10/02/2020

Os pintassilgos



O verão estava no auge. Das aulas já Albertino se tinha esquecido alegremente, nos seus treze anos ávidos de amplidão campestre, o pé descalço, liberto, as roupas soltas, o chapéu desabado, mas confortável. O seu céu era a ribeira: um charco aqui, outro acolá; o resto, areal sombreado pelos amieiros, o frescor e o jogo das areias, duma firmeza indolente, a acariciar-lhe as solas dos pés a cada passada, a ceder com um ruído arrastado de languidez — música para os seus ouvidos. Por cima, o emaranhado dos salgueiros ou o horizonte mais alto das copas dos amieiros, ondulando suavemente; o sol a vibrar nos seus olhos ao ritmo da folhagem, a atenção concentrada, a fisga preparada, a “coronha” com mais de 30 marcas. Qualquer movimento irregular da ramagem podia indicar um pássaro. Então, era a procura da posição favorável, de maneira uniforme e muito lenta, para não se denunciar. Se a mancha do pássaro se mostrasse desimpedida, era o retesar dos elásticos, a pedra centrada na rodela de cabedal, a pontaria instintiva. E o tiro partia. Caprichosamente, muitas vezes a pedra descrevia um arco ou batia em qualquer pequeno obstáculo e o disparo gorava-se. E a caçada prosseguia. As horas passavam, o prazer inebriava, só o estômago obrigava a regressar ao casarão familiar de telha vã.
A observação dos pássaros e da sua beleza, a fruição dos seus cantos, levava-o a querer engaiolar alguns, para tê-los à disposição do seu prazer auditivo e visual, mas também para ostentação do troféu. Com alguma habilidade, construiu uma gaiola com uma tábua, vários galhos e arames velhos, na qual não faltavam comedouro, bebedouro e uma portinhola com mola. Sabia que não podia engaiolar pássaros que se alimentassem de insetos e larvas. Só os que comessem sementes. E destes, qual seria o mais bonito: o canário ou o pintassilgo?
Um dia descobriu um ninho de pintassilgos nos ramos de uma oliveira pequena. Três ovos. Foi-o guardando, mas evitando aproximar-se demasiado, sabendo que os pássaros chegam a abandonar os ovos, e até os filhotes pequenos, se notam que o ninho anda a ser controlado. Curiosamente, se os encontrarem numa gaiola — ouvia dizer — alimentam-nos até perderem a esperança de os ver soltos e então dão-lhes sementes venenosas para os matar. Por isso, planeou encerrá-los na gaiola poucos dias antes de poderem voar, e deixá-la pendurada na oliveira onde estava o ninho. Isso permitiria não os deixar escapar e esperava que os pais os alimentassem por mais uns dias, os suficientes para que eles conseguissem comer, por si, as sementes que lhes iria pôr na gaiola. E, então, trazê-la para casa.
Os dias foram passando arrastadamente, os passarinhos nasceram e foram-se emplumando. Quando achou que poderiam voar em breve, meteu-os na gaiola, com água no bebedouro e alpista no comedouro. Como a oliveira era demasiado aberta, temeu uma excessiva exposição ao inclemente sol estival e resolveu pendurar a gaiola no ramo alto de uma árvore frondosa que distava dali uns duzentos metros. A distância não seria problema, dado que os pássaros detetam com facilidade os pios uns dos outros. Lá os deixou e voltou feliz para o casarão. Já tinha os seus pintassilgos!
No dia seguinte, chegou a “malhadeira”, aquela monstruosa máquina debulhadora, do tamanho duma camioneta de carreira, com os seus ruídos estranhos e movimentos sinistros, mas com capacidades maravilhosas, com que nessa década de sessenta se debulhava o produto das searas. Recebia molhos de centeio desatados, por uma abertura superior, que, depois de suspeitados safanões, pancadas e outros tratos violentos no seu interior, vertia, por um bocal, o grão, que era aparado em sacas de serapilheira e lançava, pelo outro lado, a palha em borbotões. O cereal era acarretado para a tulha; a palha era acondicionada ao lado da eira em montões redondos de perfil ogival, para resistirem às chuvas. Ameaçadora era a longa correia de transmissão de movimento, que ligava um cilindro metálico giratório, num trator anexo, a um cilindro semelhante na debulhadora, o qual fazia funcionar todas aquelas peças em madeira que iam e vinham num ritmo contínuo e ensurdecedor, cumprindo tarefas difíceis de adivinhar no interior do engenho.
A meda do centeio era grande, a lide contagiante; havia a novidade de toda aquela gente que lidava com a máquina com enorme destreza e rapidez, apesar dos perigos que ela representava. Contavam histórias de outras eiras, de alguém que, ao meter o centeio, tinha deixado ir a mão muito à frente e tinha ficado sem alguns dedos, ou daquela mulher que se desequilibrara e caíra lá para dentro...
Ao fim do segundo dia, cumprida a debulha, foram-se todos embora: os ceifeiros, para as suas terras; a debulhadora, a caminho de outra eira. A paisagem nesta mostrava-se substancialmente alterada. A anterior meda em forma de casa, feita de molhos de centeio carregado de grão, transformara-se nuns cinco ou seis grandes montes de palha leve — cama de gado para o ano inteiro. Ficava no olhar um brilho baço de fim de festa. Voltava a calma, voltava a rotina de todos os outros dias.
De repente, lembrou-se. A ideia retiniu-lhe na cabeça em toque de alarme. Tinha-se esquecido completamente dos pintassilgos. Teriam os pais descoberto os filhotes? Teriam alimentado as crias encarceradas? Desatou a correr para a árvore afastada, em desatino. Trepou rapidamente até ao galho onde os tinha dependurado, mas o coração apertava-se-lhe — não ouvia qualquer pio. Por fim, assomou. O fim de tarde ia ainda quente, mas pelo corpo de Albertino perpassou uma onda do frio glacial das noites de inverno. O olhar tentava discernir o que o remorso persistia em enevoar. Daqueles três passarinhos, já todos cobertos de pequenas penas firmes e bem compostas, já a imitar a coloração dos pais, nada mais restava do que três novelos de penas emaranhadas, desgrenhadas, tombados no chão da gaiola.
Retirou-os. Estavam frios. Tinham morrido há muito. De frio? De fome? De sementes venenosas dadas pelos pais? Tanto fazia. Albertino só sentia que, pela sua cobiça pueril, pela sua negligência, tinham morrido três lindas avezinhas. Morte estúpida, perda pura.
Voltou para casa acabrunhado. Não chorou. Os adultos reprovavam o choro nos rapazes.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 18 a 20 — a edição n.º 63 da revista Brasil Nikkei Bungaku, de novembro de 2019, da Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil, São Paulo.

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Imagem: Federico Barocci, A Madona do Gato, 1575.
National Gallery. Londres.
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10/01/2020

Passos





Naquela noite, quando Zidanta ouviu passos, soube que era o Grande Ceifeiro que já o procurava. Sempre acreditara que viria assim, furtivo e impiedoso; só não sabia quando.
Zidanta, o Grande Rei dos Hititas, o favorito do deus Tarhun, estava velho. Já não podia encabeçar o temível exército de carros e ir ao Sul submeter um príncipe sírio ou fazer recuar os Hurritas no Médio Eufrates. Já raramente visitava alguma das suas rainhas. Mantinha-se no seu palácio de Hattusa, recebia comissões de comerciantes assírios, que queriam negociar no seu reino, ou embaixadas de alguma pequena corte, a reiterar submissão e a pedir proteção contra inimigos regionais. Nesses dias, sentava-se junto a uma janela, assistia à entrada das comitivas pela colossal Porta dos Leões e, depois, assumindo uma postura grave e reservada, esperava-as na sala do trono, ladeado pelo Grande Escriba e seus funcionários.
Os passos, já! O velho guerreiro estava reclinado na sua câmara de dormir, amodorrado, mas de ouvido alerta, quando os ouviu. Eram suaves e furtivos. Mesmo pouco audíveis, Zidanta percebeu-os, por entre os outros ruídos de passos da Guarda, que, pausadamente, fazia a ronda noturna à volta dos aposentos reais. Só um inimigo se deslocaria assim.
Num relance, recordou a curta história do seu reino, em que os soberanos acabavam, muitas vezes, por sucumbir a revoltas, traições e golpes palacianos, que não poupavam sequer o resto da família. Fora assim com o rei Mursili, seu tio, massacrado por si e pelo próprio cunhado Hantili, seu sogro, o qual também veio a ter a mesma sorte: após vários anos de reinado, morreu às suas mãos, juntamente com o filho, netos e todos os que podiam ter pretensões ao trono.
Teria chegado a sua vez? Apurou o ouvido; os passos eram arrastos ténues, de origem incerta, escassos e dissimulados. Pareciam os de um só homem. Estaria dentro da câmara? Manteve-se imóvel, mas de olhos semicerrados, tentando enxergar alguma sombra que se movesse na obscuridade do aposento. Pareceu-lhe notar uma alteração de luminosidade numa coluna junto ao altar doméstico ao Deus da Tempestade. Dirigiu um apelo mudo à divindade para que o livrasse desta provação, como o tinha salvado de tantos outros perigos que vencera ao longo dos anos.
Não queria mover-se, para manter o agressor na ilusão de o poder apanhar desprevenido. Gritar pela Guarda podia não lhe trazer uma ajuda tão rápida como precisava para salvar a vida; decidiu que se defenderia sozinho. Zidanta tinha sempre um machado de bronze à mão. Quando o atacante se aproximasse, teria uma surpresa. Começou a deslizar o braço direito sob os panos, lenta e impercetivelmente, na direção do tamborete junto ao leito, enquanto tentava adivinhar quem seria o agressor.
Conhecia bem o seu povo e os membros da sua corte. Qual poderia querê-lo morto? Talvez o seu cunhado, Huzziya, sempre cheio de mesuras, mas que não conseguia esconder uma certa perfídia no olhar. Criticava veladamente o atual estado do país, onde os Gasgas das montanhas junto ao Mar Negro se estendiam para Sul e ocupavam florestas e pastagens, e os Hurritas, a Sudeste, já se permitiam fazer incursões no país e tomar cidades.
Talvez Zuru, o chefe da Guarda, esse guerreiro do país de Mitani, que procurara refúgio entre os Hititas. Aparentemente leal, tornara-se um militar imune às querelas internas do exército hitita, por não ter ligações de sangue com os outros oficiais. Nunca hesitava perante uma ordem, mas o estado de inquietude do exército, devido à ausência de campanhas, talvez o tornasse vulnerável a intrigas. Ultimamente, vislumbrara-lhe uma ou outra crispação no rosto barbudo.
Seria Neferhotep, a egípcia rainha segunda, que nunca aceitara a posição secundária do seu filho na linha de sucessão? Se assim fosse, iria eliminar também os dois filhos da rainha primeira.
Os passos macios aproximavam-se. Sentiu-os mais perto. Agora, estava certo de que alguém se introduzira na câmara real. Era tempo de agir. A sua mão alcançou o tamborete, tateou, mas nada encontrou. A lâmina de duplo gume não estava onde a tinha posto. Uma onda gelada percorreu-lhe o corpo. O seu coração acelerou e batia ruidosamente, abafando o som dos passos. Teve de fazer um esforço de disciplina para não ofegar, nem se agitar, o que poderia desencadear o ataque do intruso. Percebeu uma sombra acocorada no chão, a uns três passos de distância. Soube então de onde vinha a ameaça. Tinha de aproveitar essa pequena vantagem.
Num só movimento de animal acossado, rodou o corpo para a esquerda, meteu a mão sob a almofada, empunhou a adaga, que sempre o acompanhava e, de um salto, abateu-se sobre o vulto, cravando-lhe a lâmina com quanta força tinha. Bradou então pela Guarda. Dez homens entraram de rompante na câmara real. À luz dos archotes que alguns empunhavam, os guardas depararam com um rei lívido, de olhar incrédulo fixado na tartaruga marinha oferecida nessa manhã pelo embaixador de Luqqa e que exibia uma adaga espetada no alto da carapaça.
Na noite seguinte, cansado e humilhado, Zidanta deitou-se cedo. Antes de adormecer, ainda vislumbrou um brilho fugaz na lâmina do machado, empunhado pelo seu filho Ammuna, quando se abateu sobre si a zunir e o decapitou. No meio da névoa de dor e assombro que o envolveu, num último lampejo de consciência, admirou-se de não ter ouvido passo algum.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 131 a 133 — a 17ª edição (setembro/outubro de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Leoa agonizante, (baixo relevo), Palácio de Assurbanipal, Assíria, século VII a. C..
Museu Britânico, Londres.
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10/12/2019

O tempo dos rebuçados




O primeiro encontro foi como uma caixa de rebuçados. Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. Mas também de uma das primeiras responsabilidades: a escola.
Nos dias de primavera, Orlando, de botas com sola de borracha feitas no sapateiro, palmilhava bem cedo os três quilómetros do caminho entre muros que separava a queijeira, onde morava com a avó, da escola da aldeia, cruzando-se com carros de bois, grupos de mulheres a caminho das hortas, um rebanho a atravessar de um terreno para outro. Se estava frio, apressava o passo a contornar uma ou outra poça de água, mala com cadernos a tiracolo, uma mão a aquecer-se no bolso, a outra a pegar no cabazinho da merenda. Daí a pouco, as letras, as contas, as brincadeiras de recreio e o almoço debaixo de uma olaia, com os outros dois miúdos que também vinham dos campos.
No regresso, o conforto do calor e da falta de pressa convidavam-no a alongar-se em observações da natureza: o lagarto verde esparramado ao sol que, não conseguindo intimidá-lo abrindo a boca vermelha, se esgueirava para um buraco das paredes; o rendilhado de alguns penedos; as poupas, os cucos, os pintassilgos. E a estranheza do mundo do tic-tic-tic ritmado dos canteiros, alguns bem jovens, em alguma das pedreiras adjacentes ao caminho. Um mundo que não era de rebuçados.
Um dia encontrou vinte e cinco tostões no recinto da romaria que o caminho atravessava. Rapidamente se esfumaram em rebuçados embrulhados em estampas de jogadores de futebol.
De inverno, a ida para a escola era mais monótona e mais simples. Era só atravessar o casario, desde a casa da avó, na aldeia. No regresso, a brincadeira com a restante criançada nos quintais e nos casarões familiares. Ao domingo, catequese à tarde e talvez apanhar moedas pretas e rebuçados lançados de alguma janela ou varanda no fim de um batizado. Os dias corriam sem preocupações, com pouca relação uns com os outros. E, de repente…
O primeiro encontro com ela foi como receber uma caixa de rebuçados. A festa era de carnes, da matança do porco e respetiva comezaina. A família alargada habitual estava reunida em casa de um tio por este motivo. Segurar, matar, limpar e desmanchar um porco exigia o concurso de vários homens. E o trabalho de lavar as tripas, preparar os recheios e encher com eles as farinheiras, as morcelas e as chouriças exigia o concurso de várias mulheres. Para também prepararem o banquete para todos aqueles adultos e respetiva miudagem.
Daquela vez, o tio convidou também uma família colateral, que não costumava estar presente neste acontecimento anual em casa de cada tio. E ela apareceu, linda e discreta. Devia ter mais um ano do que Orlando e era muito diferente das outras meninas que orbitavam o mundo dele. As outras eram como que irmãs, na proximidade de parentesco e nas brincadeiras estouvadas. Delfina — esse o seu nome —, não. Ela era outro mundo. Um mundo de arranjo e delicadeza. Os cabelos — oh, os cabelos —, caíam penteados, lisos, a terminar numa volta, sobre os ombros. Os olhos seriam castanhos como os cabelos? Eram suaves e sorriam. A compostura do vestido de golinha, apertado por um cinto do mesmo tecido, também tocou Orlando. E a graça e simpatia que irradiava deslumbraram-no durante toda a tarde.
Ninguém faz planos para se apaixonar, muito menos um menino de sete ou oito anos. Sabe que os homens e as mulheres se casam, mas não sabe muito bem por quê. E calcula que um dia também casará. Talvez por gostar de alguém.
A única experiência que Orlando tivera nesse campo não correra bem. A inconfidência de uma tia, à janela, quando passava Acilda, uma morena de trança, denunciara o seu enlevo encoberto: «Olha, vai ali a tua esposada!» A consequência fora a humilhação de um «Querias-me?! Pff…» que a morena lhe lançou quando o encontrou a caminho da escola e o deixou infeliz, a suspeitar que casar, ainda que gostando, era mais difícil do que parecia.
Orlando não falou a ninguém, sobretudo à desbocada tia, da perturbação que a recente conhecida lhe provocara. Não sabia dizer se era amor — aquilo de que os adultos falavam — o que sentia. Não sabia dar-lhe um nome. Sentia, sim, uma alegria íntima e serena, que não se manifestava por cabriolas, mas também uma inquietação, um temor de não conseguir aprofundar aquela afeição. Sentia ternura e um querer bem que não sentira, talvez, por ninguém.
Nas suas orações antes de adormecer, passou a lembrar e interceder por aquela criatura doce e bela por quem estremecia. O máximo de harmonia com ela vislumbrava-o numa atualização da estampa pendurada por cima da sua cama: ambos de mão dada na travessia de uma ponte frágil sobre um rio caudaloso, mas protegidos por um anjo-da-guarda.
Por aqueles dias, Orlando recebeu uns três ou quatro rebuçados. Logo decidiu que um seria para ela, para lhe oferecer, como prova de bem-querer. Por uma lamentável desatenção das forças celestes, porém, Delfina adoeceu. Orlando, de rebuçado no bolso, não encontrou a estremecida do seu coração nos dois dias seguintes.
No terceiro dia, no regresso à escola depois de almoço, tão alheado ia que automaticamente fez o que não queria: desembrulhou o rebuçado e meteu-o na boca. Chegou a sentir-lhe o doce. Espantado, desagradado consigo próprio, retirou-o da boca, como blasfémia. O rebuçado era para ela, estava prometido em intenção. Tinha de lho entregar, ainda que lhe apetecesse continuar a saboreá-lo.
Resolveu entrar na venda do pai de Delfina e confiar-lhe o rebuçado para ele lho entregar. Temia, no entanto, que algum cliente percebesse o enamoramento no seu gesto e fizesse algum comentário que o envergonhasse. Ganhou coragem e entrou, mas a venda estava vazia. Mesmo o pai de Delfina devia estar lá para dentro. Pensou chamá-lo, mas isso já ia além da sua coragem.
Deixou o rebuçado, embrulhado e um pouco agarrado ao papel, em cima do balcão de mármore e saiu em direção à escola. Não era isto que tinha idealizado, mas cumprira a promessa, tanto quanto conseguira.
No regresso, entrou na venda, mais uma vez deserta. O balcão estava limpo. Nem sinal do pequeno volume roliço do rebuçado. Teria Delfina chegado a recebê-lo? Pouco provável, concedeu. Com certeza que o pai o tinha deitado fora, sem suspeitar da sua importância.
Quando voltou a vê-la, já tinha passado uma semana ou duas e o enamoramento, por falta de alimento, murchara. Casar devia ser muito mais difícil do que parecia.
Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. O que parecia importante num dia esquecia-se alegremente no dia seguinte. O futuro é que traria a compreensão da importância de cada coisa. Talvez.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 207 a 210 — a antologia “Esse jeito doce com que tu me acaricias” da Editora Jogo de Palavras, em 2019:


e obteve o 5º lugar, na categoria Conto, no I Prémio Literário Pescaria (Brasil), de 2015.
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Imagem: Bartolomé Esteban Murillo, Meninos jogando aos dados, c. 1675.
Antiga Pinacoteca, Munique.
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10/11/2019

A zorra


A vida de Anselmo Carvalho, sempre acompanhada por uma corrente de consciência palradora, decorria num ramerrame pontuado pela regularidade pendular das refeições domésticas, a vacuidade dos programas televisivos e a futilidade dos seus passatempos, em que avultava o sudoku. Há muito tinha deixado o interior para conquistar a grande capital, que muitas vezes se revelara uma amante perversa. “Porra!” acudia-lhe aos lábios quando se lembrava desses tempos de desenraizado.
Na sua meia-idade, cultivava uma postura pouco ativa e vagamente agreste, como a árvore que lhe dava o sobrenome, e estava sempre disposto a deixar para melhor oportunidade alguma tarefa agendada. Trabalhar e competir tinham tido o seu tempo. Agora, reformado e apaziguado dos antigos afãs, Anselmo só queria sossego, algum silêncio, e desfrutar a boa-vida. Junto a um sofá onde fazia umas sestas tinha um pequeno quadrinho com a frase: “Que bom é não fazer nada e depois descansar!”
Nessa manhã acordou com um auspicioso sinal: o consolo gratificante de uma ereção. Era uma prova de vida mais relevante do que a habitual confirmação de conseguir mexer o dedo grande do pé, em cada início de mais um dia. A sua mente, seduzida pelo contentamento do físico, deixou-se invadir por um júbilo sereno. O dia que aí vinha só podia correr bem.
Pouco depois de verificar que a manhã prenunciava brindá-lo com as primeiras chuvas de outono, pegou no caderninho com problemas de sudoku que o entretinha por horas e instalou-se ao comprido no sofá da salinha, cabeça no braço do lado da janela, para apanhar o máximo de luz no papel.
Um sorriso subtil aflorou-lhe os lábios ao ouvir a chuva a bater na vidraça. Esticou os pés para a frente e para trás, que estalaram agradavelmente. Ia ser uma manhã daquelas!
Enquanto alguns dos seus ex-colegas tentavam continuar a ganhar dinheiro, e outros arranjavam depressões por se sentirem inúteis, Anselmo declarava que “Inútil” era o seu nome do meio e convivia bem com ele. “Quanto menos chatices, melhor!”
No fim dessa manhã teve a satisfação orgástica de terminar um problema de 16x16 que já o vinha deliciando havia três dias, como metodicamente anotara na margem do caderninho. “Ah, dia abençoado!”
Depois de almoço, como a chuva parara, deu um passeio até ao parque próximo de sua casa. O tempo estava fresco e agora eram brancas, em borbotões de algodão, as nuvens que evoluíam no céu estranhamente luminoso. Durante um pouco, aceitou o jogo das formas para o qual estas nuvens, autónomas e bem delineadas, sempre convidavam. Uma pareceu-lhe uma ovelha, tão presente na sua infância no campo; outra, um torso feminino deitado.
Cães de apartamento frustrados, na ânsia de encontrarem almas-gémeas pelo cheiro, arrastavam cinquentonas solitárias pela trela, ao longo das estreitas e sinuosas alamedas em que já eram evidentes os despojos que o outono impõe às árvores. “Por baixo da roupa, todas vão nuas”, pensou.
Junto ao banco em que se sentara, chamou-lhe a atenção um formigueiro. Diligentes e sem hesitações, os insetos negros espalhavam no chão em volta do buraco de entrada todos os haveres que a chuva da manhã tinha ensopado — sementes, pedaços de talos, folhas e carcaças de bichinhos vários. Depois de secos, voltariam a recolhê-los.
Deu uma volta pausada pelo parque. Num recanto onde a autarquia instalara mesa e cadeiras metálicas, um magote de outros reformados rodeava quatro compenetrados jogadores de sueca, apreciando provavelmente os seus requintes de estratégia. “Muito reformado há em Portugal!” Anselmo não se aproximou; cultivava o individualismo dos autossuficientes conterrâneos. “Formigueiros, não!”
Saboreando o sol oblíquo que alegrara a tarde, avançou para uma zona mais recôndita que confinava com uma área de mata. Ao fundo de uma álea, avistou a mancha arruivada de uma zorra, confiante, mas alerta, em incursão em território adverso. “Que bonita!” Há quanto tempo não estava tão próximo de uma... Seguiu-a de longe, a observar o seu deambular furtivo e elegante. Aos poucos, embrenhou-se mais e mais na mata, o entusiasmo da ruptura a fazer-lhe brilhar o olhar.
Era quase noite quando Anselmo chegou a casa. A mulher já estava preocupada, já tinha pensado telefonar para os Bombeiros e para a Polícia a saber se tinha havido algum acidente com o marido. Toda a aflição desapareceu quando ele se desculpou com uma opção errada:
Porra! Quem se mete por atalhos mete-se em trabalhos!
Nessa noite dormiu de um sono só. No dia seguinte retomou o ramerrame quotidiano, com as divagações da consciência, os programas tontos da televisão, e, sobretudo, o seu sudoku.

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 7 a 10 — a antologia “Literatura de Outono” da Editora Jogo de Palavras:

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Imagem: Santiago Rusiñol, Carreiro num parque, 1920–1925.

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10/10/2019

O meu 25 de abril



Antes. É-me praticamente impossível fornecer aos meus compatriotas mais novos uma ideia clara de como se vivia em Portugal durante o Estado Novo — o regime que vigorou entre 1926 e 1974, sensivelmente com os mesmos valores: Deus, Pátria, Família. Ainda pensei descrever uma lista de situações que contextualizassem a vida de então, mas desisti de o fazer, tão descomunal me parece a tarefa.
Então, a 25 de abril de 1974, na sequência de uma reivindicação corporativa, os oficiais menos graduados das Forças Armadas, capitães e majores, sobretudo, lideraram uma ação militar que derrubou o regime, ato que foi imediata, entusiástica e maciçamente apoiado pela população. Com tal unanimidade, durante os meses seguintes, nem o céu parecia o limite.

25 de abril, quinta-feira, 9 horas. O jovem atravessa o parque Eduardo VII em diagonal. Está dez minutos atrasado para o emprego, como habitualmente. À vista da rua onde trabalha, percebe que o trânsito para o bairro está cortado por militares. Inquirido, um deles diz-lhe que não pode passar, sem mais explicações. O jovem volta para casa, conjeturando que tem uma boa desculpa para dar ao patrão, se ele o questionar nesse sentido.
Pelas dez e meia ou onze, o jovem rejubila ao ouvir pela rádio que está em curso um movimento militar que parece querer derrubar o governo. O jovem lia frequentemente jornais que insinuavam, nas entrelinhas, mudanças políticas iminentes — um que vinha dos Açores [perdão, da Madeira] impresso em papel cor-de-rosa e o Diário de Lisboa —, mas o governo representava para ele, sobretudo, a asfixiante ordem eterna, parada em conceitos desatualizados. Toda a gente dizia mal, numa impotência cómoda, porque havia a certeza de que o regime nunca mudaria. A prová-lo, estava o tosco “golpe das Caldas”, um mês antes.

E da manhã, da tarde e da noite se faz o dia primeiro. Na tarde soalheira do dia 25 de Abril de 74, um casal estrangeiro, de língua inglesa, passeia pelo parque Eduardo VII, misturado com os outros passeantes portugueses que desfrutam o feriado inesperado. Dos lados da Baixa chegam, de quando em quando, sons de alvoroço popular. Não sei se o casal sabe o que se está a passar no país, mas o homem comenta, sorridente, para a mulher: “Deve ser por causa do Benfica!” Como está enganado!
No supermercado o jovem repara admirado que as pessoas estão a comprar quantidades anormais de víveres, sobretudo enlatados. Acha aquela atitude desproporcionada. Além de meia dúzia de polícias com cães, cosidos nos portais da António Augusto de Aguiar, com ar furtivo e preocupado, nada parece indicar qualquer ameaça de resposta da “situação”.
À noite, na televisão, o jornalista apresenta a Junta de Salvação Nacional — uma mesa atestada de generais soturnos e mal-encarados.
Mas então? Onde estão os capitães de que falam as notícias? Não é que o jovem tenha, desde a tropa, uma grande consideração por capitães do quadro, mas generais? Spínola? Escreveu um livro crítico, e então? É do regime… Para que o poder “não caia na rua”, já vai ao beija-mão?
E quem são os outros emproados?

Alívio! As dificuldades do regime em conseguir quadros militares suficientes para sustentar a guerra do Ultramar obriga a certos estratagemas. Os oficiais milicianos que não tenham ido ao Ultramar, durante o tempo normal de tropa, podem ser novamente chamados, após alguns anos de dispensa. É-lhes dado um curso de capitães em Mafra e seguem para um dos teatros de guerra no Ultramar: Guiné, Angola ou Moçambique. Alguns preferem oferecer-se para ir a África durante o tempo normal e despacharem a questão, do que ficarem em risco de fazer tropa duas vezes.
O jovem tinha feito três anos e três meses de tropa, mas sempre na Metrópole. Por duas vezes esteve prestes a ser mobilizado para o Ultramar. Sempre as circunstâncias o salvaram. Numa delas, outro se ofereceu para ir em seu lugar. Pelo 25 de abril, faltarão uns dois anos para ser eventualmente chamado de novo. De tempos a tempos, já tem sonhos onde se vê outra vez na tropa, o que não é muito agradável. Quando o discurso dos revoltosos de abril dá indicações de que a política ultramarina se irá alterar, o jovem sente um alívio enorme, enorme. [O leitor não vê, mas, apesar de o texto ser meu, ao relê-lo emociono-me.]

Comunistas. Antes do 25 de abril havia certos assuntos que se evitavam naturalmente. Um deles era comunismo. Os funcionários públicos tinham que jurar rejeitar a ideologia comunista. Sabia-se que o poder não gostava do conceito nem dos seus praticantes. A autocensura levou o jovem, certa vez, numa entrevista, a ficar atrapalhado por ter dito que gostava de ser útil à comunidade. Seria que isso poderia ser lido como proximidade de outras palavras com a mesma raiz?
Três ou quatro dias depois do 25 de abril, as capas dos jornais anunciam a chegada de Álvaro Cunhal, líder máximo do Partido Comunista Português, nome que o jovem nunca tinha ouvido. O condicionamento fá-lo ter um momento de apreensão? O quê, os comunistas vêm aí, às claras, confiantes e aceites? Nesse momento, o jovem começa a tomar consciência de que estão a chegar tempos muito diferentes, não pelos comunistas em si, mas pela previsível abertura a múltiplas e variadas realidades até aí interditas.

O primeiro 1º de Maio. O 1º de maio de 1974 é inesquecível. Ou antes, as manifestações. A manifestação de Lisboa começa na Baixa e dirige-se para o estádio do Inatel [então, ainda FNAT], já próximo do aeroporto. São muitos os milhares de pessoas a desfilar. Entre os primeiros a chegar e os últimos, talvez medeiem duas horas. Toda a tarde se desfila pela Almirante Reis acima. É um rio de gente a caminhar com um sentimento bom de reencontro, de partilha, de comunhão, de vitória sem raiva. Há um estado de graça nos sorrisos, no convite aos que estão pelos passeios, nas saudações a quem não se conhece. Não há ainda divisões. Estamos felizes. Estamos todos finalmente livres. Simplesmente. [Emoção.]

«Uma gaivota voava…» A sensação de liberdade, a convicção de que o destino de cada um passa agora pelas suas mãos, leva a que muitas pessoas quebrem as cadeias sociais ou rotineiras que as prendem. Há que levar a verdade não só ao político como ao social, à vida de cada um. Os divórcios saltam em flecha. A contestação nas empresas leva mais facilmente ao rompimento dos laços contratuais. A fuga de alguns empresários mais comprometidos, associada à convicção de que os patrões não têm função produtiva, logo são parasitas, leva a tentativas de controlo das empresas pelos trabalhadores. Pelo menos, tentar uma cogestão que devolva alguma verdade às relações de produção. O Estado é chamado a intervir em inúmeras situações, quer para legitimar a continuação da produção de empresas cujo proprietário fugira, quer para assegurar a gestão de empresas onde o conflito patrões/empregados ameaça paralisá-las. Desde grandes empresas, até padarias, por exemplo.

«… Como ela somos livres de voar.» A contestação, a reclamação de direitos nunca reconhecidos, faz surgir lutas nunca vistas. Uma que surge logo nas primeiras três semanas e que causa celeuma é uma luta das prostitutas, já não sei por que direito. A televisão — dois canais públicos a preto e branco — abre-se ao discurso popular, à queixa debitada pelo homem da rua. As pessoas têm finalmente acesso a divulgar os seus problemas. Os telejornais estão repletos de queixas, de afirmação de direitos, de cobertura das lutas laborais. Um dos programas mais populares trata de desmascarar práticas desonestas de comércio, com produtos fora de prazo, defeituosos, queixas de consumo, em suma.

Tomar café na associação. A luta laboral vai levando a que o trabalho seja melhor pago, quanto mais penalizante seja para o trabalhador. O trabalho noturno pago por valores mais altos, leva a que a vida noturna da capital se altere, pelo menos ao nível das cervejarias e outro pequeno comércio de restauração. Algum deste comércio que fechava por vezes às 2 da manhã, passa a fechar muito mais cedo, devido aos novos valores do trabalho noturno, acho eu. A noite lisboeta fica mais triste, com menos oferta.
Os novos conceitos de “endinheirado igual a fascista”, levam uns a uma fachada contida e à retirada para núcleos mais restritos; a vontade de participar na construção de uma nova sociedade leva outros para os inúmeros núcleos associativos — cooperativas, sindicatos ou partidos. Aí são agora os novos locais de eleição para os encontros e os namoros.

«O que se passa aqui, que tudo está tão diferente…?» De repente as coisas estão diferentes. Interessa mais o “ser” que o “ter”, há que ser solidário e não competitivo, há que participar ativamente nas tarefas que são de todos, a alfabetizar, a esclarecer, a ajudar em qualquer aspeto da vida coletiva da sociedade, nem que seja só colar cartazes, gerir a pequena associação cultural ou participar nas manifestações.
De repente, o que se tinha aprendido está desatualizado. As relações políticas, sociais, familiares e até pessoais pautam-se por outras normas. Há a sensação de que é preciso desaprender tudo e aprender tudo de novo. Lê-se Engels, Lenine, Marx, Mao, Wilhelm Reich. Livros com títulos como “O que é a consciência de classe?”, “A conquista do pão” ou “A origem da família da propriedade e do Estado”, andam por algumas mesas-de-cabeceira. Aprender, aprender, recuperar o tempo perdido, é preciso.

«A cantiga é uma arma.» Entretanto, os militares, cuja consciência política, na maioria, parece advir das mensagens emocionais contidas nas canções de intervenção, começam a absorver as ideologias dos partidos e a dividir-se. O ano e meio que se segue é um carrossel de factos políticos, com os partidos a digladiarem-se, a tentarem controlar as diversas tendências que os militares vão manifestando, em osmose de ideias políticas.
O jovem passa a noite a ler e a ouvir rádio — o horário do novo trabalho permite-o —, na esperança de notícias condizentes com as suas aspirações, mas sobretudo a absorver as mensagens e as emoções contidas nas inúmeras canções revolucionárias que vão surgindo em catadupa. Quando a luz do dia enche a rua, descansa finalmente.
A direita não aguenta tanta rutura dos seus valores e faz duas tentativas militares de controlo do processo, que são travadas, o que dá um grande alento à esquerda que aprofunda o controlo da economia e avança no sentido da democracia direta, mas cria muitos anti-corpos.
O bloco central não abdica de uma democracia por representação e pressiona, dinamitando o emissor que passava continuamente música revolucionária e retirando apoios institucionais à esquerda militar, que se torna mais aguerrida por ver fugir-lhe espaço de manobra. A 25 de novembro de 1975, reage, mas a resposta está preparada. É derrotada e o país inicia um processo de estabilização política em moldes tradicionais.

«E depois do adeus…» O jovem sente essa derrota como sua, tanto mais pessoal quanto estar a ser por si ajustada para a televisão a imagem do militar esquerdista que é retirada do ar, no momento simbólico da perda de controlo pelos revoltosos.
Não fora alfabetizar as populações do interior, não ocupara casas devolutas para famílias carenciadas, não participara em atividades das cooperativas agrícolas ou outras. Quase não “mexera uma palha”. Tivera uma mera adesão intelectual, pequeno-burguesa e romântica. Ainda assim, está muito abatido. O jovem sente que novembro significa o regresso da cinza de antigamente. Ou pensa que sim. Só lhe apetece emigrar. Mas, falta-lhe coragem.

Joaquim Bispo

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Imagem: Vieira da Silva, Liberdade, (Cartaz comemorativo do 10.º aniversário do 25 de Abril de 1974), 1984.
Coleção Família SMBA
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10/09/2019

A Caixa de Arquimedes


Eu nem queria acreditar! — o tom teatral do meu amigo Rui, na fila de almoço da cantina da faculdade, prometia história. — As peças do Ostomachion, em vez de estarem arrumadinhas no caixilho delas, estavam ao lado, ostensivamente, a formar um triângulo retângulo.
Somos colegas do curso de Matemática Aplicada, mas ele tem um part-time no Museu de História Natural e da Ciência, onde faz visitas guiadas às quartas e aos domingos. Diz que é para ajudar a pagar as propinas, mas eu acho que ele gosta mesmo é de revelar aos visitantes as pequenas maravilhas da ciência, expostas no museu. Já tem falado do brilho que parece acender-se no olhar de quem, de súbito, apreende a explicação.
Fiquei surpreendido, mas agradado — continuou ele —, porque nunca tinha visto qualquer visitante a conseguir construir outra figura. Geralmente, limitam-se a tentar reconstituir o quadrado inicial, o que alguns conseguem, porque a folha de apoio mostra o desenho da posição relativa das peças. Quando não conseguem, lá está o vigilante que recoloca tudo na posição própria.
O Rui falava de um jogo matemático inventado por Arquimedes — o Ostomachion ou Caixa de Arquimedes. Não sabemos se o usava como passatempo para exercitar o cérebro ou se tinha objetivos de pesquisa científica. É constituído por 14 peças planas, de variados formatos poligonais, com as quais é possível construir figuras geométricas planas ou sugerir objetos em silhueta, à semelhança do popular Tangram. Na “sala de jogos” do museu, está exposta mais uma dúzia de outros jogos ligados à geometria e à matemática, que foram surgindo ao longo dos séculos.
Não tinha importância se o jogo era apresentado de uma maneira ou de outra, mas, fiquei curioso: quem poderia ter-se lembrado de tentar montar um triângulo e tê-lo conseguido, com todas aquelas peças irregulares? Falei com o vigilante da tarde, que me garantiu que tudo tinha ficado arrumado como habitualmente. Mistério…
Eu próprio comecei a ficar interessado na história, confesso.
No domingo seguinte, era um hexágono que me sorria zombeteiro, onde devia dormitar um quadrado. O vigilante, desperto para a questão, disse-me que todas as manhãs encontrava uma figura geométrica diferente, construída com as peças do Ostomachion. Como podia ser isso? Comecei a duvidar de toda a gente. Terça-feira apareci de surpresa, à hora do fecho, mas estava tudo arrumadinho. Na manhã seguinte cheguei bem cedo e entrei com o vigilante. Um prosaico quadrado enchia o caixilho. Suspirei de alívio, pensando ter identificado o brincalhão. O sorriso sobranceiro que me preparava para dirigir ao vigilante fechou-se-me logo a seguir. O quadrado não era o da folha-guia, mas um dos outros 536 que as combinações das 14 peças do jogo permitem.
Mas, então, não me digas que o Arquimedes voltou lá da Siracusa de antes de Cristo para gozar contigo! — ironizei.
Nem pensei no Arquimedes. Já estava a ficar maluco, mas nem tanto! Só pensava em como podia descobrir o que de estranho se passava naquela sala, quando eu lá não estava. Então, lembrei-me das câmaras de vigilância, mas a sala dos jogos não as tem. Para grandes males, grandes remédios! No dia seguinte, camuflei uma microcâmara com emissor apontada à zona da mesa do Ostomachion. Não me olhes com esse olhar de reprovação! Eu precisava de desvendar aquele mistério, o quanto antes. Essa noite passei-a no carro, em frente ao museu, a vigiar o Ostomachion pelo meu portátil; mas, acabei por adormecer. Acordei com o clarear do dia e o barulho do trânsito. Apressei-me a olhar para o ecrã — um retângulo alongado reclinava-se no branco da mesa… Digo-te, naquele momento, desanimei — o fantasma que alterava o Ostomachion voltara a atacar e eu voltara a não ver nada. Mas logo a seguir vi surgir uma mulher. Fazia deslizar pelo soalho o que parecia ser um aspirador. Ou uma enceradora. Ao passar pela mesa, parou, olhou o puzzle por uns momentos, moveu dois conjuntos de peças e afastou-se, deixando um aprumado losango...
Estás a gozar; a empregada da limpeza?
É verdade! Eu também tive dificuldade em acreditar. Quando, umas duas horas depois, saiu galhofando com as outras, segui-a. Era negra e muito bonita, com uns olhos… No autocarro para a Pontinha, foi o tempo todo a resolver sudokus. À saída, abordei-a. Expliquei-lhe quem era e porque a seguira. E pedi-lhe desculpa, claro! Depois de ter ganho confiança, disse-me que não tinha nenhuma razão conspirativa para alterar o quadrado do Ostomachion, só um enorme gosto por puzzles e paciências. Nisso convergimos. Acabámos por ficar bastante tempo à conversa e até lhe expliquei as minhas técnicas para resolver os sudokus, mas não eram novidade para ela. Sabes, convergimos noutras coisas — sorriu-se o meu amigo. — Temos saído algumas vezes. E acho que o meu trabalho para Geometria do segundo semestre vai ser sobre o Ostomachion. Como homenagem…

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 10 a 11 — a 16ª edição (julho/agosto de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: (Gravura a partir da pintura de) Gustave Courtois, Morte de Arquimedes, sem data.
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10/08/2019

Cesteiro que faz um cesto



Esta história tem dois atores centrais, em dois tempos distintos, em contexto de greve, numa empresa de charcutaria, mais concretamente a Salgados, Fumados e Enchidos, SA.
No princípio da década de 80, a contestação sindical à política da empresa agudizou-se fortemente. Os sindicatos mais fortes — o que representava os cortadores e o dos salsicheiros — reivindicavam salários que repusessem o poder de compra que a inflação tinha consumido.
A situação de greve é sempre delicada. Os sindicatos tentam que os trabalhadores funcionem como um bloco unido, um “nós”, para que a paralisação seja o mais extensa possível e a greve obtenha os resultados pretendidos; a entidade patronal, por seu lado, tenta desmobilizá-los e dividi-los, para que cada um funcione apenas como um “eu”, se sinta isolado, vulnerável e se vire para a sua pequena vidinha, ignorando o interesse geral. Os trabalhadores veem-se, por isto, obrigados a optar por um dos campos antagónicos — o sindicato ou a empresa —, o que implica tomadas de posição de algum risco: fazer greve e arriscar-se a perseguições pela empresa, ou “furá-la” e enfrentar a ira dos colegas. Anteriores companheiros e amigos podem ver-se assim transformados em adversários e, se não souberem gerir as respetivas ações e emoções, podem magoar-se mais do que esperavam.
Por alguma mistura sociolaboral que nunca foi possível discernir, a greve que foi marcada pelos sindicatos, esgotada a esperança de entendimento negocial, teve uma adesão fortíssima, ao contrário das adesões medíocres de outras paralisações anteriores. A empresa viu-se na iminência de não garantir a laboração contínua e só o conseguiu pelo habitual aliciamento de alguns trabalhadores mais vulneráveis, e também pelo concurso das chefias, que nessa altura tiveram de mostrar que ainda sabiam “meter as mãos na massa”. Ainda assim, a greve foi um êxito e foram conseguidas muitas das reivindicações dos sindicatos.
De regresso ao trabalho, havia um ambiente de regozijo geral, mas também de ressentimento por quem, na prática, sabotara o esforço coletivo de adesão total à greve. Os “fura-greves” foram olhados de lado e alguns ouviram o que não queriam.
Amieiro, jovem delegado sindical, estava então a aprender a lidar com o ingrato mundo da luta sindical, a qual lhe parecia obscenamente desequilibrada para o lado do capital. Começava a perceber que, mais do que tudo, é preciso estar do lado do mais frágil. Por isso, ao ser confidente de um desses seus colegas “amarelos” — o Fajeca —, compreendeu e aceitou os seus argumentos de medo, porque, dizia, tinha sido perseguido por fazer greve numa empresa onde tinha estado anteriormente. Perante o rosto choroso do colega e o seu verdadeiro arrependimento, deu-lhe um abraço sincero, sentindo que o caminho da vida não é linear.
Dez anos mais tarde, aconteceu outra greve, desta vez às horas extraordinárias. O Amieiro já não estava ligado aos sindicatos e já não via o Fajeca há muito, porque trabalhava num setor da empresa que fora deslocalizado. Estava de serviço exatamente no local onde então era feito o enchimento e preparava-se para cumprir a diretiva sindical: à meia-noite, os aderentes deviam parar de trabalhar e abandonar o local de trabalho. Uns dez minutos antes da hora marcada, viu entrar um grupo de chefes intermédios para “a casa da máquina”. A empresa, não tendo certeza do comportamento da equipa de serviço, prevenira-se com mão-de-obra circunstancial, mas fiel. O Amieiro reparou também que, integrado naquele grupo pouco habituado ao manuseamento dos complicados equipamentos da área dos enchidos, vinha uma cara bem conhecida, a do Fajeca, técnico competente para operar a sofisticada máquina do enchimento de chouriços.
Amieiro ficou surpreendido, porque pensara que a lição de dez anos atrás fora indelével. Relembrou o rosto lacrimejante, o abraço de perdão oferecido, o passado enterrado, mas não ficou zangado, só um pouco desiludido. “Cesteiro que faz um cesto…” Faz um cento, diz o ditado. Mais cínico, mais distanciado, estendeu a mão para o cumprimento, enquanto saudava em tom exteriormente jovial:
Então, outra vez por cá?
Fajeca, também sorridente, respondeu com uma qualquer trivialidade, convencido de que a saudação se enquadrava nas dos encontros entre pessoas que não se veem há tempos. Poucos segundos depois, porém, ao notar o sorriso sarcástico a escorrer do rosto do Amieiro, apercebeu-se de que o “por cá” se referia à situação de furar uma greve. Outra vez. Então, fechou o sorriso, corou, despediu-se atabalhoadamente e incorporou-se no grupo de recém-chegados.
Amieiro não soube se Fajeca ficou envergonhado por esta reincidência. Nem soube se ele fora constrangido a sabotar a greve por sentimento de vulnerabilidade económica ou se tinha escolhido o seu campo conscientemente. Refletiu, sim, que, se fosse ainda delegado sindical — com o consequente dever ético de respeito por toda e qualquer posição perante as lutas sindicais de todo e qualquer trabalhador —, não poderia, ou antes, não deveria ter cedido ao seu lado sombrio, lançando aquela farpa verbal. E acabrunhou-se por tê-la achado saborosa.

Joaquim Bispo

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Imagem: Lima de Freitas, Retrato de Fernando Namora, 1951.
Coleção Casa Museu Fernando Namora.


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