10/02/2018

Carta de Paris


Meu querido Amadeo, 
Sei que estás em Manhufe, a fugir da guerra. Escrevo-te esta carta depois de me terem falado do quadro que pintaste e não intitulaste, mas a que todos chamam “Coty”. Acertaram. Conheço-te bem; sei que mascaraste a minha identidade com a marca desse perfume que sempre uso.
Podes achar que ninguém vai reparar, mas há pessoas que me conhecem e vão perceber tudo e as intimidades que tínhamos. Não devias ter feito isso. As pessoas vão ver os insetos pousados nas pétalas rosadas e vão perceber, vão ver os ganchos de cabelo e vão perceber. Escusavas de ter posto as tulipas. Só não vê quem não quer. Olha que eu não sou dessas!
Era bem preferível ficares-te pelos seios e pelas pernas. Disso está a pintura francesa cheia. Não há Ingres, nem Renoir, nem Toulouse-Lautrec que não exponha a nudez das modelos e amantes. Ninguém me vai reconhecer por aí. Agora, os frascos de perfume, as cartas de jogar… Há quem saiba as habilidades que faço com elas. Por isso te escrevo.
Continuo a preferir a discrição de casa, aos grandes salões. Nisso não mudei. Até nas grades da janela me identificas. Mas me associas a uma planta carnívora. O que torna ainda mais perversa a imagem que dás de mim. Fiquei irritada, mesmo magoada. Eu não te merecia isto.
Também sei que casaste. Espero que sejas feliz aí nesse teu Portugal. Bem vi nos teus quadros que não esqueceste nunca os potes, as bilhas e outras vasilhas de feira. Tonto!
Quando acabar a guerra, vem visitar-me. Quero mostrar-te a minha nova carpete. É florida. Vais gostar dela, tanto como daquela dos quadrados. Mas não é para depois me pintares coberta de cravos e margaridas e gladíolos, que eu não sou dessas. Maroto!
Beijo da tua,
"Coty"
Joaquim Bispo

Imagem: Amadeo de Souza-Cardoso, Título desconhecido (Coty), 1917.

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10/01/2018

Os números de Lucas


Ao José Espírito Santo, que me deu a conhecer “Os números de Lucas”
Quando Édouard Lucas, no século XIX, elaborou a sequência numérica que é conhecida como “Os números de Lucas”, poderia ter imaginado também o seguinte episódio, porque não lhe eram estranhos Fibonacci nem os outros protagonistas que, ao longo dos séculos, estudaram as relações numéricas e o inexplicável eflúvio de beleza que algumas emanam, sobretudo a chamada “Divina proporção” ou “Número de ouro”.
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Florença, ano de 1492. Enquanto Fra Domenico não chegava, Tommaso da Fiesole, acompanhado do seu aprendiz, Filippo, aproveitava o tempo na contemplação da Trindade pintada na parede interior da igreja de Sta. Maria Novella. Gostava da sua profissão de arquiteto, que não era fácil, mas admirava a capacidade dos pintores de transmitirem para um plano a ilusão das três dimensões, como Masaccio conseguira neste fresco.
O Senhor esteja consigo, senhor Tommaso! — Era o frade, no seu hábito preto e branco. Com ele vinha um noviço.
Como tendes passado, meu irmão? — respondeu, com um sorriso de ternura.
Tommaso sentia sempre alguma estranheza quando cumprimentava o seu conterrâneo e primo por «meu irmão». Tinham sido companheiros de brincadeira, mas cada um seguira o seu caminho — Domenico ingressara no convento de S. Marcos de Florença, e ele tinha feito o percurso dos aprendizes de artes mecânicas até atingir o atual estatuto.
Ouvi dizer que estais a trabalhar para um sobrinho do senhor Lourenço de Médici.
Sim, o senhor Ludovico. Saiamos! É mesmo por causa desse projeto que pedi para vos falar. Sei que vos tendes interessado pelo estudo das formas e das relações entre as suas dimensões. Eu, na minha profissão, não posso ignorar o valor exato da secção áurea, para a aplicar aos edifícios, ou não fosse essa relação tão agradável aos sentidos. E sei como, há muito tempo, o grande Fibonacci demonstrou a sua génese, de maneira tão compreensível. — Fez uma pausa a avaliar se Domenico queria responder.
Sim — assentiu o frade —, partindo dos dois primeiros números, somava-os para obter um terceiro — o 3 — e, para obter o quarto número da sequência, somava os dois anteriores e obtinha o 5. — O frade aproveitava para ilustrar o seu pupilo. — E assim sucessivamente. Obtinha uma sequência que começava por 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. Parece uma brincadeira para obter o interesse de meninos na aritmética, mas a divisão de um número pelo anterior dá o valor da secção áurea ou divina, em que o valor mais pequeno — 5 pés da secção de uma parede, por exemplo —, está para a secção maior — 8 pés —, como esta está para a largura total da parede.
O grupo afastava-se do bulício que envolvia a igreja e dirigia-se para o Duomo, através das ruas estreitas bordejadas de vendas, tabernas e oficinas de artífices.
Ora, essa sequência levanta-me um problema — continuou Tommaso. — Tenho uma igreja para projetar para o meu senhor. As dimensões relativas das fachadas estão decididas. Mas os tamanhos não são tudo. Os elementos que as integram, pela sua forte individualidade, ganham uma força que é preciso ponderar. A fachada lateral, por exemplo, vai ter uma série de arcos monumentais a mascarar a parede da nave. A linha horizontal, que os capitéis das colunas geram, divide a fachada de tal modo que a distância do chão ao topo dos capitéis é exatamente 1,618 vezes maior que do topo dos capitéis à linha do telhado. Está, portanto, de acordo com a secção de ouro: a distância mais estreita está para a mais larga, como esta está para o total, do chão ao telhado. — Parou novamente, desta vez para respirar.
Havia alguma tensão na cidade, porque Lourenço, o magnífico, o patriarca da família mais poderosa de Florença, estava doente e Savonarola, o prior de S. Marcos, não cessava de clamar contra o luxo e o paganismo da sua corte.
Então, o que vos preocupa? — perguntou o frade.
O número de arcos que devo projetar. A relação dourada é obtida com números inteiros. Se ponho oito arcos no lado, deveria pôr cinco portas na fachada principal, o que é muito. Para pôr três portas, deveria pôr só cinco arcos, para respeitar a sequência de Fibonacci, mas ficariam demasiado largos. — Agora o sobrolho de Tommaso mostrava-se carregado de preocupação.
Ponde sete arcos no lado.
Tommaso parou e olhou diretamente para Fra Domenico, tentando descortinar algum sorriso. Mas o rosto do frade estava compenetrado.
Mas 7 não faz parte da sequência!
Não faz da de Fibonacci, mas faz da do Senhor. Há milhares de sequências. Quaisquer dois números a que aplicardes essa regra da soma sucessiva, dá sempre o mesmo valor de 1,618, a partir, aí, da décima soma. Todas apontam para esse número sagrado, mas a sequência 1, 3, 4, 7, 11, etc. faz parte das Escrituras. Há 1 só Deus, em 3 pessoas distintas, a cruz tem 4 braços, as virtudes são 7, os apóstolos fiéis são 11.
Meu irmão, a sequência 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. está em toda a parte: no crescimento das plantas e dos animais, no corpo humano. Sabeis que a relação entre a falange e a falanginha é dourada, assim como a relação entre esta e a falangeta?
Sim, sei, Deus fala por muitas vias.
Passavam agora por S. Lourenço, a igreja da família Médici. O templo estava cheio e cá fora havia uma pequena multidão a conversar em grupos. O governante estava muito mal, dizia-se.
Há muito tempo que os Homens se aperceberam dessa relação, sob a qual as formas transmitem um aspeto completo, perfeito — prosseguiu Tommaso. — Pitágoras descobriu-a no seu pentagrama, Vitrúvio aplicou-a aos edifícios dos Romanos, Leonardo encontrou-a no corpo humano. O nosso Piero della Francesca é exímio a aplicá-la nas suas pinturas. Por isso, elas nos parecem tão perfeitamente equilibradas. Conheceriam estes homens a sequência desses vossos números?
Meus, não! Mas estou certo que um dia alguém lhes dará o nome de um sábio.
Custa-me muito aceitar que possa ser perfeita uma sequência que não tem o 2, o número do casal, a base da sociedade dos Homens.
Pode ter, se quiserdes. Tem o seu lugar de direito, mesmo na origem, antes do 1.
Tommaso olhou para cima, pensativo. Via-se que ficara impressionado.
Antes do 1?! Sabeis o que pensa o vosso prior sobre estes assuntos?
A crítica dele não atinge especificamente questões estéticas, mas não vê com bons olhos a aproximação cada vez maior que a corte e os artistas, que para ela trabalham, vão fazendo aos textos pagãos dos antigos e à sua licenciosidade.
Dizei-me, então, Fra Domenico, sete arcos na lateral era uma boa solução, mas como ficaria a frontaria? Não pode ficar com quatro portas, precisa de uma central.
Como bem dissestes, a individualidade dos elementos é um fator muito forte de visibilidade. Mantende a simetria das três portas, mas fazei sobressair elementos que as enquadrem, colunas volumosas, por exemplo. Reparai que seriam quatro colunas — o 4 de que precisais.
Interessante, irmão Domenico! — Parou, pensativo. Os seus olhos baixos moviam-se à esquerda e à direita. — Tenho que alterar o projeto. Acho que já sei como vou fazer.
Estavam a chegar a Santa Maria dei Fiore. Já se ouvia a vozearia habitual. De repente, da esquerda, do palácio Médici, elevaram-se gritos, vários, intensos, angustiados:
Morreu o senhor Lourenço! Morreu o senhor Lourenço! Deus tenha piedade de nós!
O grupo de Tommaso da Fiesole olhou-se inquieto. Depois, despediram-se rapidamente:
Adeus, meu irmão. O vosso conselho é precioso; mas não sei se poderá ser concretizado, com os tempos que se avizinham. Temo que o filho de Lourenço não consiga resistir a Savonarola.
Aqui para nós, senhor Tommaso, até eu! Que Deus vos acompanhe!

Joaquim Bispo

Imagem: O Homem Vitruviano e a Série de Fibonacci.


(Este conto foi publicado no número 35 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2013.) 
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10/12/2017

Com a Melhor das Intenções


— Eh, pá, não tenho dúvidas; é um desses mails moralistas a puxar ao sentimento, mas mesmo tocante — dizia Barbosa ao seu colega de secção, no regresso do almoço, pelos corredores da Judiciária. — A história é, mais ou menos, assim: na Alemanha do século XV, havia uma família numerosa e pobre, cujo pai tinha de trabalhar dezoito horas diárias nas minas de carvão para alimentar tanta gente. Dois dos filhos queriam ser artistas, mas como? Combinaram que um trabalharia nas minas, para pagar os estudos de pintura do outro, e depois trocariam. Assim fizeram. No regresso da academia, o primeiro, já formado, quis honrar o combinado, mas o irmão disse que era demasiado tarde; que os quatro anos de trabalho nas minas lhe tinham destruído as mãos para a pintura. Então, o pintor desenhou as mãos calosas do irmão, como homenagem. Aí, o mail apresenta o desenho realista de umas mãos todas cheias de rugosidades.
Manda-me isso — concluiu Magalhães, interessado. — Sempre quero ver se é melhor que os poucos que leio. A maioria, nem abro, quando percebo que é pieguice.

Pouco depois, o inspetor Magalhães fechava a página do eBay, onde, de manhã, estivera a pesquisar leilões de azulejos portugueses, e leu o texto do extenso e-mail que emocionara Barbosa, e que vinha acompanhado de umas mãos-postas desenhadas por Durer. Terminava com uma máxima: «quando você se sentir demasiado orgulhoso do que faz e muito seguro de si mesmo, lembre-se de que, na vida, ninguém triunfa sozinho!»
Uou! É potente! Não sabia que o Durer era tão pobre.
Esta máxima final parece feita de propósito para nós, não achas?
Mas, sabes — prosseguiu Magalhães, cofiando a pera — há aqui qualquer coisa que não bate certo. A história puxa muito ao choradinho. Há muita miseriazinha, muita entreajuda cristã, uma grande lição de moral no fim... E as mãos não me parecem as manápulas robustas de dedos grossos de quem trabalhasse numa mina. Os dedos são tão compridos e esguios como os de um desocupado.
Tens razão! Vamos ver de onde é que isto vem.
Olha, “Durer mãos” no Google dá-me vinte mil resultados. É muito.
Com a primeira frase dá novecentos. Isto está bem espalhado!
O melhor é procurar na Wikipédia — racionalizava Magalhães.
Está aqui um site em que o pai de família trabalha dezoito horas, mas no ofício de ourives. E tem dezoito filhos. Caramba!
E tem razão. A Wiki diz que o pai de Durer teve dezoito filhos e era ourives.
Escuta este: «Após uma demorada e memorável refeição, recheada de música e alegria, Albrecht ergueu-se do seu lugar de honra» — tal, tal… — «“agora, Albert, meu bendito irmão, agora é a tua vez. Agora podes ir para Nuremberg realizar o teu sonho, e eu cuidarei de ti.”» — recitava Barbosa, rindo. — Escuta a descrição do irmão: «Lágrimas corriam pela sua face pálida, enquanto agitava para ambos os lados a sua cabeça curvada, e em soluços repetia várias vezes “Não ... não ... não ... não.”»
Que lamechas, esse imaginativo aspirante a escritor! — respondeu Magalhães, e prosseguiu no relato da sua pesquisa: — Parece que a família Durer vivia em Nuremberga, desafogadamente, e não numa aldeia próxima e miseravelmente. Ah, cá está! O jovem Albrecht foi colocado aos quinze anos como aprendiz na oficina do gravador Michael Wolgemut, dado o seu gosto pelo desenho. Pois! — reconfortava-se Magalhães — do que me lembro das aulas de História da Arte medieval e renascentista, as artes plásticas não se aprendiam nas universidades, mas sim em oficinas de mestres do oficio. Eram artes menores, manuais.
Agora já não é o irmão Albert, mas um companheiro… Franz Knigstein. — zombava Barbosa de um dos sites por onde estava a navegar. — «Um companheiro seu, também muito pobre, o ajudou. Os dois iam à igreja, participavam da Ceia do Senhor, e o companheiro de Durer cultivava uma equilibrada vida de oração.» Este site puxa para a Igreja. Pudera! Faculdade teológica… «Um dia, Albrecht encontrou Franz de joelhos, com as suas mãos postas em atitude de oração, ásperas, no entanto, oferecidas a Deus em amoroso sacrifício, orando para que ele, Albrecht, tivesse pleno êxito na carreira de pintor.» — Ah, ah, ah! — «Prontamente, Durer desenhou o momento e produziu um símbolo do significado da oração. Desde então, a oração intercessora, simbolizada por aquela atitude faz-nos lembrar que a oração e a amizade correm juntas. A pessoa a Quem oramos teve Suas mãos atravessadas pelos cravos em nosso favor.»
Para com isso, Barbosa!
«Mãos tortas e calejadas, de pele ressecada, mas apontando para o céu, em atitude de súplica.» — descobria Barbosa.
Para com essas baboseiras! Escuta, há aqui informação séria, apoiada em escritos dele. «Durer elaborava infindáveis estudos de mãos, cabeças, objetos domésticos, plantas e animais: “O mínimo detalhe deve ser realizado o mais habilmente possível”, dizia, “nem as menores rugas e pregas devem ser omitidas.”»
Só mais este — deliciava-se Barbosa. — «Eles trabalhavam juntos numa oficina de escultura em madeira; um deles fez as malas, se despediu e foi para Viena/Áustria; o outro começou a trabalhar numa ferraria. Não demorou muito, as mãos finas e sensíveis se tornaram grossas e cheias de calos.»
Gaita, que esse pessoal não se limita a copiar. Quantas versões já encontraste?
Sei lá! «E cuidou do amigo, que não precisou mais trabalhar na ferraria.
Esta é uma história de quatro mãos, de dois amigos que oravam um pelo outro, e de um artista reconhecido graças a uma forte amizade. “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente. Ame os outros como você ama a você mesmo.”» — Colégio evangélico.
Há gente que não se importa de inventar e deturpar tudo para puxar a brasa à sua sardinha. Sacanas de falsários! Neste caso, fanáticos com as melhores intenções catequéticas.
«1490». «Os dois amigos viviam na mesma pensão». «Não, eu sou mais velho e já tenho emprego no restaurante.», dizia o amigo. Já viste estes, Magalhães?: restaurante! — ria-se Barbosa, virando o nariz avantajado para o colega da secção de Furto de obras de Arte, da Judiciária.
Diz aqui que as mãos foram desenhadas em 1508, como desenho preparatório da figura de um apóstolo para um altar.
«Suas mãos rígidas, endurecidas, articulações grossas e dedos torcidos pela labuta diária durante tanto tempo, impediam o suave manejo dos pincéis.» — continuava Barbosa, imparável. — Mas olha, este site tem comentários. Ouve o que diz quem comenta estas balelas: «A beleza das mãos calejadas de Durer toca-me profundamente a alma. São mãos que trabalharam por amor e com abnegação por toda uma vida. São mãos que carregaram peso, tocaram muitas vezes a água...» Água?; onde é que esta viu a água!? Outra: «Essas são, sem dúvida, “mãos de sol”, mãos iluminadas de uma pessoa idem, que teve a humildade de se sacrificar em prol do irmão.»
Será que ninguém repara que não são mãos de trabalho? — irritava-se Magalhães, fazendo tremer as bochechas arredondadas. — São escuras porque têm as sombras todas marcadas e são rugosas como as mãos de qualquer pessoa, se forem desenhadas meticulosamente.
Só encontrei um a falar em «dedos emagrecidos». Ah! Finalmente o comentário de alguém que agarra a tarefa de desmistificar a trapaça: «Gostaria de informar que li diversas biografias do pintor renascentista alemão Albrecht Durer, escritas por estudiosos como Moriz Thausing, Erwin Panofsky, Ernst Rebel, Matthias Mende, entre outros, e em nenhum deles encontrei qualquer menção aos fatos citados.» Temos uma justiceira, Magalhães — alegrou-se Barbosa, batendo palmas. — É uma tal Constanze de Curitiba. Grande mulher! Ou será homem? «O pai de Albrecht Durer, assim como seu avô, era ourives de profissão, uma das profissões mais reconhecidas na Idade Média. Húngaro de nascimento, mudou-se para a cidade de Nuremberg, onde mais tarde casaria com Barbara, com quem teve 18 filhos. Desses, apenas 3 sobreviveram, o próprio Albrecht Durer (1471-1528), Endres (1484-1555) e Hans (1490- ?), este também artista. Quando Albrecht Durer tinha 4 anos de idade, seu pai, já um renomado ourives, comprou sua casa própria em Nuremberg, onde o artista cresceu e viveu durante 30 anos. Como fonte destas informações os autores citam uma “Crônica Familiar”, espécie de diário que Albrecht Durer manteve durante sua vida. O quadro citado, “Mãos que Oram” — “Betende Hände” — foi desenhado a pincel em 1508, sobre papel azul, e trata de um esboço/estudo de mãos para uma figura de apóstolo para o painel central de um altar encomendado por Jakob Heller para a igreja dominicana em Frankfurt. O painel foi destruído num incêndio por volta de 1729, mas cerca de 20 esboços preliminares ficaram preservados, dentre eles, este citado tornou-se um dos quadros mais famosos de Albrecht Durer. Trata-se, certamente, de uma brincadeira que circula livremente pela Internet, sem o cuidado de verificar sua autenticidade.»
É isso mesmo! — entusiasmou-se Magalhães. — Pesquisei «altar Heller», e olha o que descobri. Chega aqui!
Barbosa aproximou-se da mesa de trabalho do amigo e ambos observaram, reconfortados, a imagem de um grande retábulo em cujo painel central estava pintado um conjunto de apóstolos assistindo à ascensão da Virgem, um dos quais tinha as mãos postas tal qual as do esboço que os tinha intrigado na última hora e meia.
Datado de 1508. Nesta altura tinha Durer… 37 anos — calculava Magalhães.
Mas, o altar não tinha ardido?
Diz aqui que é uma cópia feita por um outro pintor, em 1614.
Sabes o que eu senti? Um grande repúdio pela tacanhez desta gente para quem umas mãos, só por estarem pintadas em escuro, têm de estar encardidas de carvão, e por estarem minuciosamente desenhadas, com todos os volumes, todas as rugas, têm de estar calejadas e deformadas. E uma grande indignação por utilizarem a mentira e a falsificação para atingirem o coração crédulo das pessoas. Por outro lado, fiquei muito agradado que tivesse havido alguém a dar-se ao trabalho de esclarecer estes ataques à verdade histórica. Se calhar, devia haver uma entidade, uma organização não-governamental, engajada com a divulgação do conhecimento, que tomasse por missão desmascarar esta gente que espalha a aldrabice pela Internet, como quem espalha o vírus duma doença epidémica.
Vamos à biblioteca, que quero tirar isto bem a limpo.
Pouco depois, confirmavam quase tudo o que «a justiceira» dissera. E ficaram a saber, também, que o desenho das mãos postas está no museu Galeria Albertina, em Viena.
Mais um caso resolvido — gracejou Magalhães. — Vamos lanchar?
Antes que o parceiro pudesse responder, tocou o telefone. Era o inspetor-chefe a distribuir serviço: «Roubaram mais um painel de azulejos do século XVII, num palacete do Lumiar. Passem aqui a buscar a documentação».

Joaquim Bispo

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Imagem: Albrecht Dürer, Mãos em Oração [também conhecido como Estudo das Mãos de um Apóstolo], Desenho [realce de branco e tinta negra sobre papel azul], 29.1 x 19.7 cm, c. 1508.
Galeria Albertina, Viena.

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10/11/2017

Dia do Juízo Final


(Manuscrito encontrado na gaveta de um aspirante a humorista)

Olá, caras amigas, amigos! Acabei de chegar do Juízo Final, e ainda estou meio deslumbrado. Por isso, desculpem alguma inconveniência que eu diga. A propósito, não vos vi lá! Deixem-me adivinhar: nem foram convidados… Não fiquem aborrecidos — continuem a enviar currículos. Mas devem querer saber como decorreu esta edição outono-inverno do Juízo Final. Eu conto:

O Juízo Final estava marcado para 12/12/12, não só para dar tempo de se acabar o Mundo a 21, conforme profetizado, mas também porque Deus gosta destas datas com números repetidos, para não se esquecer. Mesmo assim, deixou passar o especialíssimo dia 11/11/1111. Parece que nessa altura andava distraído a desenvolver a peste negra, que foi um sucesso algum tempo depois. Já em 8/8/1888, a razão do esquecimento foi a azáfama de tentar convencer toda a gente de que Ele é que tinha criado a Evolução.

Desta vez, cumpriu-se a escritura. O cenário, faustosamente iluminado, deslumbrava: em círculos envolvendo a cadeira d’Ele, legiões de anjos, querubins, serafins e arcanjos perfilavam-se em “ombro arma”. Mais abaixo, santos de todas as maleitas e clérigos de todas as patentes esperavam pacientemente a prometida honraria de entrada no Céu, ao som de fanfarras. Por fim, multidões incontáveis entretinham-se a cochichar ou esticavam o pescoço, ao reconhecer esta ou aquela celebridade que só conheciam do catecismo. A entrada de Maria Madalena provocou mesmo uma enorme ovação e alguns assobios de apreço. A chegada conjunta da irmã Lúcia e da madre Teresa de Calcutá suscitou o primeiro “Misericórdia!” da noite.

Os pagãos estavam visivelmente fora do seu meio e olhavam repetidamente para o relógio, temendo perder o último transporte para casa.

Finalmente, aí pelas dez e meia, ouviram-se trombetas estridentes e a voz cavernosa do Diabo anunciou: «Sua Omnipotência: Deus!» Este entrou arrastando os pés sob uma túnica fora de estação, seguido pelo Filho com ar cabisbaixo, e sentou-se de cenho carregado. O Diabo fez-se ouvir pela segunda vez: «Está aberta a sessão.»

Como era evidente, julgar todos os presentes, um a um, seria tarefa para milénios; isto falando em julgamento justo, com concessão de todos os direitos de defesa aos réus. Para evitar o arrastamento do julgamento e previsíveis recursos para o Supremo, Deus anunciou que a sessão seria única e inapelável. Conforme decretado, assim aconteceu: não houve defesa, ninguém pôde justificar-se e as sentenças foram coletivas.

Com ar zangado, Deus começou: «Aí em baixo, toda essa caterva de beatos, místicos, ascetas, e todos esses padres, freiras e mulás vestidos de preto, ou de branco, e todos esses bispos e cardeais de vermelho, vão para a reciclagem — fundir e voltar a moldar. Motivos? Não Me ouvistes dizer “Crescei, multiplicai-vos e povoai a Terra”? E o que fizestes vós?: abstinência, temperança, mortificação da carne, e outras parvoíces. Diabo, toma nota: reciclagem!»
De todos os pontos desse enorme grupo, ergueram-se pedidos de clemência e protestos de inocência: «Desse crime não posso ser acusado. Estão aí os meus filhos para o provar.» Ou: «Eu era o melhor cliente do bordel da cidade». Ou ainda: «Eu não tenho culpa de que as crianças não engravidem!».

A seguir, disse Deus: «Todos os médicos aqui presentes, veterinários, caçadores, desinfestantes, pasteurizadores, farmacêuticos e todos os utilizadores de químicos mortais, em geral: reciclagem! Não andei seis dias a puxar pela cabeça, para criar milhares de espécies diferentes, e depois virem uns racistas e matarem metade da Criação. Diabo, toma nota: reciclagem!»

Depois: «Budistas, maometanos, cristãos, jeovistas, animistas, jupiterianos, mitómanos em geral e outros crentes em milagres — reciclagem! Não conheço gente mais ignorante do funcionamento da Natureza.»
«Diabo, como são quase os mesmos, junta-lhes os que estão sempre a cantar louvores e a azucrinar-Me os ouvidos com rezas, e os pedintes de favores em geral. Põe-nos dez mil anos a atender pedidos num call center; a ver se começam a ter uma ideia de Inferno!»

«Mais: automobilistas, gestores de indústrias, criadores de vacas e outros produtores de gases geradores de efeito de estufa: reciclagem! Diabo, altera-lhes o design oficial para líquenes. Detesto que decidam os dilúvios por Mim!»

A sessão ainda se estendeu por mais um par de horas, até que Deus, visivelmente cansado, adormeceu. O Diabo deu, então, uma sonora marretada na moleirinha de um querubim, anunciando: «A audiência deste tribunal fica suspensa. Recomeça assim que algum amigo meu tencione carregar no botão do Apocalipse. À mesma hora.»

Um indescritível clamor de protesto pelo tempo perdido não se fez esperar e milhões de vozes alteradas exigiram que os Juízos Finais sejam privatizados. Seguiu-se um engarrafamento infernal que durou quase cinco anos. Foi por isso que só cheguei agora.

Joaquim Bispo

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Imagem: Giorgio Vasari e Federico Zuccari, Juízo Final, afresco, Interior da cúpula de Santa Maria dei Fiore, Florença, séc. XVI.

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10/10/2017

A Carta Anónima


Pouco antes do Natal, ao levantar-se, Otávio deparou com a seguinte mensagem, colada na porta, escrita com palavras recortadas de jornais e coladas num pedaço de papel: «/ milhões / anjinhos / visitaram / chefe / guitarra / servida / niquinhos /».

Incompreensível como parecia, não lhe ligou grande importância. De qualquer modo, telefonou à mulher. Não tinha visto nada, quando saíra. Teria sido, com certeza, composta por algum grupo de miúdos desocupados tentando divertir-se à custa dum vizinho. Espreitou pela janela do quarto a ver se descortinava os malandrinhos alapados por detrás de algum arbusto. Ninguém. Atravessou o corredor e espreitou pela janela da sala. A rua estava deserta, ou antes, com os esporádicos passantes habituais. Nem sombra dos catraios.

Sentou-se no sofá e atentou melhor naquele conjunto de palavras alinhadas no papel. Seria algo para levar a sério? Hum! Parecia tão desconexo, sobretudo a parte final.
De repente, um sobressalto. Pareceu-lhe detetar uma ameaça; velada, mas grave. “Anjinhos” remetia abertamente para a outra vida, ou antes, a morte. E a sua guitarra escavacada e servida em niquinhos pareceu-lhe uma ameaça típica da Máfia.
Sentiu-se empalidecer.

O tempo do verbo na primeira frase — “visitaram” — fez-lhe temer por uma intrusão já realizada. Levantou-se de um salto e vistoriou a casa. Tudo em ordem. Aparentemente. Espreitou para o quintal. Rex, o cachorro, também estava vivo e de boa saúde. Estava entretido a remexer a terra. Nada parecia indicar que alguém tivesse entrado enquanto dormia. Aliás, Rex teria dado sinal.

Parou a admirar o seu dinamismo. Havia alguma coisa de estranho na maneira como se movimentava. Talvez a sua atitude furtiva. Observou-o melhor.
Foi então que percebeu que a azáfama em que estava empenhado tinha por objetivo enterrar vários pedaços de jornal, uma tesoura e um tubo de cola!

Joaquim Bispo

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Imagem: Cruzeiro Seixas (1920– ), Galopando no sonho, escultura em bronze.

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10/09/2017

O papa-jornais


Na minha rua existe uma personagem singular — um devorador de jornais. Traga todos os que encontra, quer os que são abandonados nas mesas dos cafés, quer os que o vento empurra rua afora. Uma vez por outra, já o vi até debruçado pela abertura do Papelão.

Como seria de esperar, está sempre bem informado, quer das notícias do dia, quer das anteriores, que já todos esqueceram. As conversas que mantém à tarde parecem o noticiário da rádio local, no dia da folga do jornalista. As da manhã, também. Por uma razão ou por outra, é objeto de veladas animosidades, fundadas na bizarria que o caracteriza.

A mulher que salga sempre a comida inveja-lhe a memória. O rapaz que sonha com pescarias no tanque do fontanário diz que ele assusta os peixes com o ruído que faz a mastigar. As primas que plantam jacintos nos charcos da calçada criticam-lhe a voracidade. O oriental, de cujo livro de folhas perenes se escapam, por vezes, pétalas coloridas, olha-o com desconfiança.

Todas estas queixas recorrentes desapareceram há dias, repentinamente, como que por influência dos astros. Quando saí de casa para comprar as pevides de melão matinais, as conversas esvoaçavam à volta do papa-jornais. Todos gorjeavam a utilidade da sua preferência gastronómica para o asseio do bairro, e sugeriam que esta figura grada da terra devia dar nome a um dos camiões do lixo. E lamentavam-no com lágrimas sem sal e meias-de-leite. O que o vitimou — aventavam —, teria sido a sua sofreguidão por notícias e uma indigestão há muito esperada. Ou a deglutição imprudente de um tablet ou outra similar engenhoca eletrónica. Por mim, suspeito mais da toxicidade das notícias falsas. E das deturpadas.

Joaquim Bispo

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Imagem: Hugó Scheiber, Lendo Notícias no Banco, [antes de 1950].

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10/08/2017

Um dia de sonho


O cão avançava pela rua inebriado pelos inúmeros cheiros que farejava: cadelas, cães, comida. A caminho do parque, o seu dono soltara-o da trela e dera-lhe liberdade total. E o cão corria antecipando os prazeres dos grandes espaços.
Era bom correr. Os membros gostavam da corrida. Corria em grandes saltos a caminho dos baldios para lá do bosque. E, aí, o labirinto dos matos, os gafanhotos, os ratos, os lagartos. Corria por entre os fenos, por trilhos onde só ele cabia. De surpresa, levantavam-se perdizes e fugiam coelhos e lebres. E o cão perseguia-os, delirante. Não era o instinto da caça, era o prazer da perseguição.
E chegou a uma grande clareira onde espinoteava uma dúzia de cachorros. Santa mãe cadela!
Ladrou de alegria; os outros deram-lhe as boas vindas, em latidos cristalinos. Voltearam em perseguições que alternavam com fugas. Dentes de fora em exibição festiva, na farsa do combate. Este era o seu dia mais feliz.
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Ladrou alto e então acordou. Deu por si confinado à varanda do seu dono, como sempre, e lá em baixo exibia-se, arrogante, o sinistro Rottweiller do bairro.

Joaquim Bispo

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Imagem: Ross B. Young (1955–), Pointer & Quail.

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