10/07/2015

Confinado



Gregório começava a vir a si. No seu cérebro baralhavam-se as cores e os sons. Muito lentamente, começou a distinguir umas de outros, estes a tornarem-se mais agudos e aquelas a ganharem formas. Começava já a aperceber-se da diferença entre um vermelho carregado e um azul quase negro, que deambulavam na sua retina. Agora, chegavam outras sensações de dor e de frio, sem conseguir, no entanto, saber donde vinham elas. Durante longo tempo, foi tomando consciência de todo o seu corpo. As cores tinham-se desvanecido e acabado por desaparecer, restando agora um escuro persistente; dos sons ficara um zumbido; sentia muito frio, picadas por todo o corpo e uma dor intensa no temporal esquerdo. Tentou mexer os dedos, mas estes não obedeciam. Só então abriu os olhos, mas nada viu. Sobressaltou-se, temendo pela sua saúde. Era a primeira vez que esta ideia lhe ocorria e sentiu que o coração lhe batia com estrondo no peito. A custo, porém, conseguiu mexer o braço esquerdo, levando-o automaticamente a apalpar o temporal, que encontrou pegajoso e mole. Estava ferido, com certeza. Estranhamente, isso não o assustou. Sentia-se cansado e, por largos momentos, manteve-se quieto, absorto, semiadormecido.
Depois, começou a sentir curiosidade pelo que se passava consigo. Tentou recordar-se de qualquer coisa que fosse, e algumas recordações foram-lhe brotando no cérebro: «Sou homem, tenho trinta anos, uma filha, sou casado...». Num ápice, tudo se tornou claro. Estava deitado na sua casa de Lisboa e tinha de se levantar cedo, para ir ao Alentejo tratar de uns assuntos, a pedido do sogro.
Deu um esticão para se levantar, mas surpreendeu-se ao bater com a cabeça em qualquer coisa que estava por cima de si, o mesmo sucedendo aos joelhos, que estalaram ruidosamente. Ao mesmo tempo, a dor na cabeça tornou-se mais viva e presente e notou, com terror, que o braço direito se mantinha inerte e insensível. Moveu atabalhoadamente as pernas, o braço esquerdo e a cabeça e chegou à conclusão que estava fechado numa espécie de saco-cama, porque tudo à sua volta era pano, a não ser uma pequena barra de ferro por cima da cabeça.
Gregório sentiu-se aterrado. Não percebia nada do que se passava consigo. Ter-se-ia posto a caminho do Alentejo e tido um desastre, estando agora entalado entre os assentos do carro? Não, isto parecia ser uma caixa. Para lá do pano, sentia-se a resistência de paredes rígidas. Teria sido assaltado no caminho, espancado e metido numa bagageira? Esta ideia pareceu-lhe plausível, a despeito de não se lembrar de nada que o levasse a esta conclusão. Estava, então, a ser raptado por uma quadrilha que o espancara e iria pedir um resgate ao sogro? Nesse caso, onde estava agora?
Pôs-se à escuta, mas o zumbido monótono, que ouvia, poderia ser apenas dos seus ouvidos. O ar também lhe pareceu insuficiente para os seus pulmões. Tentou, como pôde, empurrar o que o rodeava, mas apenas por cima sentiu indícios de cedência. Convencido de que era realmente uma caixa que o prendia, concentrou os seus esforços na tampa, empurrando-a com os joelhos e com o braço fiel tentativa infrutífera que o deixou sem fôlego e da qual o coração se queixava, pelo esforço despendido. Socorrendo-se da réstia de lucidez que ainda não sucumbira ao pânico, rodou o corpo para a direita, tendo que encolher ao máximo os ombros para a frente. Depois, esticando o peito, notou que algo cedia com um gemido e esticou o braço, à procura duma frincha. Sim, lá estava uma pequena fenda da qual escorria algo frio e fluido. Cheirou. Pareceu-lhe cheiro de terra. Parou a ofegar.
«Lama?» intrigou-se.
Pouco lhe importava. Tinha era que se livrar daquele pesadelo.
Lembrou-se da barra metálica. Puxou-a com violência e o que a prendia cedeu. Parecia ter a forma de um punhal. Fez nova tentativa de levantar a tampa e, lentamente, introduziu a lâmina do seu punhal na ranhura dolorosamente conseguida. Entrou mais lama, ou lá o que era. A seguir, conseguiu deitar-se de borco e, apoiando a mão no punhal e as costas no teto, foi esticando o braço com toda a força do seu desespero. Lentamente, a tampa foi cedendo, entre gemidos de pregos desalojados e respiração ofegante. O estranho fluido viscoso alastrava pelo fundo onde estivera deitado. Finalmente, a resistência amainou e Gregório repetiu a operação ao nível da coxa, desta vez apoiando o joelho na providencial barra-punhal e ajudando-o com o dorso. Conseguiu, enfim, acocorar-se com a tampa às costas e o fluido a cobrir-lhe já os joelhos, mão e todo o ombro direito. Endireitou por fim o corpo, rodando a tampa. Inspirou sofregamente e olhou para fora, para cima.

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Ao cair da noite, uma trovoada estival abatera-se, subitamente, sobre a pequena aldeia alentejana. Nuvens negras, empurradas por algum vento de feição, tinham invadido o céu carmesim e principiado a descarregar abundantes bátegas de água e relâmpagos. Quem podia abrigar-se largou o que estava a fazer e desapareceu para lá dos umbrais das casas sempre brancas. Meia dúzia de visitantes iniciou, contristada, a viagem de regresso a Lisboa. Por detrás das vidraças, tapavam-se metais, murmuravam-se orações e fechavam-se as portas de dentro, para que as crianças, ao menos, não se assustassem com os relâmpagos. Procedimentos inúteis, porque os raios não poupam nada. Todos conheciam um ou outro caso em que trovoadas semelhantes tinham fulminado pessoas e animais, até em descampados. O ajudante do sacristão, que concluía as badaladas convencionais para a ocasião, galgou, com terror, os degraus da torre sineira, quando um raio quase o cegou, seguido dum estrondo que parecia fazer desabar a própria igreja.

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No céu noturno, a lua minguante afagou-o com uma ténue claridade e Gregório olhou, a tentar reconhecer o que o rodeava. Viu a parede de terra húmida à sua volta, viu a lama a brilhar no fundo do seu caixão, descobriu que era um crucifixo o punhal que segurava, olhou o seu braço pendente, percebeu o seu fato negro. Com olhar vago, pôs-se em pé, escalou os bordos da sua sepultura e, absorto, contemplou as cruzes, silenciosamente espetadas no chão do cemitério da aldeia do seu sogro. Ouviu trovões lá ao longe, viu as pás e as enxadas, subitamente abandonadas, mirou, novamente, o crucifixo com vestígios de fusão, provocada por um braço de raio e apalpou a sua cabeça ferida pela queimadura de alta voltagem...
Recordou-se, então, dos avisos do seu médico, acerca dos perigos de acidente cardiovascular, para quem leva vida competitiva. Lentamente, passo vacilante, braço balouçando, encaminhou-se para a primeira casa da aldeia, onde uma família de camponeses, à volta da mesa rústica, engolia a ceia frugal, comentando os malefícios agrícolas de uma chuvada fora de época.

Joaquim Bispo
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(Este conto de 1976 obteve o 2º prémio de um concurso de contos promovido pelo site Ora, vejamos…, em 2009, integrando a respetiva coletânea, e foi publicado no número 9 da revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2008)

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10/06/2015

O Retrato do Juiz



O pintor contemplava o retrato do juiz no cavalete e os seus olhos teimavam em fitar o olhar incisivo do retratado, muito firme, muito intenso. Parecia vigiar-lhe cada movimento. Era perturbador. O cliente já devia ter ido buscar o quadro, mas não havia maneira de aparecer. Júlio começava a ficar impaciente. Não que o dinheiro lhe fizesse muita falta, mas o olhar do retrato inquietava-o. Cada vez que o observava, parecia encontrar-lhe novos aspetos fisionómicos. Como se tivesse vida. Era, sem dúvida, das suas obras mais conseguidas.
Desde novo que, nas suas mãos, as telas se povoavam de figuras, umas cândidas, outras austeras, umas históricas, outras, que podíamos esperar encontrar na rua, representadas com uma naturalidade notável. Manobrava os pincéis com destreza, como se já tivesse muitos anos de prática. Quase sempre fazia as misturas das cores na paleta mas, em obras de maior arrebatamento, aplicava as cores puras diretamente na tela, em empastamentos de força cromática avassaladora.
Com o tempo, percebeu que o retrato próprio era das imagens que as pessoas mais prezavam e passou a especializar-se nesse género, adotando Columbano como referência. Ao seu “atelier” da rua de S. Paulo, em Lisboa, acudiam militares, magistrados, catedráticos, políticos. Cavalheiros graves em fundo escuro e damas vistosas em “toilettes” requintadas nasciam nas suas telas. Os olhares eram sempre inteligentes, a pose sempre nobre e elegante.
Ultimamente, a clientela já não abundava mas Júlio, de sessenta e três anos escorreitos, gostava do que fazia e tencionava continuar a trabalhar indefinidamente.
O último cliente fora este juiz. Tinha querido pagar a totalidade do trabalho, mas Júlio aceitara apenas metade; o resto seria pago contra a entrega da obra. Era um cliente fácil. Chegava sempre pontualmente às nove da manhã, no seu fato preto impecável, e mantinha-se firme na pose escolhida, durante as duas horas da sessão. Era de poucas falas, mesmo no pequeno intervalo que faziam a meio.
O rosto, que era a parte mais delicada e a que dava mais trabalho, foi nascendo, mancha a mancha nas carnações da face, pincelada a pincelada nos fartos cabelos grisalhos e nas sobrancelhas rectas e espessas. Ao fim de duas semanas, os olhos vivos e inquisidores do juiz acenderam-se na tela como se fossem reais. Pouco depois, Júlio disse ao cliente que só faltava rematar os fundos e que podia ir buscar o retrato daí a uns dias.
Tinha-se passado mês e meio e o juiz não aparecia.

O retrato estava muito realista. Júlio olhava-o e não conseguia evitar uma inquietação difusa. Começava a tornar-se uma obsessão.
Não ficara, do juiz, com mais que o nome e a morada, rabiscados num papel. Pensou em telefonar-lhe, mas das Informações disseram-lhe que aquela morada não tinha telefone fixo. Resolveu procurar o cliente, pessoalmente. Apanhou o comboio para Carcavelos e, lá chegado, foi perguntando até encontrar a casa do juiz. O que descobriu não podia ser mais perturbador.
Realmente, ali era a casa do juiz, mas ele não estava. Nem ele nem ninguém. Perguntando à vizinhança, soube que a casa estava abandonada desde que o juiz morrera, havia quinze anos.
Júlio deixou-se cair num banco de jardim e ali ficou, sem tomar conta das horas, mergulhado num assombro de que não sabia como sair. Se havia coisa com que não sabia lidar era com o sobrenatural.

Desde então que Júlio não pinta. No primeiro mês após a traumática revelação, só voltou ao “atelier” uma única vez. Tornar a encarar aquele olhar foi aterrador. Podia jurar que o juiz o olhava de cenho mais carregado, num misto de tensão e recriminação. Voltou a face da tela para a parede, mas Júlio continuou a pressentir a intensidade do olhar através dela. Sentiu medo. Saiu rapidamente, ofegante, sem saber o que fazer, sem vontade de voltar.
Em casa pensou que, se calhar, estava na altura de parar de pintar. Foi falar com um amigo, vizinho do “atelier”, que há tempos se propusera comprar-lho para alargar a sua loja de aprestos marítimos. Fizeram negócio, depois de o amigo aceitar ficar também com o recheio.
Júlio recolheu-se à sua pequena casa de Montemor, sobranceira ao vale de Loures, disposto a desanuviar o espírito, mas não o tem conseguido. Passa as tardes na varanda, de olhar perdido no horizonte. Não consegue tirar da cabeça o olhar mau do juiz. Nem consegue entender que intuito teve ele, ao voltar do outro mundo e lhe encomendar o retrato.

Por um desses dias, na sua casa de Azeitão, Armando Magalhães levantava-se da mesa e improvisava um pequeno discurso para uma dúzia de familiares reunidos à volta do almoço dominical:
Meus queridos, é com agrado e enorme orgulho que celebro convosco a próxima expansão da nossa pequena empresa. Foi um negócio bem sucedido de que todos saíram a ganhar, como gosto que sejam todos os nossos negócios. Ganhámos nós e ganhou o Sr. Júlio, que agora pode gozar uma bem merecida reforma. Era um grande artista. Vejam como ele captou o olhar austero do tio ― apontava Armando o quadro na parede. ― Aliás, quero fazer um agradecimento muito especial ao tio Jerónimo, pelo esforço que fez de ir todas as manhãs a Lisboa e assumir tão bem aquela personagem. Sem a sua ajuda, talvez não tivéssemos conseguido o que há tanto tempo pretendíamos: a expansão do nosso armazém de vendas e do nosso negócio. Obrigado tio! E faço questão, é claro, que fique com o quadro. Bem o merece! De qualquer modo, estamos todos de parabéns. Por isso, peço que me acompanhem num brinde.
Armando levantou um copo e pronunciou a fórmula habitual:
A família é a nossa fortaleza!
Todos se levantaram, de copo na mão, respondendo em coro:
À família!
O brinde terminou com uma longa salva de palmas, que comunicou, ao espírito de cada um, o enternecimento de quem se sabe participante no bom sucesso de um projeto comum.

Joaquim Bispo

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(Este conto obteve um 3º prémio ex-aequo de um concurso de contos promovido pelo site Ora, vejamos…, em 2007, integrando a respetiva coletânea, e foi publicado no número 19 da revista literária virtual Samizdat, de agosto de 2009)

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Imagem:
Columbano, Retrato de Abel Botelho [escritor], 1897
Lisboa, Museu do Chiado (Museu Nacional de Arte Contemporânea)

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10/05/2015

A Luz de Delft



O que vou contar começou na semana após o Natal, ao chegar a casa, cerca das cinco da tarde. Depois de me pôr à vontade, preparei um copo de leite-com-chocolate morno, juntei um pacote de bolachas recheadas e fui lanchar para a sala, enquanto via televisão.
Foi já no fim do lanche que o vi: o carteiro de Pablo Neruda, como eu me lembrava dele no filme, estava mesmo atrás da rapariga que lê uma carta junto a uma janela aberta, na reprodução pintada de Vermeer, que tenho por cima da escrivaninha. Primeiro, fiquei estático, sem saber bem o que pensar. Depois, observei as bolachas e cheirei o leite-com-chocolate, mas pareceram-me em bom estado!
Levantei-me e mirei-o de perto. Estava com aquele ar ingénuo e satisfeito de quem finalmente sabe o que são metáforas. E parecia bem implantado na camada cromática, como se tivesse sido pintado ao mesmo tempo que a mulher. Esquecendo o anacronismo do vestuário, não ficava mal de todo no quadro. Aparentemente, tinha sido ele a trazer a carta à jovem holandesa de Vermeer.
Bem”, pensei, “é melhor não dizer nada a ninguém, sem dormir sobre o assunto”. E foi isso que fiz no sofá, a meio de um diagnóstico delicado do Dr. House.
Quando acordei, a primeira coisa que fiz foi olhar para o quadro. O carteiro já lá não estava. Fiquei aborrecido. Frustrara-se a hipótese de mostrar o fenómeno aos amigos. Logo a seguir, fiquei preocupado. O que quer que tivesse perturbado a minha perceção devia estar em mim e podia ser um grave problema de saúde.
Resolvi fazer umas pesquisas na Net sobre alterações de perceção. Um site francês advertia que níveis elevados de açúcar no sangue podem provocar alucinações. Nessa noite, dormi mal.
No dia seguinte, via-se uma alcoviteira de Murillo assomando à janela, a falar com a rapariga da carta. E nos outros dias sucederam-se outras imagens de menor dimensão: um jarrão azul com flores, de Cézanne, junto à fruteira; uma joia a imitar Lalique no cabelo da jovem; o gato da Olímpia de Manet, sobre a tapeçaria; eu sei lá! Isto, apesar de eu ter começado a conter-me nas sobremesas e a lanchar só fruta fresca.
Entretanto, fui ao médico. Impôs-me uma dieta rigorosa sem açúcares e receitou-me uns comprimidos de lítio. Disse que devo ter uma predisposição genética visionária que foi potenciada pelos excessos da quadra natalícia. Para eliminar todos os fatores desencadeantes, aconselhou-me ainda a parar com quaisquer leituras sobre arte durante uns tempos. Certo é que, passadas umas semanas, deixei de ver imagens estranhas a perturbar o recolhimento da holandesa de Vermeer na leitura da sua carta.
Quando já dava por seguro que o meu problema estava sanado, certa manhã, dei pela falta da própria mulher do quadro. Calculam como fiquei! O coração acelerou-se e quase entrei em pânico. Se antes era açúcar, o que seria agora?!
Telefonei logo para o meu médico, que também se mostrou alarmado e me disse que eu, provavelmente, teria abusado da dieta. Mandou-me tomar imediatamente um pacote de açúcar dissolvido em água e que fosse ao consultório dele no dia seguinte. Tomei o que ele mandou e estaquei pensativo a olhar para o quadro deserto. Que intrigante a situação!
Então, reparei nuns pequenos vultos refletidos na vidraça do quadro, agora noutra posição. Eram-me familiares. Apesar de minúsculos, não deixavam margem para dúvidas – eram as silhuetas da holandesa desaparecida e do carteiro de Pablo Neruda, passeando de braço dado numa praça de Delft!
Instantaneamente, entendi todo o percurso de aproximação e sedução: o primeiro contacto, o recado influente, as flores, a prenda…
No dia seguinte, já não fui ao médico. Nunca mais lá voltei. Percebi que o amor é mais forte que quaisquer dietas ou comprimidos. E encontra sempre o seu caminho.

Joaquim Bispo

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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77


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(Este conto foi publicado no número 16 da revista literária virtual Samizdat, de maio de 2009)

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10/04/2015

O atraso da primavera




Há muito, muito tempo, quando os homens viviam ao ritmo das estações, houve um ano em que a primavera se atrasou para além do habitual. Passou março, abril ia adiantado e nem sinais dela.

O verão, lá dos pomares que habitava, olhava, olhava e os campos que vislumbrava mantinham-se desolados, gelados, batidos pelo vento. Temendo pela eclosão das sementes e preocupado com o que pudesse ter acontecido à primavera, resolveu procurar o outono para lhe comunicar o que estava a acontecer e decidirem o que fazer. Muniu-se de uma coroa de raios solares e pôs-se a caminho. Em breve atingiu as florestas onde o outono vivia. Este ficou muito preocupado com o que o verão lhe contou e sugeriu que fossem falar com o inverno, que vivia numa gruta rochosa numa montanha a norte. Talvez ele soubesse alguma coisa ou pudesse ajudá-los a procurar a desaparecida. Pôs pelos ombros uma ampla capa de folhagem castanha, vermelha e amarela e puseram-se a caminho. Andaram, andaram por campos vazios e silenciosos e prados de plantas cinzentas e murchas. O vento assobiava gélido e selvagem. A progressão ia-se tornando mais penosa, por serras escalvadas e desfiladeiros atulhados de neve. Ao fim de uns dias, chegaram finalmente à caverna do inverno.

Entraram. O frio parecia mais intenso, o escuro era medonho. Ao fundo de uma galeria, encontraram o inverno agitando as suas asas de morcego sob o seu manto de nuvens negras, atarefado com o funcionamento do enorme fole que soprava os ventos agrestes por sobre os montes e os vales.

Inverno! — bradou o outono, que era quem tinha mais contactos com ele — já viste a primavera este ano?

O visado virou-se lentamente e, de cabeça baixa, mirou os visitantes por baixo das sobrancelhas nevadas.

Ó entes tresloucados, o que fazeis por estas paragens? Abrigai-vos aí nessa côncava, que não estais habituados a estes frios.

Não te preocupes connosco, que estamos protegidos — a voz possante e clara do verão encheu a caverna. — O que nos preocupa é que já estamos a chegar a maio e ainda não vimos a primavera.

O inverno imobilizou o fole e aproximou-se dos visitantes.

Não te abespinhes, verão! Sei que és jovem e sanguíneo mas a hospitalidade é um dos meus princípios. Sim, já a vi. A pobrezinha está lá dentro, deitada. Mas, descansai um pouco. Sentai-vos.

Que lhe fizeste, velho perverso? Abusaste dela? — a coroa do verão faiscava.

O inverno olhou-o com indulgência. Juntou uns cavacos e acendeu uma fogueira.

Esqueces-te que é minha filha? — murmurou. — Está um pouco atrasada, só isso. A juventude não tem o sentido das responsabilidades! — a sua voz parecia denotar algum desapontamento, enquanto lhes servia um ponche quente.

O outono, mais cordato, sorveu um trago e indagou:

Mas diz-nos, inverno, que se passa com ela para deixar assim as plantas e os animais em completa desorientação?

Ela esteve no outro hemisfério, como faz todos os anos, mas desta vez parece que conheceu lá alguém interessante — um tal a quem chamam El Niño — e só voltou há meia dúzia de dias. Vinha exausta e toda alvoroçada, de modo que eu achei melhor ela descansar uns dias antes de reiniciar as suas tarefas. Esperai que eu vou chamá-la!

Enquanto se afastava para a zona mais escura da caverna, o verão mostrava-se inquieto:

Acreditas nele?

Não sei. Vamos esperar. Mas, se for verdade, acho incrível que a menina tenha ficado no bem-bom, para lá da licença, e que, chegada aqui, o papá ainda ache que a filhinha precisa de descansar. Não é espantoso?

Claro! Eu acho que isto não pode continuar! Ou bem que se assumem compromissos ou não!

Pouco depois, entrava a jovem, deslumbrante num vestido de pétalas de amendoeira e uma tiara de flores amarelas de giesta que acentuavam o azul celeste dos olhos.

Oh, que queridos! Preocupados por minha causa! — beijou ambos, ao mesmo tempo que lhes fazia uma festinha no rosto. — Estava cansadíssima. Foram umas férias e tanto! Fiz falta?

Afastada a crispação e posta a conversa em dia, a primavera despediu-se. Com as suas asas brancas elevou-se nos ares, sob o olhar embevecido do trio. As nuvens negras rasgaram-se e dissiparam-se, o céu azul apareceu e o sol beijou os prados, os pomares e os bosques. Do alto, começaram a cair pétalas de todas as cores que esvoaçavam e pousavam delicadamente sobre todas as plantas. Os talos esqueléticos em que elas tocavam começaram a lançar rebentos que se abriam em folhas e flores. Cheiros adocicados flutuavam ao sabor da brisa suave. Nuvens de abelhas, besouros e gafanhotos cruzavam os ares em azáfamas surpreendentes. Passarada de todos os tamanhos e cores revoluteava a alimentar-se, a acasalar, a construir ninhos. Os seus inúmeros chilreios misturavam-se com as cegarregas de grilos e cigarras e o coaxar das rãs.

A temperatura era agora fresca mas amena, os campos fervilhavam de cores e vida e os homens estavam felizes. Atrasada, mas fulgurante, tinha chegado finalmente a primavera.

 
Joaquim Bispo

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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77

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(Este conto foi publicado na revista CAIS, em maio de 2007, e no número 15 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2009)

10/03/2015

Os ratos




Pelo Carnaval, encontrei um amigo que já não via há uns anos. Falou-me com entusiasmo de uma compra que entretanto fizera — uma casa no campo que, segundo disse, era um elixir miraculoso para a pressão da vida na cidade. Satisfeito com o meu interesse, acabou por insistir em me emprestar a casa, para lá ir passar uns dias. Eu aceitei com agrado e muita curiosidade. Mas o meu amigo avisou-me:
— Olha que é capaz de haver lá ratos! Da última vez que lá estive, havia.

Na manhã do sábado seguinte, rumei às Beiras, com a minha mulher. Mas antes preveni-me. Fui à drogaria e comprei uma embalagem de pastilhas de raticida.
Efetivamente, o sítio é lindíssimo: muito arborizado, junto ao espelho de água de uma barragem, com a sombra azulada de uma serra, em fundo. Feito de encomenda para um fim de semana romântico. E a vivenda tem o encanto das casas tradicionais: antiga, toda em granito, com lareira, e quartos forrados a madeira.
Mas, realmente, está infestada de ratos. Na cozinha, havia restos de embalagens que o meu amigo lá teria deixado — pacotes de sumos, garrafas plásticas de refrigerantes, caixas de flocos — tudo misturado com xixi e caganitas. O aspeto da cozinha era desolador.

Foi uma tarde de sábado pouco romântica. Limpar toda aquela porcaria, provocou-nos sentimentos perversos de vingança. À noite, antes de adormecer, distribuí uma meia dúzia de pastilhas, pelos cantos da cozinha, sentindo o rancor prestes a ser saciado. De noite, uma vez que acordei, apercebi-me, nitidamente, de um restolhar na cozinha. Virei-me para o outro lado, com um sorriso consolado.

Ao romper do dia, acordei sobressaltado. Ouviam-se guinchos, correrias, ruídos vários, vindos do forro da casa. Era um chinfrim enorme. Como se um bando de gatos perseguisse os ratos, numa luta feroz e prolongada. Não se assemelhava nada à débil agonia de dois ou três ratos envenenados. Parecia até que o reboliço aumentava.

A minha curiosidade não me deixou continuar na cama. Como havia um alçapão no teto do quarto, fui buscar um escadote e, um pouco receoso, espreitei.
O que vi não pode ser completamente transmitido por palavras. Uma dezena de ratos copulava, freneticamente, num desespero alucinado. Corriam. Rebolavam. Saltavam. Trocavam continuamente de parceiro. Formavam-se mesmo, molhos de três ou quatro, em tentativas de cópulas improváveis. No soalho, jaziam já uns quatro, mortos por exaustão.

Fiquei um minuto atónito, a olhar para aquele cenário, sem compreender o que estava a acontecer; a perguntar-me porque é que os ratos se estavam a comportar daquela maneira. 
A explicação atingiu-me então como um soco. Fiquei gelado. Devo ter feito um esgar de horror, ao tomar consciência da incrível estupidez da minha troca de embalagens. Do alto do escadote, olhei para a mesa-de-cabeceira. Lá estava uma pastilha azul de raticida, que eu estive quase a tomar, se não fosse a enxaqueca providencial da minha mulher!

Joaquim Bispo
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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77

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(Este conto foi o primeiro que publiquei na revista literária virtual Samizdat, no número 7, de agosto de 2008)