para casa, conjeturando que tem uma boa desculpa para dar ao patrão, se ele o questionar nesse sentido.
Pelas dez e meia ou onze, o jovem rejubila ao ouvir pela rádio que está em curso um movimento militar que parece querer derrubar o governo. O jovem lia frequentemente jornais que insinuavam, nas entrelinhas, mudanças políticas iminentes — um que vinha dos Açores [perdão, da Madeira] impresso em papel cor-de-rosa e o Diário de Lisboa —, mas o governo representava para ele, sobretudo, a asfixiante ordem eterna, parada em conceitos desatualizados. Toda a gente dizia mal, numa impotência cómoda, porque havia a certeza de que o regime nunca mudaria. A prová-lo, estava o tosco “golpe das Caldas”, um mês antes.

E da manhã, da tarde e da noite se faz o dia primeiro. Na tarde soalheira do dia 25 de Abril de 74, um casal estrangeiro, de língua inglesa, passeia pelo parque Eduardo VII, misturado com os outros passeantes portugueses que desfrutam o feriado inesperado. Dos lados da Baixa chegam, de quando em quando, sons de alvoroço popular. Não sei se o casal sabe o que se está a passar no país, mas o homem comenta, sorridente, para a mulher: “Deve ser por causa do Benfica!” Como está enganado!
No supermercado o jovem repara admirado que as pessoas estão a comprar quantidades anormais de víveres, sobretudo enlatados. Acha aquela atitude desproporcionada. Além de meia dúzia de polícias com cães, cosidos nos portais da António Augusto de Aguiar, com ar furtivo e preocupado, nada parece indicar qualquer ameaça de resposta da “situação”.
À noite, na televisão, o jornalista apresenta a Junta de Salvação Nacional — uma mesa atestada de generais soturnos e mal-encarados.
Mas então? Onde estão os capitães de que falam as notícias? Não é que o jovem tenha, desde a tropa, uma grande consideração por capitães do quadro, mas generais? Spínola? Escreveu um livro crítico, e então? É do regime… Para que o poder “não caia na rua”, já vai ao beija-mão?
E quem são os outros emproados?

Alívio! As dificuldades do regime em conseguir quadros militares suficientes para sustentar a guerra do Ultramar obriga a certos estratagemas. Os oficiais milicianos que não tenham ido ao Ultramar, durante o tempo normal de tropa, podem ser novamente chamados, após alguns anos de dispensa. É-lhes dado um curso de capitães em Mafra e seguem para um dos teatros de guerra no Ultramar: Guiné, Angola ou Moçambique. Alguns preferem oferecer-se para ir a África durante o tempo normal e despacharem a questão, do que ficarem em risco de fazer tropa duas vezes.
O jovem tinha feito três anos e três meses de tropa, mas sempre na Metrópole. Por duas vezes esteve prestes a ser mobilizado para o Ultramar. Sempre as circunstâncias o salvaram. Numa delas, outro se ofereceu para ir em seu lugar. Pelo 25 de abril, faltarão uns dois anos para ser eventualmente chamado de novo. De tempos a tempos, já tem sonhos onde se vê outra vez na tropa, o que não é muito agradável. Quando o discurso dos revoltosos de abril dá indicações de que a política ultramarina se irá alterar, o jovem sente um alívio enorme, enorme. [O leitor não vê, mas, apesar de o texto ser meu, ao relê-lo emociono-me.]

Comunistas. Antes do 25 de abril havia certos assuntos que se evitavam naturalmente. Um deles era comunismo. Os funcionários públicos tinham que jurar rejeitar a ideologia comunista. Sabia-se que o poder não gostava do conceito nem dos seus praticantes. A autocensura levou o jovem, certa vez, numa entrevista, a ficar atrapalhado por ter dito que gostava de ser útil à comunidade. Seria que isso poderia ser lido como proximidade de outras palavras com a mesma raiz?
Três ou quatro dias depois do 25 de abril, as capas dos jornais anunciam a chegada de Álvaro Cunhal, líder máximo do Partido Comunista Português, nome que o jovem nunca tinha ouvido. O condicionamento fá-lo ter um momento de apreensão? O quê, os comunistas vêm aí, às claras, confiantes e aceites? Nesse momento, o jovem começa a tomar consciência de que estão a chegar tempos muito diferentes, não pelos comunistas em si, mas pela previsível abertura a múltiplas e variadas realidades até aí interditas.

O primeiro 1º de Maio. O 1º de maio de 1974 é inesquecível. Ou antes, as manifestações. A manifestação de Lisboa começa na Baixa e dirige-se para o estádio do Inatel [então, ainda FNAT], já próximo do aeroporto. São muitos os milhares de pessoas a desfilar. Entre os primeiros a chegar e os últimos, talvez medeiem duas horas. Toda a tarde se desfila pela Almirante Reis acima. É um rio de gente a caminhar com um sentimento bom de reencontro, de partilha, de comunhão, de vitória sem raiva. Há um estado de graça nos sorrisos, no convite aos que estão pelos passeios, nas saudações a quem não se conhece. Não há ainda divisões. Estamos felizes. Estamos todos finalmente livres. Simplesmente. [Emoção.]

«Uma gaivota voava…» A sensação de liberdade, a convicção de que o destino de cada um passa agora pelas suas mãos, leva a que muitas pessoas quebrem as cadeias sociais ou rotineiras que as prendem. Há que levar a verdade não só ao político como ao social, à vida de cada um. Os divórcios saltam em flecha. A contestação nas empresas leva mais facilmente ao rompimento dos laços contratuais. A fuga de alguns empresários mais comprometidos, associada à convicção de que os patrões não têm função produtiva, logo são parasitas, leva a tentativas de controlo das empresas pelos trabalhadores. Pelo menos, tentar uma cogestão que devolva alguma verdade às relações de produção. O Estado é chamado a intervir em inúmeras situações, quer para legitimar a continuação da produção de empresas cujo proprietário fugira, quer para assegurar a gestão de empresas onde o conflito patrões/empregados ameaça paralisá-las. Desde grandes empresas, até padarias, por exemplo.

«… Como ela somos livres de voar.» A contestação, a reclamação de direitos nunca reconhecidos, faz surgir lutas nunca vistas. Uma que surge logo nas primeiras três semanas e que causa celeuma é uma luta das prostitutas, já não sei por que direito. A televisão — dois canais públicos a preto e branco — abre-se ao discurso popular, à queixa debitada pelo homem da rua. As pessoas têm finalmente acesso a divulgar os seus problemas. Os telejornais estão repletos de queixas, de afirmação de direitos, de cobertura das lutas laborais. Um dos programas mais populares trata de desmascarar práticas desonestas de comércio, com produtos fora de prazo, defeituosos, queixas de consumo, em suma.

Tomar café na associação. A luta laboral vai levando a que o trabalho seja melhor pago, quanto mais penalizante seja para o trabalhador. O trabalho noturno pago por valores mais altos, leva a que a vida noturna da capital se altere, pelo menos ao nível das cervejarias e outro pequeno comércio de restauração. Algum deste comércio que fechava por vezes às 2 da manhã, passa a fechar muito mais cedo, devido aos novos valores do trabalho noturno, acho eu. A noite lisboeta fica mais triste, com menos oferta.
Os novos conceitos de “endinheirado igual a fascista”, levam uns a uma fachada contida e à retirada para núcleos mais restritos; a vontade de participar na construção de uma nova sociedade leva outros para os inúmeros núcleos associativos — cooperativas, sindicatos ou partidos. Aí são agora os novos locais de eleição para os encontros e os namoros.

«O que se passa aqui, que tudo está tão diferente…?» De repente as coisas estão diferentes. Interessa mais o “ser” que o “ter”, há que ser solidário e não competitivo, há que participar ativamente nas tarefas que são de todos, a alfabetizar, a esclarecer, a ajudar em qualquer aspeto da vida coletiva da sociedade, nem que seja só colar cartazes, gerir a pequena associação cultural ou participar nas manifestações.
De repente, o que se tinha aprendido está desatualizado. As relações políticas, sociais, familiares e até pessoais pautam-se por outras normas. Há a sensação de que é preciso desaprender tudo e aprender tudo de novo. Lê-se Engels, Lenine, Marx, Mao, Wilhelm Reich. Livros com títulos como “O que é a consciência de classe?”, “A conquista do pão” ou “A origem da família da propriedade e do Estado”, andam por algumas mesas-de-cabeceira. Aprender, aprender, recuperar o tempo perdido, é preciso.

«A cantiga é uma arma.» Entretanto, os militares, cuja consciência política, na maioria, parece advir das mensagens emocionais contidas nas canções de intervenção, começam a absorver as ideologias dos partidos e a dividir-se. O ano e meio que se segue é um carrossel de factos políticos, com os partidos a digladiarem-se, a tentarem controlar as diversas tendências que os militares vão manifestando, em osmose de ideias políticas.
O jovem passa a noite a ler e a ouvir rádio — o horário do novo trabalho permite-o —, na esperança de notícias condizentes com as suas aspirações, mas sobretudo a absorver as mensagens e as emoções contidas nas inúmeras canções revolucionárias que vão surgindo em catadupa. Quando a luz do dia enche a rua, descansa finalmente.
A direita não aguenta tanta rutura dos seus valores e faz duas tentativas militares de controlo do processo, que são travadas, o que dá um grande alento à esquerda que aprofunda o controlo da economia e avança no sentido da democracia direta, mas cria muitos anti-corpos.
O bloco central não abdica de uma democracia por representação e pressiona, dinamitando o emissor que passava continuamente música revolucionária e retirando apoios institucionais à esquerda militar, que se torna mais aguerrida por ver fugir-lhe espaço de manobra. A 25 de novembro de 1975, reage, mas a resposta está preparada. É derrotada e o país inicia um processo de estabilização política em moldes tradicionais.

«E depois do adeus…» O jovem sente essa derrota como sua, tanto mais pessoal quanto estar a ser por si ajustada para a televisão a imagem do militar esquerdista que é retirada do ar, no momento simbólico da perda de controlo pelos revoltosos.
Não fora alfabetizar as populações do interior, não ocupara casas devolutas para famílias carenciadas, não participara em atividades das cooperativas agrícolas ou outras. Quase não “mexera uma palha”. Tivera uma mera adesão intelectual, pequeno-burguesa e romântica. Ainda assim, está muito abatido. O jovem sente que novembro significa o regresso da cinza de antigamente. Ou pensa que sim. Só lhe apetece emigrar. Mas, falta-lhe coragem.

Joaquim Bispo

*
Imagem: Vieira da Silva, Liberdade, (Cartaz comemorativo do 10.º aniversário do 25 de Abril de 1974), 1984.
Coleção Família SMBA
* * *