10/09/2019

A Caixa de Arquimedes


Eu nem queria acreditar! — o tom teatral do meu amigo Rui, na fila de almoço da cantina da faculdade, prometia história. — As peças do Ostomachion, em vez de estarem arrumadinhas no caixilho delas, estavam ao lado, ostensivamente, a formar um triângulo retângulo.
Somos colegas do curso de Matemática Aplicada, mas ele tem um part-time no Museu de História Natural e da Ciência, onde faz visitas guiadas às quartas e aos domingos. Diz que é para ajudar a pagar as propinas, mas eu acho que ele gosta mesmo é de revelar aos visitantes as pequenas maravilhas da ciência, expostas no museu. Já tem falado do brilho que parece acender-se no olhar de quem, de súbito, apreende a explicação.
Fiquei surpreendido, mas agradado — continuou ele —, porque nunca tinha visto qualquer visitante a conseguir construir outra figura. Geralmente, limitam-se a tentar reconstituir o quadrado inicial, o que alguns conseguem, porque a folha de apoio mostra o desenho da posição relativa das peças. Quando não conseguem, lá está o vigilante que recoloca tudo na posição própria.
O Rui falava de um jogo matemático inventado por Arquimedes — o Ostomachion ou Caixa de Arquimedes. Não sabemos se o usava como passatempo para exercitar o cérebro ou se tinha objetivos de pesquisa científica. É constituído por 14 peças planas, de variados formatos poligonais, com as quais é possível construir figuras geométricas planas ou sugerir objetos em silhueta, à semelhança do popular Tangram. Na “sala de jogos” do museu, está exposta mais uma dúzia de outros jogos ligados à geometria e à matemática, que foram surgindo ao longo dos séculos.
Não tinha importância se o jogo era apresentado de uma maneira ou de outra, mas, fiquei curioso: quem poderia ter-se lembrado de tentar montar um triângulo e tê-lo conseguido, com todas aquelas peças irregulares? Falei com o vigilante da tarde, que me garantiu que tudo tinha ficado arrumado como habitualmente. Mistério…
Eu próprio comecei a ficar interessado na história, confesso.
No domingo seguinte, era um hexágono que me sorria zombeteiro, onde devia dormitar um quadrado. O vigilante, desperto para a questão, disse-me que todas as manhãs encontrava uma figura geométrica diferente, construída com as peças do Ostomachion. Como podia ser isso? Comecei a duvidar de toda a gente. Terça-feira apareci de surpresa, à hora do fecho, mas estava tudo arrumadinho. Na manhã seguinte cheguei bem cedo e entrei com o vigilante. Um prosaico quadrado enchia o caixilho. Suspirei de alívio, pensando ter identificado o brincalhão. O sorriso sobranceiro que me preparava para dirigir ao vigilante fechou-se-me logo a seguir. O quadrado não era o da folha-guia, mas um dos outros 536 que as combinações das 14 peças do jogo permitem.
Mas, então, não me digas que o Arquimedes voltou lá da Siracusa de antes de Cristo para gozar contigo! — ironizei.
Nem pensei no Arquimedes. Já estava a ficar maluco, mas nem tanto! Só pensava em como podia descobrir o que de estranho se passava naquela sala, quando eu lá não estava. Então, lembrei-me das câmaras de vigilância, mas a sala dos jogos não as tem. Para grandes males, grandes remédios! No dia seguinte, camuflei uma microcâmara com emissor apontada à zona da mesa do Ostomachion. Não me olhes com esse olhar de reprovação! Eu precisava de desvendar aquele mistério, o quanto antes. Essa noite passei-a no carro, em frente ao museu, a vigiar o Ostomachion pelo meu portátil; mas, acabei por adormecer. Acordei com o clarear do dia e o barulho do trânsito. Apressei-me a olhar para o ecrã — um retângulo alongado reclinava-se no branco da mesa… Digo-te, naquele momento, desanimei — o fantasma que alterava o Ostomachion voltara a atacar e eu voltara a não ver nada. Mas logo a seguir vi surgir uma mulher. Fazia deslizar pelo soalho o que parecia ser um aspirador. Ou uma enceradora. Ao passar pela mesa, parou, olhou o puzzle por uns momentos, moveu dois conjuntos de peças e afastou-se, deixando um aprumado losango...
Estás a gozar; a empregada da limpeza?
É verdade! Eu também tive dificuldade em acreditar. Quando, umas duas horas depois, saiu galhofando com as outras, segui-a. Era negra e muito bonita, com uns olhos… No autocarro para a Pontinha, foi o tempo todo a resolver sudokus. À saída, abordei-a. Expliquei-lhe quem era e porque a seguira. E pedi-lhe desculpa, claro! Depois de ter ganho confiança, disse-me que não tinha nenhuma razão conspirativa para alterar o quadrado do Ostomachion, só um enorme gosto por puzzles e paciências. Nisso convergimos. Acabámos por ficar bastante tempo à conversa e até lhe expliquei as minhas técnicas para resolver os sudokus, mas não eram novidade para ela. Sabes, convergimos noutras coisas — sorriu-se o meu amigo. — Temos saído algumas vezes. E acho que o meu trabalho para Geometria do segundo semestre vai ser sobre o Ostomachion. Como homenagem…

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 10 a 11 — a 16ª edição (julho/agosto de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: (Gravura a partir da pintura de) Gustave Courtois, Morte de Arquimedes, sem data.
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10/08/2019

Cesteiro que faz um cesto



Esta história tem dois atores centrais, em dois tempos distintos, em contexto de greve, numa empresa de charcutaria, mais concretamente a Salgados, Fumados e Enchidos, SA.
No princípio da década de 80, a contestação sindical à política da empresa agudizou-se fortemente. Os sindicatos mais fortes — o que representava os cortadores e o dos salsicheiros — reivindicavam salários que repusessem o poder de compra que a inflação tinha consumido.
A situação de greve é sempre delicada. Os sindicatos tentam que os trabalhadores funcionem como um bloco unido, um “nós”, para que a paralisação seja o mais extensa possível e a greve obtenha os resultados pretendidos; a entidade patronal, por seu lado, tenta desmobilizá-los e dividi-los, para que cada um funcione apenas como um “eu”, se sinta isolado, vulnerável e se vire para a sua pequena vidinha, ignorando o interesse geral. Os trabalhadores veem-se, por isto, obrigados a optar por um dos campos antagónicos — o sindicato ou a empresa —, o que implica tomadas de posição de algum risco: fazer greve e arriscar-se a perseguições pela empresa, ou “furá-la” e enfrentar a ira dos colegas. Anteriores companheiros e amigos podem ver-se assim transformados em adversários e, se não souberem gerir as respetivas ações e emoções, podem magoar-se mais do que esperavam.
Por alguma mistura sociolaboral que nunca foi possível discernir, a greve que foi marcada pelos sindicatos, esgotada a esperança de entendimento negocial, teve uma adesão fortíssima, ao contrário das adesões medíocres de outras paralisações anteriores. A empresa viu-se na iminência de não garantir a laboração contínua e só o conseguiu pelo habitual aliciamento de alguns trabalhadores mais vulneráveis, e também pelo concurso das chefias, que nessa altura tiveram de mostrar que ainda sabiam “meter as mãos na massa”. Ainda assim, a greve foi um êxito e foram conseguidas muitas das reivindicações dos sindicatos.
De regresso ao trabalho, havia um ambiente de regozijo geral, mas também de ressentimento por quem, na prática, sabotara o esforço coletivo de adesão total à greve. Os “fura-greves” foram olhados de lado e alguns ouviram o que não queriam.
Amieiro, jovem delegado sindical, estava então a aprender a lidar com o ingrato mundo da luta sindical, a qual lhe parecia obscenamente desequilibrada para o lado do capital. Começava a perceber que, mais do que tudo, é preciso estar do lado do mais frágil. Por isso, ao ser confidente de um desses seus colegas “amarelos” — o Fajeca —, compreendeu e aceitou os seus argumentos de medo, porque, dizia, tinha sido perseguido por fazer greve numa empresa onde tinha estado anteriormente. Perante o rosto choroso do colega e o seu verdadeiro arrependimento, deu-lhe um abraço sincero, sentindo que o caminho da vida não é linear.
Dez anos mais tarde, aconteceu outra greve, desta vez às horas extraordinárias. O Amieiro já não estava ligado aos sindicatos e já não via o Fajeca há muito, porque trabalhava num setor da empresa que fora deslocalizado. Estava de serviço exatamente no local onde então era feito o enchimento e preparava-se para cumprir a diretiva sindical: à meia-noite, os aderentes deviam parar de trabalhar e abandonar o local de trabalho. Uns dez minutos antes da hora marcada, viu entrar um grupo de chefes intermédios para “a casa da máquina”. A empresa, não tendo certeza do comportamento da equipa de serviço, prevenira-se com mão-de-obra circunstancial, mas fiel. O Amieiro reparou também que, integrado naquele grupo pouco habituado ao manuseamento dos complicados equipamentos da área dos enchidos, vinha uma cara bem conhecida, a do Fajeca, técnico competente para operar a sofisticada máquina do enchimento de chouriços.
Amieiro ficou surpreendido, porque pensara que a lição de dez anos atrás fora indelével. Relembrou o rosto lacrimejante, o abraço de perdão oferecido, o passado enterrado, mas não ficou zangado, só um pouco desiludido. “Cesteiro que faz um cesto…” Faz um cento, diz o ditado. Mais cínico, mais distanciado, estendeu a mão para o cumprimento, enquanto saudava em tom exteriormente jovial:
Então, outra vez por cá?
Fajeca, também sorridente, respondeu com uma qualquer trivialidade, convencido de que a saudação se enquadrava nas dos encontros entre pessoas que não se veem há tempos. Poucos segundos depois, porém, ao notar o sorriso sarcástico a escorrer do rosto do Amieiro, apercebeu-se de que o “por cá” se referia à situação de furar uma greve. Outra vez. Então, fechou o sorriso, corou, despediu-se atabalhoadamente e incorporou-se no grupo de recém-chegados.
Amieiro não soube se Fajeca ficou envergonhado por esta reincidência. Nem soube se ele fora constrangido a sabotar a greve por sentimento de vulnerabilidade económica ou se tinha escolhido o seu campo conscientemente. Refletiu, sim, que, se fosse ainda delegado sindical — com o consequente dever ético de respeito por toda e qualquer posição perante as lutas sindicais de todo e qualquer trabalhador —, não poderia, ou antes, não deveria ter cedido ao seu lado sombrio, lançando aquela farpa verbal. E acabrunhou-se por tê-la achado saborosa.

Joaquim Bispo

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Imagem: Lima de Freitas, Retrato de Fernando Namora, 1951.
Coleção Casa Museu Fernando Namora.


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10/07/2019

O rapto de Hélade



Na pátria dos Aqueus, em tempos de ninfas e faunos, vivia-se ao sabor das estações, aproveitando as benesses que a Natureza generosa estendia aos habitantes daquela ampla península sulcada por múltiplas enseadas abertas ao Mar Egeu.
Muito tempo depois, Hélade, jovem e bela helena na flor da idade, instruída na cultura mitológica do seu país, estando um dia em folguedos com as amigas na almargem litoral das terras de seu pai, não estranhou, quando um boi muito branco se separou da manada e se aproximou das donzelas, manso e sedutor. Imediatamente lhe acudiu ao pensamento a história pitoresca da sua antepassada Europa, que, por via da mansidão encantadora de um boi resplandecente, fora raptada, levada para Creta e seduzida.
O relato mitológico não era sequer inquietante, porque o boi que raptara Europa não fora outro senão Zeus disfarçado, querendo aproximar-se da formosa mortal sem suscitar os ciúmes de sua mulher, Hera. Além disso, a história não tinha terminado mal: Europa tivera três filhos de Zeus, que foram homens importantes do seu tempo.
O boi que se acercou do grupo de Hélade tinha chifres em forma de luas em quarto crescente e deitou-se aos pés da jovem. Assim, foi quase natural acariciar-lhe o lombo e a cornadura e, pouco depois, enfeitá-la com grinaldas de malmequeres e outras flores silvestres. O pelo macio e luminoso do boi, a sua mansidão, a euforia juvenil do grupo e até a expectativa de uma grande e excitante aventura levaram a donzela a arriscar subir para o dorso do belo animal. Como ela temia ou desejava? o boi levantou-se e em passo ligeiro dirigiu-se para a praia, atravessou a areia e entrou no mar, perante os gestos animados e os risos divertidos do grupo de jovens.
Hélade, mais entusiasmada que apreensiva, deixou-se conduzir pelo boi que, nadando até ao mar alto, se transformou em uma águia-de-cabeça-branca e, sempre com a jovem mediterrânica no dorso, rumou à América, onde tinha o ninho. Ali, aliciou-a com todas as comodidades e todas as engenhocas tecnológicas que a civilização global consegue produzir. Sem precisar de pagar nada. Tudo a crédito. A jovem argiva sentia-se a mais ditosa das mediterrânicas. Nem sabia como agradecer ao seu benfeitor. Mas este não parecia querer que a donzela se preocupasse com ninharias. E convenceu-a a desfrutar da sociedade de consumo. O que Hélade fez despreocupadamente. Tornou-se amante de luxos e sofisticações e até caprichosa investidora da Bolsa. Quando Hélade já não sabia o que mais queria possuir e já não tinha mais palavras para agradecer, o génio que a raptara começou por fim a falar em crise e na necessidade de ela pagar os créditos que tinha contraído. Hélade não entendia o que implicava a inesperada conversa do até aí simpático raptor. Mas ele foi perentório:
Minha menina, não há brinquedos grátis! Não te ensinaram lá no Peloponeso? Se não pagas de uma maneira, pagas de outra...
Então, possuiu-a pela primeira vez. Se Hélade há muito tinha efabulado com esta romântica eventualidade, a maneira economicista e quase vingativa de ele concretizar um ato que devia ser de amor entristeceu-a: além do mais, teve ainda a suprema insensibilidade de dizer que lhe fazia uma gentileza abatia-lhe dez mil dólares no valor em dívida!
Nos tempos que se seguiram, possuiu-a repetidamente, fazendo-se assim pagar pelos inúmeros bens tecnológicos que adiantara. Com juros. Pelas contas do tratante, Hélade pagaria com o corpo, à razão de uma penetração por cada 100 dólares de dívida.
Ontem valia dez mil dólares… ― indignou-se Hélade, na primeira vez.
Estamos a falar de produtos diferentes, rapariga. O teu rating triplo A de ontem, entretanto, baixou para A+, como deves compreender…
Quando a dívida cresceu para valores que o vigor sexual do malandro já não acompanhava, começou a alugá-la a tempo, a bandeiradas de quarto de hora, concedendo-lhe 10 dólares por hora. Enquanto ele guardava um valor não revelado, a título de serviços de angariação, promoção e facilitação de negócio.
Ou preferes vender órgãos? ripostara o patife, aos protestos de Hélade.
Só demasiado tarde Hélade percebeu que este esplendoroso boi que a seduzira nada tinha que ver com aquele lúbrico, mas generoso, boi que raptara Europa. Este não era outro senão o terrível Minotauro Global, mutação maligna adorada pelos mercados que, agradecidos, lhe tinham erigido uma enorme escultura em Wall Street. A ingénua jovem descobriu então que este Minotauro era vezeiro neste tipo de manobras de engano. Os primeiros contactos eram sempre de ajuda e proteção, mas depois vinha a fatura. Muitas jovens e efebos por esse mundo afora tinham caído nas malhas dessa generosidade com intenções escondidas. Luso era um deles; Hibernia, outra.
Hélade não sabia como se livrar deste cárcere de grades económicas que a dívida odiosa lhe impunha. Percebeu que nada seria suficiente quando a dívida cresceu para valores estratosféricos e o monstro lhe ordenou que mandasse vir as amigas. Só então, Hélade, não suportando mais a tirania, evocou os seus bravos antepassados Aqueus e lançou um “NÃO!” que se ouviu na Terra inteira. Muitos dos deuses que na Antiguidade cuidavam dos Homens e das suas dificuldades acordaram, alarmados.
Inteirado da situação, Zeus reuniu-os e incitou-os a fazer alguma coisa por esta humana duma nação que os deuses tanto amavam. Hermes foi o primeiro a levar uma mensagem de indignação ao Minotauro, mas voltou, humilde e um pouco assustado, quando o monstro global lhe lembrou que a força negocial dele era nula, desde que adquirira, como Hélade, ativos tóxicos ao banco Caiman Brothers. A seguir, avançou Hefesto, que ameaçou o Minotauro com métodos mais violentos, aqueles ligados ao raio e ao fogo, mas também ele voltou humilhado, quando o Minotauro lhe mostrou o poder bélico do complexo militar e industrial.
Viste o que aconteceu a Santorini? ― sibilou o Minotauro, ameaçador. ― Não se compara ao que aconteceria a toda aquela lamentável região…
Hera ofereceu-se então para tentar negociar, argumentando que tinha alguma experiência com espécimes bovinos… Senhora de muita experiência, deu-se relativamente bem com o Minotauro, em quem encontrava semelhanças com o seu esposo quando jovem. Louvando o liberalismo e a legitimidade do poder do mais forte, com modos sedutores, conseguiu afagar o ego de macho alfa do Minotauro, e assim obter dele algumas graças ― uma delas, experimentar carnalmente a pujança taurina, vivência que invejara a Europa.
A partir daí, as negociações foram mais fáceis, mas sempre numa ótica economicista. Hera voltou com um contrato específico que, a ser aprovado pelo Concílio dos Deuses, iria atenuar por alguns anos as penas da dívida de Hélade e, com esperança inconfessada, trazer alguma animação ao Olimpo, para irritação provável da maioria dos seus esquivos companheiros divinos. Tratava-se da privatização do Monte Olimpo, onde se previa a instalação de um imenso parque temático, aberto todo o ano, cujas receitas de bilheteira e de todo o merchandising associado à mitologia autóctone seriam naturalmente controladas pelo Minotauro.
Amorzinho, de certeza que o Concílio não vai aceitar de bom grado os pontos do contrato que obrigam os deuses a estar sempre visíveis e a interagir com os visitantes humanos... advertira Hera, genuinamente apreensiva.
Eles que pensem bem! ― resfolegara o implacável touro mutante. ― Senão, mando instalar uma mitologia de deus único.

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 158 a 161 — a 15ª edição (maio/junho de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Arturo di Modica, Touro investindo, c. 1989.
Wall Street. Nova Iorque.
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10/06/2019

Errata



«A febre, que desagradável! Os suores. A tosse, o mais penoso!»
Não serão febres de África, doutor?
«Tuberculose? “Santa mama preta da minha ama sudanesa”!»
«Ah, o fulgurante Manifesto! Paris. “A furiosa vassoura da loucura arrancou-nos de nós mesmos e enxotou-nos pelas ruas”. Dórdio, Amadeu, Manuel Jardim. O Diogo. Como o pobre me conheceu... À minha cintilante genialidade futurista. O porteiro do museu Carnavalet a enxotar-me, e eu aos urros, aos brados, em língua acabada de inventar. Só porque me sentei na cadeira de Voltaire. Sim, cruzei a perna e acendi um cigarro. Tinha de experimentar se um poucochinho do génio do antigo proprietário passava para mim, como dizem os hiperestésicos. Um tal Carrington. Como me fui lembrar ainda do nome? Já foi há uns sete anos. 1911? Faz sentido. Tempos gloriosos. “Um orgulho imenso intumescia os nossos peitos, pois sentíamo-nos os únicos, naquela hora, despertos e eretos, como faróis soberbos ou como sentinelas avançadas, diante do exército de estrelas inimigas, que olhavam furtivas dos seus acampamentos celestes.” E, para quê? A perfeita cópia da Olímpia foi considerada uma afronta revolucionária, por ser de Manet.»
Augusto, meu irmão, não deixes ficar os meus quadros por aí, à mercê de qualquer professor, cicerone ou antiquário. Destrói-os todos. Promete!
«Claro que preferiam Ingres. Ou, mesmo, Cabanel. Com a Academia nas mãos do Veloso Salgado… Amargos de boca. Daquela vez que o retratei fielmente, integrado num Inferno, onde ele era o diabo-mor, rodeado das almas penadas dos alunos. Ah, ah! Antes de ir para Paris. Sansão e Dalila: a prova de concurso à pensão Valmor. Concedida, só em 1910. O ideal a acontecer. “Finalmente a mitologia e o ideal místico estão superados. Nós estamos prestes a assistir ao nascimento do Centauro”. Flanar em Paris ― dominar o mundo. Depois, a República e o embaixador. Cortar-me a pensão... Como se eu fosse monárquico. Claro que o tinha afrontado! “Saiamos da sabedoria como de uma casca horrível, e atiremo-nos, como frutos apimentados de orgulho, dentro da boca imensa e retorcida do vento!” Lisboa, de novo. Há, apenas, quatro anos. A minha espantosa postura. As roupas pretas, o cabelo longo. Lançar as pernas para a frente, em desafio à pequenez lisboeta. Lançar o Manifesto aqui e ver “voar os primeiros Anjos!” O Congresso Futurista. Minha saudosa Cervejaria Jansen! As sessões futuristas do Teatro República. O Almada ― que formidável apresentação! Os meus desenhos na Orpheu. E os títulos! Síntese geometral de uma cabeça x infinito plástico de ambiente x transcendentalismo físico. Chamam-me irreverente e delirante. Uns acham-me Hamlet; outros, espantalho. Lisboa é demasiado pequena. Daquela vez que quis arrendar os Jerónimos para pintar uma tela enorme, eh! Gosto de a afrontar, de provocar polémicas e falatórios. Sou o “artista que o génio da época produziu.” A Portugal Futurista, no ano passado, poderia ter sido a revista que abalaria os alicerces bolorentos do país. Mas não passou do primeiro número. Nem consegui publicar o Manifesto
Tragam-me os meus escritos. Quero fazer um post-scriptum.
«Um gesto, mais um gesto, o último. Que seja único e sublime. Isso! Dois traços a abarcar cada página de canto a canto. E, a finalizar, no frontispício: Errata. E uma assinatura bem explícita: Santa-Rita Pintor, que é o que sempre fui. A minha obra maior ― a minha vida apontada ao futuro ― não cabe nos museus, nem nas bibliotecas.»
Adeus, companheiros; foi uma gloriosa vernissage!

Joaquim Bispo
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Este conto foi o 4º selecionado do concurso literário para composição do número 8 da Revista Inversos, em que ocupa a página 18:

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Imagem: Guilherme Santa-Rita (Santa-Rita Pintor), Menelau sustentando o corpo de Pátroclo, 1910.
Academia Nacional de Belas-Artes (Reservas), Lisboa.

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10/05/2019

Uma noiva para João do Campo



Era uma vez um rapaz que vivia sozinho no campo e raras vezes ia à cidade. Falava apenas com as cabras, os pássaros e as árvores, a não ser na festa dos rebanhos. Chegado à idade de casar, não conhecia ninguém que quisesse viver com ele, e pensava que todas as raparigas preferiam ficar na cidade, em vez de ir viver para o campo, onde, às vezes, faz muito calor e muito frio, e não há luz à noite. Então o João — assim se chamava o rapaz — foi falar com o rei, dizendo:
Meu rei, já tenho vinte anos e ainda sou solteiro. Não sei de ninguém que queira casar comigo. Peço-te que me arranjes uma noiva para viver, dia e noite, lá no campo onde moro.
O rei ficou muito admirado por alguém do seu reino não ter com quem casar e disse:
Daqui a três dias, volta aqui, mas traz a coisa mais bonita que o campo tem, como prenda para a tua noiva.
João assim fez. Daí a três dias, voltou ao palácio com um braçado de malmequeres. Ao lado do rei estavam três pretendentes, que ele tinha arranjado, entre as solteiras da cidade. Uma disse:
Não gosto de malmequeres, que me fazem espirrar!
A segunda disse:
Tenho muitos, lá em casa, mais bonitos que esses!
A terceira disse:
Os malmequeres são as minhas flores preferidas. Caso contigo.
No dia seguinte, fez-se uma grande festa e casaram-se os noivos que, por fim, partiram para o campo. Durante uma semana, viveram os dois muito alegres. Corriam, rebolavam nos prados, jogavam às escondidas e riam-se a valer. Depois, o casal começou a ficar triste, porque esperava que o casamento fosse diferente. A rapariga dizia que o João não gostava dela, o que era um pouco verdade. Achava-a muito delicada, muito “menina da cidade”. Começou a desejar que a sua noiva fosse mais robusta e gostasse de jogar à bilharda, à pedrada, e a outros jogos de rapazes do campo. Resolveram pedir ao rei que os descasasse e lhes arranjasse outros noivos. Assim fizeram. Contaram ao rei o que tinha acontecido e ele ficou muito pensativo. Disse ao João:
Volta daqui a três dias, mas traz a coisa mais saborosa que o campo tem, como presente para a tua noiva.
João assim fez. Daí a três dias voltou com uma saca de peras, muito cheirosas e suculentas. Ao pé do rei, estavam três pretendentes. A primeira disse:
As frutas doces fazem-me engordar.
A segunda disse:
Para comer peras, fico em minha casa!
A terceira disse:
As peras são a minha fruta preferida. Caso contigo.
Assim se fez e, depois da festa, os noivos partiram para o campo. Durante uma semana correram, saltaram, riram e brincaram muito. Depois começaram a ficar tristes. A rapariga dizia que o João já não gostava dela, e era verdade. Achava-a demasiado suave e frágil. Parecia-lhe que havia de preferir uma que fosse mais vigorosa e gostasse de jogar às quedas e ao jogo do pau. Contaram tudo ao rei, que os descasou e que, depois de pensar um bocado, disse ao João:
Volta cá daqui a três dias, mas traz a coisa mais divertida que há no campo, como lembrança para a tua noiva.
João voltou no dia combinado, com um par de cajados. A primeira das novas pretendentes disse:
Que jogo tão rústico! Eu só gosto de jogos de tabuleiro.
A segunda disse:
Que bruto; ainda alguém se magoa!
A terceira disse:
O jogo do pau é o meu favorito. Caso contigo.
O rei, então, disse:
Vão para o campo e voltem só daqui a um mês! Se então me disserem que continuam a querer casar-se, assim farei, mas só se gostarem de viver um com o outro.
Os noivos assim fizeram. Durante a primeira semana, não fizeram outra coisa senão jogar ao jogo do pau. Depois jogaram à pedrada, ao braço-de-ferro e ao salto a pés juntos, zonzos de alegria. João estava feliz. Finalmente encontrara alguém com os mesmos gostos. E também gostava do seu corpo, que era musculado e rijo, à maneira do campo. Passaram a dar muitos beijinhos e decidiram dizer ao rei que, agora sim, estavam bem um para o outro e queriam casar. Mas, antes, a noiva confessou:
João, eu, na verdade, não sou uma rapariga; sou o filho do rei. O meu pai, avisado por um mágico, fez que eu sempre me tenha vestido de princesa e ninguém no reino sabe que eu sou, na verdade, um príncipe. Quando te vi, gostei do teu ar campestre, e quando soube das tuas dificuldades com as outras raparigas, percebi que talvez fosse eu a pessoa que te pudesse contentar. E realizar-me contigo. Eu próprio, também me queria casar. Então, pedi ao meu pai para me deixar vir para o campo contigo.
João, apesar de surpreendido, aceitou e beijou apaixonadamente o amor da sua vida. Estavam ambos felizes e isso era o que na verdade interessava.
Quando se completou um mês, voltaram ao palácio e contaram ao rei que estavam decididos a casar. Houve uma grande festa e o rei, em pessoa, casou a princesa com o João, perante todo o povo. Todos se divertiram e um dos mais animados era o rei, que, finalmente, via o seu filho feliz.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra em posição de destaque — páginas 7 a 10 — a antologia “+ Amor, Respeito, Tolerância, Humanidade” da Editora Jogo de Palavras:


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Imagem: Almada Negreiros, Centauros (tapeçaria), 1959.
Four Seasons Hotel Ritz, Lisboa.
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10/04/2019

A Guerra da Líria



Arrebatamentos de potência e invencibilidade dominavam a mente de Jorge Fontoura naquela manhã. O negócio com os investidores imobiliários chineses tinha sido concluído. Agora, havia que pôr a gorda e saborosa comissão a trabalhar. O seu gestor de conta, que já em outras ocasiões o tinha incitado a apostar em aplicações financeiras agressivas, recebeu-o de imediato:
Tenho justamente o que lhe vai agradar, senhor Fontoura — atacou o gestor. — Já ouviu falar em SEP? São produtos de exposição suprema, na sigla em inglês. Não lhe vou mentir; como o nome sugere, são aplicações de risco máximo, em que o investidor pode perder tudo de um dia para o outro, mas, se correr bem, como quase sempre sucede, o senhor Fontoura pode ver triplicado ou quintuplicado o seu investimento em um ano, ou até em poucos dias. Quem não arrisca não petisca, lá diz o ditado.
Ótimo; mas de que se trata: ações, futuros, o quê?
Uma espécie de ações. Ou antes, unidades de conquista e predação, como eu gosto de lhes chamar. Cada ação é como um soldado que invade o território inimigo, mata quantos encontra e regressa com os despojos. Ou então mantém-se a ocupar o território, a assegurar um fluxo contínuo de riqueza para os acionistas. Para o seu bolso, senhor Fontoura.
Não estou a entender nada. Já percebi que são aplicações agressivas, mas apresentá-las como soldados a invadir território inimigo será uma metáfora exagerada, não?
De modo algum! É mesmo disso que se trata. O que lhe proponho, senhor Fontoura, são ações da Guerra da Líria. Sim, aquela que começou há quinze dias — reforçava o gestor bancário, perante o rosto incrédulo de Fontoura. — É o produto que está a bombar. Literalmente. Aproveite agora, enquanto estão baratas, porque quando o conflito ganhar dimensão, quando, como se espera, os rebeldes adquirirem mísseis terra-ar e derem luta às forças governamentais, de igual para igual, aí, senhor Fontoura, pode ser tarde. Aí, podem já estar ao preço das ações da Guerra da Síria, que ainda é um bom produto, sempre a jorrar dividendos, mas a que já não se pode chegar. Agora, só os grandes bancos e os conglomerados financeiros dos países ricos as podem comprar. Aliás, nem sequer aparecem à venda.
Fontoura parecia em choque. Pressionado pela pausa do gestor, acabou por murmurar:
Guerra?
Sim, claro; tudo o que dá dinheiro é bom para investir…
Refere-se a empresas de armamento, não?
Também; mas a gestão por objetivos obrigou a que se separassem as áreas de aplicação — Guerra do Iraque, Guerra da Síria, Guerra da Ucrânia —, cada uma com o seu fluxo de capitais e o seu retorno, por um lado, e a junção de várias empresas no mesmo esforço de produção. Um mesmo objetivo engloba, certamente, empresas de armamento, mas também empresas de reconstrução, empresas de segurança, até empresas de comunicação social, todas unidas no mesmo esforço de manter a guerra em atividade. O pior que pode acontecer é, sem se esperar, os contendores fazerem as pazes. Essa é a única situação em que os investidores podem perder grande parte ou todo o capital, porque as ações vêm por aí abaixo.
Mas, isso é horrível! — reagia, finalmente, Fontoura, acompanhando as palavras com uma expressão de repugnância. — Então e as cidades destruídas, as mortes de crianças, as populações em fuga a atirarem-se ao Mediterrâneo de qualquer maneira, em barquinhos sem condições, a preferirem o risco de uma morte por afogamento à vida demencial em zona de guerra?
Bem, realmente há algumas associações de intervenção social que chamam Stinky Ethics Products aos SEP, como quem diz Produtos de Ética Pestilenta, mas a pessoa quando entra no mundo financeiro é melhor nem saber em que é aplicado o seu dinheiro. É como os frangos — gostamos do sabor, mas não queremos saber como são criados.
Diga-me uma coisa: isso é legal? É que estou a ver que, se alguma coisa correr mal, posso ser preso e julgado, acusado de me tornar cúmplice de destruições e matanças, de crimes contra a Humanidade, não?
Ó senhor Fontoura, eu nem estou a acreditar no que estou a ouvir — impacientava-se o gestor. — O senhor desculpe, mas já viu algum vencedor ser julgado? Nós estamos do lado dos vencedores, senhor Fontoura! Agora, e por muito tempo. Mais depressa condenam algum negociador de paz do que simples acionistas que apenas querem aplicar honradamente algumas poupanças que conseguiram com o seu trabalho. Não é o senhor que vai lá dar tiros, nem empurrar refugiados para os barcos da morte
Está bem, está bem! — contemporizava Fontoura, derrotado. — Líria… A Líria até parecia um país sossegado. Cheguei a passar por lá, em férias. Tinham as suas manias, como os outros, mas nada fazia prever isto. De repente, aquele obus na escola… E o governo a dizer que tinham sido os rebeldes, e eles a acusar o governo...
Não fui eu que disse, mas com certeza que às vezes é preciso dar um empurrãozinho... Repare, os outros conflitos estiveram um bocado parados e assim ninguém ganha dinheiro. Felizmente, parece que as coisas estão a “melhorar” na Líbia. No Iraque, então…; as ações estão outra vez a subir em flecha. Aliás, se o senhor Fontoura não quiser investir na Guerra da Líria, compre Iraque. Estou convencido de que ainda vão subir muito mais.
Não, não; pode ser Líria. Gostava do país, gostava do povo. É pena irem partir aquilo tudo. Paciência!

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 19 a 21 — a 14ª edição (março/abril de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Delacroix, A barca de Dante, 1822.
Museu do Louvre, Paris.
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10/03/2019

Sempre Assim Será



O meu nome é Lobulfo, chefe do clã dos Mamutin. Falo-vos do fundo dos tempos, na vossa linguagem artificiosa, para que me entendais. Sou filho de Ursácuo e de Bagulfa. Dela, mal me lembro, porque morreu com um filho preso no ventre, ainda eu era criança. Sei que fiquei muito triste. Construímos-lhe o útero de regresso com grandes pedras, numa pequena elevação junto à aldeia de então e completámos o ventre com muita terra a fazer um monte redondo. Fui criado pelas Grandes Mães. Vivo com o meu povo no centro do mundo. Seguimos as manadas de bisontes, auroques e cavalos e instalamos a nossa aldeia de cabanas redondas junto aos vales onde pastam. Fazemos um círculo largo com as cabanas dos caçadores. Dentro, erguemos as das mulheres e crianças. Ao centro, perto do totem, a minha, que era do meu pai antes de ele partir.
Lembro-me dele muitas vezes. Ensinou-me tudo o que eu sei. Ou quase. Uma das primeiras coisas de que me lembro foi de endurecer a ponta de uma lança ou de uma azagaia, nas brasas de uma fogueira. Isto foi depois de eu deixar de andar com as mulheres a apanhar bagas e raízes. Passei a aprender a ser caçador. Ensinou-me como se prendem as pequenas lascas de sílex às azagaias e como estas se preparam para ficarem equilibradas. Nessa altura já caçava pássaros. Quando eu já vivera tantas primaveras quantos os dedos de ambas as mãos, ensinou-me a preparar uma lançadeira, escavando a ponta de modo a que a cauda da azagaia lá fique bem apoiada e possa ser arremessada com força, quando o braço descreve um arco veloz na manobra da lançadeira. Depois, veio a parte delicada de separar finas lâminas de um bloco de sílex, com pancadas precisas, para usar como cortadores vários e pontas de lança. Finalmente, as artes da caça grossa e os seus perigos. É um trabalho conjunto que o meu pai liderava e que implica manobras de separação de dois ou três animais da manada e uma perfeita coordenação, para que eles, assustados pela algazarra dos caçadores, corram espavoridos e se precipitem num barranco ou num fosso preparado com antecedência. É um momento de grande alegria, em que agradecemos aos animais, com danças, por nos darem a sua carne. Depois, desmanchamo-los, trazemos os bocados para a aldeia, comemos o que queremos e pomos o resto na cabana do fumo.
Quando me sento sobre uma rocha a observar uma manada a pastar no vale, com a montanha branca em fundo, sinto uma enorme gratidão ao Grande Pai Sol, à Grande Mãe Terra, e aos seus filhos animais que nos dão a força da vida. A cada primavera, chegam os cavalos e os auroques, vindos do lado do sol. Quando as folhas começam a cair, vão-se embora, e regressam as renas e os bisontes das terras geladas. Sempre assim foi e sempre assim será.
Certa vez, quando eu era novo, já os ventos havia muito sopravam glaciais no vale vazio, o meu pai temeu que não houvesse mais bisontes. Consultou o xamã e decidiram fecundar a Terra para que nascessem novos bisontes.
O xamã tem muita magia. Se uma mulher não emprenha, ele esculpe uma pequena estatueta feminina de ventre pejado e seios repletos, em madeira ou em pedra, e coloca-a na cabana dela, enquanto executa danças e cantos propiciatórios. Quase sempre o ventre da mulher acaba por crescer, como o da estatueta.
O meu pai levou-me com eles. Na primeira noite, como o abrigo na rocha, que o xamã tinha previsto, estava ocupado por um grande urso, tivemos de dormir em cima de uma árvore. Foi a noite mais difícil da minha vida. O frio era intenso e eu temia que, adormecido, tombasse da árvore. Demorámos três sóis a chegar à grande vulva da Terra, na base do ventre de uma montanha. Dela, saía um riacho de águas frias. Penetrámos junto à margem e fomos avançando para o interior, com a ajuda de um archote. Andámos por largo tempo, tentando chegar ao mais fundo da montanha, receosos do que nos pudesse acontecer. Finalmente, chegámos a um grande espaço, como se fosse uma enorme cabana de pedra, de teto baixo e quase plano, e que não tinha mais nenhuma ramificação. O xamã concluiu que tínhamos chegado ao útero da Terra. Então, abriu os surrões onde trazia terra vermelha, terra amarela, cinza de osso, e cornos cheios de gordura de bisonte, e começou a misturar as terras e a cinza com a gordura, fazendo mistelas coloridas. Depois, queimou ervas especiais que trazia e começou a dançar, enquanto inalava o fumo inspirador, até que se quedou, de costas no chão, mirando alucinado o teto da grande cabana de rocha. Algum tempo depois, começou a pintar dois bisontes, aproveitando as saliências da rocha para fazer sobressair os bojos dos ventres e as massas musculares. Usava a mistura negra para fazer os contornos dos animais. Fazia-o com toda a atenção, avaliando se cada traço correspondia ao desenho geral que o espírito da Grande Mãe lhe sugeria. Pintava sem pressa, porque o tempo tinha parado. De quando em quando, comíamos carne seca. Eu entretinha-me a admirar a magia do xamã, que fazia nascer e crescer os bisontes, e a imitá-lo. Lembro-me de espalhar um resto de vermelho em volta da minha mão, que ficou marcada contra a parede de rocha. Por fim, os bisontes pintados estavam vivos e moviam-se de acordo com a luz oscilante do archote. A Terra estava fecundada.
Voltámos, seguindo as nossas anteriores pegadas. Quando saímos da grande vulva da montanha, o Sol ia alto, e parecia sorrir para nós. Olhámos o vale e ficámos extasiados: uma enorme manada de bisontes pastava calmamente, iluminada pelos raios vibrantes de luz. Nunca um vale me pareceu tão bonito. Erguemos os braços, gritando o nosso louvor ao Grande Pai Sol e à Grande Mãe Terra. Nesse momento, confirmei a eficácia da magia do xamã e o poder das forças que nos protegem.
Isso foi há muito tempo. Nessa altura considerava o meu pai o chefe mais forte e sábio. Depois, houve períodos de pouca caça que, além disso, era disputada por outras aldeias que iam proliferando. As caçadas eram fracas. Passámos a viver quase só de frutos, raízes, ovos, bivalves e algum peixe. O meu pai parecia resignado e enredava-se na tristeza. As mais velhas das minhas irmãs foram-se mudando quase todas para outras aldeias. Até os meus irmãos, que se juntavam com raparigas na grande festa das tribos da primavera, partiam com elas, em vez de as trazerem para a nossa aldeia, que estava a ficar perigosamente pequena. Eu fui dos poucos que decidiram voltar, quando escolhi Mejila, uma filha do chefe do clã dos Garranin, para minha companheira.
Nessa altura, como mais velho, interpelei o meu pai e comuniquei-lhe a minha preocupação, que era também a dos outros, e a minha intenção de assumir a chefia da aldeia. Usei palavras, talvez demasiado duras, fazendo-o ver que ele estava velho e que a aldeia precisava de uma liderança forte, como outrora fora a sua. Ouviu-me com atenção e um pouco de tristeza no olhar. Falou-me com muita serenidade, medindo bem as palavras. Disse que não era fácil assistir às dificuldades dos que dele dependiam e que, na verdade, há muito ansiava que eu revelasse maturidade e manifestasse a decisão de guiar a aldeia, pois só deve liderar o povo quem sente esse imperativo.
Reuniu-nos todos em frente à sua cabana, olhou-nos longamente, com grande bondade no olhar, e disse que era o momento de dar lugar a outro chefe. Afirmou a certeza de que eu seria o condutor que a aldeia precisava e entregou-me a Grande Lança dos Mamutin. Nenhum apelo conseguiu demovê-lo da decisão que tomara: partir. A perspetiva parecia animar-lhe tanto o espírito, como as caçadas de outrora. Embrulhou-se na sua pele de bisonte, recomendou que respeitássemos sempre o bisonte e o cavalo, e partiu com os olhos cheios de infinito. Todo o povo ficou em silêncio a vê-lo afastar-se. Nesse momento, vivi a minha segunda orfandade. 

Joaquim Bispo
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Imagem: Cavalo e Caprídeos, gravuras rupestres do Parque Arqueológico do Vale do Côa com cerca de 25 mil a 28 mil anos.

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