10/07/2017

O deserto de Atacama na minha cozinha



Há tempos, ao regressar de umas pequenas férias, deparei-me com um carreiro de formigas na cozinha e brigadas de exploração em vários outros pontos da casa. A minha mulher tratou de as atacar com vinagre e spray anti-insetos — método de destruição maciça, cujas evocações da guerra química me perturbam —, mas, apesar das inúmeras vítimas, a comunidade esfomeada não desapareceu completamente.

Uns quinze dias depois, encontrei o meu pacote de flocos de cereais com chocolate cheiinho de formigas, aonde chegavam por um carreiro de grosso caudal. Silenciosamente, sem pressa, deambulavam sobre os flocos e banqueteavam-se, suponho; não apurei se transportavam minúsculos pedaços da iguaria para a sua base, que imaginei na parede, por detrás dos azulejos.

Não tenho nojo das formigas nem das abelhas, como tenho das baratas ou das moscas. Não me passou pela cabeça deitar fora os flocos. Mas, como limpá-los? Passá-los por água estava fora de questão. Peneirá-los? As danadas não largariam tão facilmente o seu pedaço. Pô-los no micro-ondas também não era opção, porque além do desagrado de matar as bichas, ainda ficaria com uns flocos com um sabor um pouco picante, acredito. O ideal seria fazer com que abandonassem o pacote e não retornassem. Mas como?

Lembrei-me, então — baseado nos métodos de baixa intensidade dos camponeses para resguardar os seus produtos dos roedores, e mais como brincadeira de miúdo a descobrir as maravilhas do mundo animal, do que como experiência promissora de êxito —, de pendurar o pacote por uma longa e fina linha de costura, ao teto, sobre a mesa da cozinha. A ideia, sem grande esperança de sucesso, era que a necessidade de manter contacto com a base as obrigasse a procurar a saída e que, abandonando o local dos flocos, tivessem dificuldade em reencontrá-lo. Como efeito inesperado, o pacote começou a rodopiar, em resultado da destorção da linha, provocada pelo peso.

Não estou certo que esta rotação as incomodasse, mas, pouco depois, já algumas tinham encontrado a linha, que iam explorando, avançando um bocado, voltando atrás para transmitir informações, regressando à descoberta. Quando me fui deitar — umas três horas depois —, a linha estava carregadinha delas e várias já exploravam a vastidão desértica do teto liso. Na manhã seguinte, o pacote estava livre de formigas. O pacote e a casa. Nem uma. Desapareceram todas. E passaram-se meses sem voltar a vê-las.

Ao imaginar a pequena odisseia das formigas, obrigadas a trepar uma a uma, às escuras, por uma linha rodopiante interminável, para escapar ao isolamento forçado, surgiu-me naturalmente a comparação com a saída dos mineiros chilenos das profundezas da mina de cobre no deserto de Atacama, por um furo vertical de 700 metros, que então era notícia. As situações tinham muitos pontos de contacto. Pus-me mesmo a calcular até aonde chegava a similaridade. Na verdade, tendo a linha pouco mais de metro e vinte, e as formigas três milímetros, a relação tamanho do corpo / distância ao teto era semelhante à do resgate dos mineiros chilenos: 1/400. Bem, se calhar, arredondei um pouco as contas…

Por outro lado… Certamente que foi muito mais fácil e rápido para as formigas treparem, às escuras, por uma linha rodopiante até escaparem do pacote de flocos, do que os 33 mineiros chegarem à superfície 69 dias depois, encerrados um a um numa cápsula puxada do exterior. Mas, quando a subida acabou, as minorcas não tinham a comunicação social, nem o presidente das formigas à espera. Tiveram ainda de atravessar o “deserto de Atacama” do meu teto e descer pelas paredes até à saída deste mundo inóspito onde os deliciosos flocos de chocolate, de repente e imprevisivelmente, ficaram tão remotamente isolados como o fundo de uma mina de cobre no Chile.

Bem, calculo; eu não estava lá para ver…

Joaquim Bispo

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10/06/2017

O Ar do Tempo



Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem.”
Marinetti, Manifesto Futurista, 1909.

Arrastando a brevidade da nossa existência na lama do nosso pequeno mundo, esfrangalhamo-nos de impotência, de cada vez que a tragédia nos atinge. Como seria perfeito podermos voltar atrás e alterar o que correu mal: aquela brincadeira de adolescente que teve consequências funestas, aquela nossa palavra impensada que comprometeu a nossa vida profissional, o episódio que desencadeou uma guerra.
Um dos episódios singulares de consequências mais devastadoras da nossa História recente é o do atentado bem-sucedido contra o herdeiro do Império austro-húngaro, o arquiduque Francisco Fernando. Foi perpetrado na cidade de Sarajevo por um estudante de vinte anos, membro de um grupo nacionalista de inspiração sérvia, em 1914. Quase todos os historiadores estão de acordo que esse episódio desencadeou a Primeira Guerra Mundial, que levou à Segunda, que levou à Guerra-fria, que levou à hiperpotência única e a outros males correlatos.
Candidamente, podemos pensar que, se pudéssemos evitar esse atentado, o rumo do mundo teria sido muito diferente; não teríamos passado por aquelas guerras terríveis, e hoje teríamos paz. Evitá-lo seria o ideal, mas, para muita gente, entender o que correu mal já seria um avanço extraordinário, já forneceria um avo de esperança de evitar, no futuro, a sequência fatal de acontecimentos que leva ao horror.
Alguns filósofos admitem que, devido à extensão infinita do nosso universo, toda a nossa história está, também, a decorrer num número inimaginável de outros mundos, em incontáveis variantes que resultam de outras tantas pequenas variações de rumo. Assim sendo, a nossa mesma história poderia ser encontrada e observada numa das inúmeras fases já passadas ou futuras, como em cada versão do que podia ter sido.
A ideia é aliciante. Desgraçadamente, mesmo que seja verdadeira, falta aquele pormenor: conseguir viajar no tempo. Infelizmente, o tempo parece caminhar numa só direção. Todas as tentativas de viajar nele, se é que existiram, falharam.
A nossa única consolação é a ficção. Nela, temos exercido a liberdade de viajar no tempo, nos dois sentidos conhecidos, à velocidade que o autor decidiu. Caro leitor, aceite embarcar neste meio de transporte espaciotemporal e observe um pouco do ambiente que lançou a Europa e o Mundo na Primeira Guerra Mundial. Partamos!

Ao abrigo de um programa secreto, foi, há seis anos, enviado um explorador a um planeta dum aglomerado globular a 160 milhões de anos-luz de distância, onde se detetou que o atentado de Sarajevo não resultou. Pretendia-se perceber qual foi o pormenor que alterou o rumo da História e por quê, a fim de tentar evitar tragédias semelhantes, no futuro. Como esse explorador faz o favor de ser meu amigo, um dia contou-me o seguinte:
A minha missão era apenas seguir o estudante radical Gavrilo Princip e, como sombra, observar o que fazia, já que na Terra tinha sido ele a abater o arquiduque e a mulher. Nos dias anteriores ao atentado, reuniu-se várias vezes com os seus correligionários da “Mão Negra”, combinando posições ao longo do trajeto do alvo pelas ruas de Sarajevo e as armas que cada um iria utilizar. O grupo parecia animado por um ódio violento contra a recente anexação austro-húngara da sua Bósnia-Herzegovina, e falava frequentemente da congregação futura de todos os povos eslavos, desde os sérvios aos eslovacos, sob uma bandeira comum — o chamado pan-eslavismo. Até aqui, tudo como na Terra. O que me surpreendeu foi a realização de uma exposição de artistas futuristas na cidade, a ser visitada pelo arquiduque. O grupo infiltrara lá um elemento, como vigilante, o qual deveria detonar uma bomba escondida no interior da escultura mais representativa, quando Francisco Fernando estivesse a admirá-la.
Na antevéspera, Gavrilo acompanhou o amigo vigilante à exposição. A ideia era ajudar a distrair alguém presente, enquanto a bomba era instalada por outros dois elementos. Por coincidência, deambulava pelas salas um dos artistas — o depois famoso Umberto Boccioni. Gavrilo e o companheiro mostraram-se interessados nas obras expostas, e o artista gostou do ar radical e da postura revolucionária deles. Para ilustrar a atmosfera que se vivia na Europa, mesmo dentro dos movimentos artísticos, relato alguns dos diálogos mantidos pelo pequeno grupo:
Gosto destes teus “Estados de alma” e do “Tumulto na galeria” — começou Jovanovic, referindo-se a duas pinturas de Boccioni e afastando o artista da zona das esculturas. — São violentos.
"Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima" — teorizava Boccioni, citando o Manifesto Futurista, de Marinetti. — Já não há beleza senão na luta.
Rapidamente, a conversa derivou para temas de patriotismo, anarquia e insurreição, afinal, caros a ambos os grupos: artistas futuristas e radicais do “Mão Negra”.
Também penso isso — acompanhava Gavrilo. — O mundo está submetido a impérios que oprimem os povos: o austro-húngaro, o alemão, o inglês, o russo e o otomano, para só falar dos maiores.
"Nós, os futuristas, cantaremos as grandes multidões agitadas pela sublevação" — enlevava-se Boccioni.
Só a Sérvia nos pode salvar da pata dos impérios — declarava Jovanovic. — Com os nossos irmãos de outras regiões eslavas, formaremos uma grande nação que renovará o decadente Ocidente, conforme bem disse o grande Bakunine.
"A guerra é a única higiene do mundo" — prosseguia Boccioni, alimentado pelo radicalismo dos visitantes e pelo espírito do Manifesto Futurista de 1909. — O patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas são belas ideias pelas quais vale a pena morrer.
Nessa altura — confessou o meu amigo — eu já duvidava que, com tal incitamento, Gavrilo deixasse de executar o gesto assassino pelo qual ficou conhecido na Terra.
Que pensas do arquiduque que depois de amanhã visitará a tua exposição? — perguntou ele ao artista.
Acho-o capaz de iniciar uma bela guerra, aquela que a Europa precisa para varrer todo este bolor acumulado — respondeu o pintor escultor. — Sabes o que ouvi dizer? Que, ao longo da vida, já matou cinco mil veados em jornadas de caça, o feroz. Gosto desse laivo agressivo dele.
Pouco depois, Gavrilo despediu-se; a bomba já fora instalada na mais emblemática escultura da exposição — um gesso com o título “Formas Únicas de Continuidade no Espaço”, que agora está em S. Paulo e cuja imagem circula nas moedas de vinte cêntimos de Itália.

No dia da visita do arquiduque, 28 de Junho, a comitiva deslocava-se em sete carros. O arquiduque e a esposa iam no terceiro. O primeiro membro do grupo, Mehmedbasic, não disparou por não ter bom ângulo. O segundo lançou uma bomba que falhou o alvo, mas feriu várias pessoas do carro seguinte. Tomou rapidamente uma pílula de cianeto e lançou-se ao rio que atravessa Sarajevo, mas a pílula não fez efeito; foi retirado do rio e quase linchado, mas a polícia levou-o. Como cá.
Eu não estava a ver o que é que iria ser diferente. Os restantes membros, incluindo o que eu vigiava, fugiram. Como na Terra, o arquiduque irritou-se fortemente pela receção tão hostil e mais tarde foi visitar os feridos ao hospital. Como sabes, foi nesse percurso que, inesperadamente, o seu carro surgiu na rua onde Gavrilo Princip deambulava furtivamente e este aproveitou para disparar. Um acaso infeliz, que lançou a Terra numa espiral de guerras. Ali, Gavrilo procedeu de forma diferente. Postou-se perto da sala de exposições, esperando, talvez, que o arquiduque mantivesse a visita programada. Não manteve. Acabou por voltar para Viena sem um arranhão.
Fiquei feliz pelo resultado, sem contudo ter uma opinião clara sobre a causa da variação. Para uma melhor perceção da diferença resultante, fiquei lá mais um mês. Por essa altura, como na Terra, o imperador Francisco José acusou a Sérvia de fomentar a sublevação em algumas regiões ocupadas pelo Império, fazendo várias exigências de controlo. Como aqui, a Sérvia aceitou a maioria delas, exceto as inspeções dentro do seu território, por considerá-las uma violação da sua soberania. Então, o Império austro-húngaro atacou a Sérvia, a Rússia foi defendê-la, a Alemanha juntou-se ao Império, e, como aqui, o resto que tu sabes.
Compreendi que o atentado na Terra foi bem-sucedido devido a uma circunstância meramente casual, e que não terá sido tão decisivo para o início da guerra, como se pensa. A atmosfera de confrontação que se vivia no continente, que até os movimentos artísticos refletiam, era determinada por uma atitude belicosa das potências envolvidas, cuja arrogância as incapacitava de dialogar com as minorias subjugadas. Percebi que foram e são essas potências as grandes responsáveis pelas guerras. Qualquer pretexto lhes serve para prosseguir políticas de domínio global, seja um atentado ou outra desculpa qualquer.
Para o ano, vou integrar outra missão de observação crono-simétrica: tenho a incumbência de averiguar que pretextos foram usados para começar a guerra contra o Iraque, em três pontos diferentes do Universo.

Joaquim Bispo

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Imagem: Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo [cópia em bronze e original de 1913, em gesso].
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(Este conto foi publicado no número 29 da revista literária virtual Samizdat, de junho de 2010.)
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10/05/2017

A Vingança de Zeus


Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade.

Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil.
Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, ficará por ali, não se prolongará para lá dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde der: adoção, barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última alternativa, ao menos, a parte genética da esposa está presente.
Foi isso que os membros do casal alemão decidiram ele de ascendência grega, 29 anos, e ela de idade semelhante , mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil. Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de dois filhos, bem bonitos, por sinal.
Será que, a partir daí, o casal entregou o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural, três vezes por semana, até que ela engravidasse.
Não sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos. Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças de responsabilidades futuras, é a ambição de todos os homens, pelo menos dos imaturos. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão excitante perspetiva. Além disso, consta que a senhora é uma estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar 2000 euros ao inseminador que, com 34 anos, não devia precisar de tal incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do propósito das inúmeras saídas noturnas do marido.
Neste ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha o melhor trabalho do mundo; a vizinha, sua mulher, confortava-se com a entrada da receita extra; o grego esperava ter em casa, brevemente, uma criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente, ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais, e com dupla garantia para a cria. Pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade biológica, em caso de futuras carências económicas da criança que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na contabilidade genética inconsciente de cada um que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.
Foi neste ínterim que Zeus quem mais? interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado. Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais poderoso, ou talvez tenha ficado roído de inveja da sorte olímpica do vizinho porque ele, apesar de ser o todo-poderoso deus dos deuses, tem de tomar formas de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou à deusa que deseja.
Bem que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas de trabalho, o casal infértil começou a duvidar da eficácia dele para terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora também o vizinho era infértil só que, desta vez, com consequências ainda mais devastadoras.
O alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha traído, como os seus filhos não eram seus e supremo golpe não poderia vir a tê-los.
Podemos conjeturar que ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tenha tentado desculpar-se com Odin, disfarçado de padeiro ou de técnico de televisão por cabo, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu o divórcio.
Do casal greco-alemão de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, propriamente dita, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos, os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo contrato.
O vizinho, que também pode vir a precisar, não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra salvo seja conforme combinado, mas que nunca garantiu a consecução do projeto.
O caso estava para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele tomámos conhecimento, através do jornal Bild — porque pela boca de Zeus jamais o saberíamos…

Joaquim Bispo

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Imagem: Nikias Skapinakis, Leda e o Cisne (?), Coleção Berardo (?).

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(Esta crónica foi publicada no número 27 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2010.)

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10/04/2017

Domingo de Ramos



O que aconteceu na manhã do Domingo de Ramos conta-se em poucas palavras: um lunático entrou em Jerusalém, vindo da Cisjordânia, acompanhado por um pequeno grupo de adeptos determinados. Devem ter passado, dispersos, as barreiras militares do muro, para não levantar suspeitas ao Tzahal. Chegados às imediações da cidade, o líder mandou dois discípulos buscar uma burra, que estava presa, não muito longe, com a sua cria. Quando a trouxeram, aparelharam-na com simples panos, ele montou-a, e assim entrou em Jerusalém. A estranha personagem e os seus acompanhantes, todos de sandálias e túnica, cabelo comprido e cabeça descoberta, foram recebidos com aplausos e cânticos pelos transeuntes, sobretudo jovens, aparentemente entusiasmados com a performance, e houve quem estendesse no chão folhas de palma e mesmo roupas pessoais, para o grupo passar.
O episódio matinal foi ignorado por quase todos os correspondentes estrangeiros, devido ao seu carácter irrisório e quase anedótico.
Quem me relatou os pormenores deste caso foi um homem de nome Zaqueu que, por ser pequeno, trepou a uma palmeira e assistiu a tudo. Disse-me que o chefe do grupo nasceu na Galileia, numa aldeia chamada Nazaré, atualmente ocupada por Israel. Tornou-se um revoltado, quando viu a terra, que ele amava desde pequeno, ser colonizada, ocupada e apropriada aos poucos, por gentes, vindas de várias partes do Mundo. Viu que essas gentes eram incapazes de uma identidade médio-oriental, pois procuravam-na no território mas rejeitavam-na na cultura. Viu a segregação feroz do seu povo e a separação efetiva de territórios irmãos, devido à construção de uma muralha de betão de oito metros de altura e setecentos quilómetros de comprimento, tão cruel que chega a isolar populações, como as 450.000 pessoas de Jerusalém oriental.
Em vista do meu espanto, disse-me que, sem o quererem assumir, os dirigentes israelitas estão determinados a reconstituir a grande terra de Canaã das escrituras tradicionais, e a usar a força que for precisa contra os opositores à anexação do território palestiniano — destruindo cidades, utilizando armas proibidas contra populações civis, exterminando indiscriminadamente, sem olhar a idades. Tudo isto perante os olhos do Mundo e apesar do clamor internacional, incapaz de contrariar a posse das únicas armas nucleares da zona e o apoio incondicional do novo império mundial, que parece disposto a tudo para ter um aliado fiel junto ao cobiçado oceano subterrâneo de petróleo.
Revoltado, como tantos outros palestinianos que esbracejam para ver o seu povo liberto do domínio estrangeiro, o jovem nazareno, porém, não se lançou nos braços da OLP ou do Hamas. De carácter meditativo, formou um grupo de ativistas pacifistas que pretende, através da persuasão e de ações não violentas, consciencializar os habitantes de ambos os lados para a necessidade de se aceitarem mutuamente e partilharem o território como dois estados irmãos. Diz ele que não faz sentido que Israel queira reconstituir um Estado confessional com o mesmo território que dominou nos tempos áureos, mas que foi desmembrado há mais de dezanove séculos. Essa pretensão, diz, é tão absurda como os Árabes quererem reconstituir o califado de Córdoba no território da Península Ibérica, extinto, também, há séculos, ou o povo Inca tentar reanimar o seu antigo império destruído pelos Espanhóis, ou os descendentes dos Cátaros reivindicarem o Languedoc para reorganizarem a sua religião. E que, a exemplo de Israel, organizassem um Estado militarizado e passassem a expulsar os habitantes atuais desses territórios, recorrendo ao morticínio, se necessário.
Avesso à violência, também condena os atos de intolerância dos palestinianos para com os ocupantes, mas compreende o seu desespero. Diz ele, falando aos que param a ouvi-lo:
Um homem plantou uma vinha, cavou-a, tratou-a, construiu-lhe um lagar e uma adega. Um dia, vieram uns lavradores e propuseram arrendar-lhe a vinha. Assim se fez, mas quando o dono enviou emissários a recolher a renda, estes foram apedrejados, feridos e alguns mortos. O mesmo fizeram ao filho do dono, cuidando apoderar-se definitivamente da herança dele. Agora, dizei-me compatriotas, quando vier o dono da vinha, que fará ele àqueles lavradores?
Com exemplos propícios à reflexão, como este, vai tentando evidenciar a razão dos desapossados.
Mostra ser muito sagaz, embora idealista. Nicodemo, um membro do Knesset que acedeu a comentar o episódio, é da opinião que esta entrada messiânica em Jerusalém foi decalcada do Antigo Testamento, como estratégia pensada para chegar aos judeus mais conservadores, que esperam ainda o Messias. Entrar em Jerusalém a cavalgar uma burra parece ter sido preparado meticulosamente para corresponder à profecia de Zacarias (Zc 9,9): «Regozija-te ó filha de Sião. Eis que vem a ti o teu Rei, justo e salvador. Ele é humilde e vem montado numa burra, e sobre o burrico da burra.»
Aparentemente, esta mensagem visual não passou, apesar da relativa algazarra que os jovens militantes anti-guerra produziram durante todo o percurso da comitiva até à esplanada do Muro das Lamentações, onde muitos judeus absortos cabeceavam a afirmação dos seus preceitos religiosos. Aí, talvez por não ter tido a atenção que esperava, começou a gritar palavras de ordem em aramaico, a plenos pulmões, provocando os orantes, enquanto puxava as melenas a uns e desbarretava outros, sempre numa atitude de grande irreverência. O burburinho foi imediatamente detetado por uma patrulha militar que, com grande aparato bélico, o intimou a parar.
O homem não só não parou como estendeu o braço para os soldados com dois dedos da mão levantados, talvez a formar o V de vitória. Não se sabe se os soldados entenderam esse gesto como agressivo, ou se simplesmente não toleraram a desobediência; certo é que alguns disparos foram ouvidos e o nazareno caiu com a túnica ensanguentada. Só então as agências noticiosas se movimentaram e conseguiram comprar uma gravação de telemóvel feita por um turista.
O vídeo passou uma dúzia de vezes nas televisões, acompanhado da nota de que o desordeiro morrera pouco depois no hospital e de que os companheiros tinham sido presos e estavam acusados de alteração da ordem pública, que poderá, eventualmente, evoluir para terrorismo.
Neste dia em que vos falo, o episódio está esquecido. Um enorme equívoco continua a matar silenciosamente naquela área. O nazareno pacifista foi só mais uma vítima anónima deste equívoco.

Joaquim Bispo

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Imagem: Giotto, Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém [Domingo de Ramos], afresco, Capela Scrovegni, Pádua, Itália, 1305.

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(Esta crónica narrativa, com o título “Um muro de intransigência” foi publicada no número 23 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2009.)

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10/03/2017

Como o Melro no seu Dragoeiro


O nome de batismo era Armindo, mas “Rolhas” foi o que passaram a chamar-lhe, desde que a namorada o deixou e ele começou a pedir rolhas ao senhor Mário do Estrela — um restaurante na calçada da Ajuda —, ninguém sabia para quê.
Desde pequeno, era um rapaz metido consigo, e o facto de ser muito magro e alto, também não ajudava a fazer amizades. O pai era carregador no mercado da Ribeira e a mãe vendia hortaliça, de manhã, na praça da Boa-Hora. Nem para uma coisa nem para a outra arranjaram, os pais, maneira de o entusiasmar. De vez em quando, a mãe conseguia que lhe dessem trabalho — carregador em lojas de móveis, moço de fretes em mercearias — mas rapidamente abandonava o trabalho, quando não era o patrão a dizer à mãe que o rapaz andava sempre nas nuvens e não dava conta do recado. Deambulava pelos bairros da Ajuda e do Caramão ou refugiava-se na mata de Montes Claros. Ou então, isolava-se na biblioteca do Centro Paroquial a ler poesia. Numa dessas vezes, escreveu nas costas do cartão de leitor:

Vagueio por um mundo que me não conhece
A minha alma anseia o além

Aí pelos dezanove anos, começou a namorar uma vizinha, a Alcina, que achava graça ao seu ar desajeitado. Sentavam-se aos domingos num banco do Jardim Botânico da Ajuda, debaixo de uma tília. Ele recitava-lhe pequenos poemas de Cesário Verde e ela sentia que não havia nenhum homem tão sensível como o Armindo. Numa dessas tardes, à sombra da tília, ele recitou-lhe um poema de sua autoria, como se fosse de Cesário, para ver se ela notava a diferença. Começava assim:

Olhaste-me graciosa e prazenteira
Como se eu fora de todos o mais nobre…

Ela não notou diferença, o que muito o envaideceu. Foi um namoro agradável e alegre, enquanto durou. Passado um ano, Alcina sentiu que a mesa não se ia guarnecer com poesia e passou-se para o filho do dono da serralharia do Altinho, com o qual casou pouco depois. Foi um rude golpe para Armindo. Alguns diziam que o moço desatinara e apontavam o facto de ter passado a andar sempre com um bolso cheio de rolhas de cortiça. Por essa altura escreveu numa carteira de fósforos:

O poema só brota nos peitos esfacelados

Uns meses depois, um tio, que trabalhava no Jardim Tropical, puxou-o para jardineiro. Tratar das plantas e dos canteiros, manter o jardim limpo, eram tarefas que lhe agradavam. O contacto com as plantas e os animais, a perceção dos seus ciclos, faziam-no sentir-se em comunhão com o mistério da Natureza. Escrevia:

Deixa a palmeira para a algazarra dos pardais
e a araucária para o bulício dos demais!
Na paz do dragoeiro faz, melro, o teu poleiro!

Quando ganhou experiência, encarregaram-no dos viveiros nas estufas, onde pôde e pode trabalhar sozinho, como gosta. Prepara as pequenas leiras de terra, semeia e cobre as sementes, identifica as plantações, rega as pequenas plantas quando germinam, transfere-as para vasos ou canteiros, quando atingem tamanho adequado, e cuida delas até serem mudadas para o ar livre.
Embora atento ao que faz, a sua mente arquiteta frases, avalia rimas e sonoridades, sobretudo ausculta o coração. Depois, à hora de almoço, senta-se num banco e verte, num caderno de papel colorido, o que o íntimo lhe inspira:

Todo o caule por minhas mãos tange.
Esgrimo da mandrágora o alfange,
o aloendro murmura e range.

Quando o dia de trabalho termina, dirige-se para a beira-Tejo, a jusante da estação dos barcos, com uma bolsa de lona a tiracolo. Senta-se no paredão e fica a contemplar o rio.
«Para onde irão todas estas águas? Alguém lhes marca o destino? Algo as aguarda?», são perguntas que lhe acodem ao espírito. «Como admiro a serenidade com que seguem, resolutas, na direção do sol-pôr! Lá longe, outros olhos de outros sonhadores nelas pousarão e delas colherão a beleza que eu vejo.»
Armindo tira então da bolsa uma garrafa vazia de vidro transparente, separa a folha de caderno com o seu pequeno poema, enrola-a, ata-a com um junco seco e introduz o rolo na garrafa, com cuidado. Num ritual sempre igual, tira do bolso uma das rolhas e veda a garrafa meticulosamente. Então, levanta-se e atira a garrafa ao rio, tão longe quanto a sua força alcança. Solene, fica a observá-la, primeiro com o gargalo a esbracejar, como se apelasse por socorro, depois num suave gesto de adeus e, por fim, a deslizar lenta e impercetivelmente, em direção ao mar.
À noite, antes de adormecer, com o “Só” de António Nobre à cabeceira, sente às vezes algo indefinível, como que uma sintonia com um espírito desconhecido, mas tão íntimo como si próprio. Gosta de imaginar que, lá longe, numa praia remota, alguém, vagueando ao sabor dos seus pensamentos solitários, encontra uma das suas garrafas e lê:

Penso em ti,
minha amiga, alma gémea, minha irmã.
Só e triste. Anseio por te conhecer.
Pensa em mim, assim nos vamos encontrar!

E adormece mansamente.

Joaquim Bispo

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Imagem: Júlio (dos Reis Pereira), Aguarela da série “Poeta”, 1939.
Coleção particular.

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Este conto, com o título “O Apelo”, obteve o 2º lugar na categoria “Conto de autor maior de 60 anos”, no XIX Concurso de Poesia e Prosa da Academia de Letras de São João da Boa Vista, de 2011 — Brasil.
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Com o título “Como o Melro no Dragoeiro” integra a coletânea resultante do Concurso Literário Nacional — ANE 50 anos — comemorativo dos 50 anos da Associação Nacional de Escritores — Brasil, 2012.
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10/02/2017

Silêncio


Todos chamavam Plantão ao louco da pequena vila do Sabugal. Calcorreava a povoação, descalço mas com garbo, como se medisse cada passada com exatidão. A última pessoa que lhe ouvira a voz, num dia mau de uns anos antes, desenganara-o:
— N'o há cá pão pa malucos!
Conhecido de todos, entrava nos cafés, avaliava os circunstantes e dirigia-se a um deles. Ficava a olhá-lo, sem dizer palavra, sem estender a mão, direito e parado. O visado, geralmente, puxava de uma moeda e dava-lha. Plantão recebia a moeda e retirava-se, com um ligeiro aceno de cabeça. E recomeçava a ronda. Dizia-se, sem ninguém conseguir confirmar, que tinha sido seminarista e tinha ficado enlouquecido entre os ditames da religião católica e os textos dos filósofos niilistas. Dizia-se.
Era uma figura que, pela sua presença constante, já não se estranhava e até se respeitava, na sua loucura serena. Mas, certa vez, aí por fim de janeiro, um rapazote de nome Inácio, querendo divertir-se à custa dele, trouxe um velho violino sem cordas que encontrara no sótão e deu-o a Plantão. Este ficou demoradamente a olhar para o instrumento, talvez relembrando antigas aulas de música, e passou a transportá-lo debaixo do braço. De vez em quando, sentava-se na berma do jardim, colocava o violino na posição de tocar e começava a menear a cabeça como se imaginasse as notas. E ficava lá horas esquecidas.
Foi desde essa altura, também, que o rapaz que lhe dera o violino, o Inácio, começou a desatinar, a dizer que ouvia música na sua cabeça e que era o Plantão que a provocava. Todos se riram dessas declarações e gracejaram, dizendo que estava a ficar mais louco do que o pobre Plantão.
No sábado de Entrudo, Plantão transformou-se. Talvez influenciado pelos vários mascarados que, sozinhos ou em grupo, percorriam as ruas da vila, dizendo pilhérias e fazendo momices, Plantão passou toda a tarde na rua principal, para trás e para a frente, a fingir que tocava, sem arco, o seu violino sem cordas. Toda a gente se surpreendeu com a transformação exuberante de Plantão, mas acharam-lhe piada. Os mais novos, vendo nele um alvo fácil, começaram a bombardeá-lo de longe com bolas de farinha e a esguichá-lo com pistolas de água, que ele parecia ignorar, mas foram rapidamente censurados pelos mais velhos. Pelo fim da tarde, surgiu Inácio, de rosto enlouquecido, a berrar para o Plantão parar, e a tentar arrancar-lhe o violino, intento de que ele se esquivava. A cena, de tão concertadamente burlesca, levava os transeuntes às lágrimas.
A pantomima repetiu-se na tarde soalheira de domingo, entrecortada, uma ou outra vez, pelas contradanças bem ensaiadas, que se exibiam nos largos e nos cruzamentos das ruas, nesse longínquo início dos anos 60. As pessoas, agora, em vez de rirem, paravam a apreciar o rigor gestual e o espetáculo fisionómico do violinista fictício. Inácio, não faltou, mas começava a deixar de ter piada, tão deprimente era a sua cara, chorando e implorando para que Plantão parasse de tocar.
Segunda-feira fez-se intervalo nas brincadeiras, exceto Plantão que passou a tarde “a ensaiar” na berma do jardim. Inácio não apareceu. Foi visto a vaguear, de olhar alucinado e mãos nos ouvidos, pelo caminho enlameado de uma ermida dos arredores.
Terça-feira, Plantão foi a grande atração do Entrudo da vila. Parado e aprumado no centro do largo principal, revestido de uma dignidade que metia respeito, deu o concerto da sua vida. Exibia tais meneios de corpo, tal virtuosismo de gestos e expressões, que só faltava mesmo ouvir-se a música. No entanto, um ex-sargento que tocara na banda da Armada, disse que reconhecia uma das músicas que Plantão parecia tocar. Foi a apoteose. Toda a tarde Plantão tocou para quem o quis ver. De Inácio, nem sinal. 
Quando as vizinhas se encaminhavam para a missa das sete, já em quarta-feira de cinzas, depararam com Inácio caído junto à porta da igreja a esvair-se em sangue. De cada ouvido ensanguentado, sobressaía uma cavilha de violino.

Joaquim Bispo

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Imagem: Amadeo de Souza-Cardoso, Música Surda, c. 1914–1915.
Coleção Particular [Até 26/2/17, no Museu do Chiado, Lisboa]

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(Este conto foi publicado no número 26 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2010.)
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10/01/2017

Ano Novo — Vida Nova!


É a noite de 21 de dezembro — a mais longa do ano que vai terminar em breve. No silêncio do seu quarto de solteiro, Luís fuma, embrenhado numa meditação encorajadora. Pressente-se o ânimo cósmico da mudança de ciclo, como promessa de renovação. Observando, absorto, o fio de fumo do cigarro, Luís toma a decisão. Inabalável:

«No próximo ano é que é. Começo logo no dia 1. Não fumo mais. Ou bem que tenho vontade própria ou não. Estou farto de que me chamem a atenção para não fumar aqui, nem ali, nem em lado nenhum. Sinto-me discriminado, excluído, insultado. E os que já fumaram são os mais fundamentalistas. Não sei que raio de mecanismo psicológico é que os afeta. Será porque antes se consideravam perseguidos como eu me sinto agora? Será que eu também vou passar a maçar os outros por estarem a fumar num lugar onde, eventualmente, não se deve fumar?»

«Há pessoas que são torcidas e maldosas. Lembras-te, Luís, quando estavas a jantar sozinho no balcão corrido daquele snack-bar? E aquela velha que entrou — tica, tica, tica, tica — naquele passinho miúdo? Tinha as mesas quase todas vazias. E ao balcão só estavas tu e mais um casal. Pois a malvada velha atravessou o estabelecimento todo e veio sentar-se ao teu lado. E apenas se sentou, virou-se para ti, lembras-te?, e vai de dizer que ali não se podia fumar, e que não tinha que estar a levar com o fumo do teu cigarro, e frito e cozido. Não há paciência!»

«Este ano tem de ser Luís! Custe o que custar. Eu sei que é difícil, sei-o bem. Há três anos que andas nisto: a tentar fumar pouco e não consegues. Fizeste enormes progressos, reconheço, mas falta o rabo, que é o mais difícil de esfolar. Começaste por vinte minutos. É pouquíssimo. Mas, antes de tentares fumar pouco, havia situações em que apagavas um e acendias outro. E, se estavas muito concentrado ao computador, chegavas a acender um, com outro ainda a arder no cinzeiro. Durante uns segundos meditavas nisso. Mas adiavas uma decisão que iria mexer contigo.»

«Há uns cinco anos, chegaste a estar três meses sem fumar. Lembras-te como de repente voltaste a sentir os sabores da comida e da bebida — intensos — e os cheiros, tantos e tão ricos, e de que já te tinhas esquecido? E te apercebeste de como cheiravam as tuas roupas? Já para não falar da centena de euros que de repente te sobravam e que orgulhosamente gastaste em mimos para ti, que bem merecias! Mas, depois, as contrariedades da vida… És muito sensível à tristeza e à frustração. É nessa altura que precisas de um cigarro. Precisar mesmo. Há pessoas já conversaste com muita gente sobre este assunto cujos momentos fatais são aqueles em que se sentem bem, aconchegados no calor do grupo de amigos. Beberam um café, a conversa está boa… Para culminar... um cigarro. E então se meter álcool… Quem pode aguentar um cocktail num ambiente descontraído, rindo com os amigos, sem puxar por um cigarro?»

«Começaste por vinte minutos. Punhas o telemóvel para tocar de vinte em vinte minutos. Era fácil. A cada semana aumentavas cinco minutos. Em dois meses chegaste a intervalos de uma hora. Aí, já custava. Mas foste forte e disciplinado. Às vezes, parecia que nunca mais passava o tempo. Sacavas amiúde do telemóvel para consultar as horas. Finalmente, chegava o momento de fumar. E relaxar. E andaste com este ritmo uns dois anos. Já só fumavas menos de um maço por dia. Já era melhor. Mas ainda tinhas expetoração negra de manhã. E catarro. E as pontas dos dedos amarelas. E ainda sentias que te cansavas mais do que o devido, se tinhas que subir umas escadas mais depressa. Começaste a sentir menos respeito por ti próprio. Que raio, não teres força de vontade para fumar ainda menos! Então, deste a arrancada final pensavas tu. Voltaste a aumentar o intervalo. Em cada semana acrescentavas um quarto de hora. Em pouco tempo chegaste às três horas de intervalo. Voltaste a sentir-te orgulhoso e auto-confiante. Já só fumavas uns seis cigarros por dia. O pior era o fim do dia. Era difícil ires deitar-te sem fumar um último cigarro. E não ias esperar que chegasse a hora. Quebravas ali, excecionalmente, o esquema. Fumavas e relaxavas, e ficavas um pouco a saborear o momento. E, de repente, tinha passado mais uma hora… e não era fácil adormecer sem fumar um último cigarro… E neste ciclo vicioso fumavas três ou quatro.»

«Mas agora cansaste-te. Agora não vais vacilar. Arquitetaste o teu plano, meticulosamente, sem dizer nada a ninguém. Estás decidido. A 31 de dezembro fumas o último cigarro. E nunca mais lhe vais pegar. Sabes bem que nunca estarás curado. Serás sempre um convalescente, um viciado em fase de não-consumo. E ressaca. Sabes que, se deres uma “passa”, podes voltar a fumar tanto ou mais do que fumavas antes. Sabes que o teu corpo, as tuas células em carência, vão inventar todo o tipo de argumentação para te levarem de novo ao consumo. Não vais aceitar nenhuma justificação. Não serias tu a falar, mas a carência. Agora, estás bem alerta. Pensaste em tudo já há muito tempo. Tomaste a decisão. Inabalável.»

Luís está decidido, mas... será que consegue superar a última prova, a do amor?
Ele ainda não sabe, mas, na noite de Natal, o pai vai-lhe oferecer uma cigarreira em aço gravado, distinta; a mãe, uma boquilha equipada com um filtro especial para reduzir a nicotina; a irmã, um cinzeiro em porcelana; e a namorada vai-lhe fazer a surpresa daquele isqueiro Ronson eletrónico em plaquê que uma vez tinha cobiçado!
Joaquim Bispo

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Imagem: Otto Dix, Autorretrato, fumando, 1912.

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(Este conto foi publicado no número 12 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2009.)
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