10/04/2015

O atraso da primavera




Há muito, muito tempo, quando os homens viviam ao ritmo das estações, houve um ano em que a primavera se atrasou para além do habitual. Passou março, abril ia adiantado e nem sinais dela.

O verão, lá dos pomares que habitava, olhava, olhava e os campos que vislumbrava mantinham-se desolados, gelados, batidos pelo vento. Temendo pela eclosão das sementes e preocupado com o que pudesse ter acontecido à primavera, resolveu procurar o outono para lhe comunicar o que estava a acontecer e decidirem o que fazer. Muniu-se de uma coroa de raios solares e pôs-se a caminho. Em breve atingiu as florestas onde o outono vivia. Este ficou muito preocupado com o que o verão lhe contou e sugeriu que fossem falar com o inverno, que vivia numa gruta rochosa numa montanha a norte. Talvez ele soubesse alguma coisa ou pudesse ajudá-los a procurar a desaparecida. Pôs pelos ombros uma ampla capa de folhagem castanha, vermelha e amarela e puseram-se a caminho. Andaram, andaram por campos vazios e silenciosos e prados de plantas cinzentas e murchas. O vento assobiava gélido e selvagem. A progressão ia-se tornando mais penosa, por serras escalvadas e desfiladeiros atulhados de neve. Ao fim de uns dias, chegaram finalmente à caverna do inverno.

Entraram. O frio parecia mais intenso, o escuro era medonho. Ao fundo de uma galeria, encontraram o inverno agitando as suas asas de morcego sob o seu manto de nuvens negras, atarefado com o funcionamento do enorme fole que soprava os ventos agrestes por sobre os montes e os vales.

Inverno! — bradou o outono, que era quem tinha mais contactos com ele — já viste a primavera este ano?

O visado virou-se lentamente e, de cabeça baixa, mirou os visitantes por baixo das sobrancelhas nevadas.

Ó entes tresloucados, o que fazeis por estas paragens? Abrigai-vos aí nessa côncava, que não estais habituados a estes frios.

Não te preocupes connosco, que estamos protegidos — a voz possante e clara do verão encheu a caverna. — O que nos preocupa é que já estamos a chegar a maio e ainda não vimos a primavera.

O inverno imobilizou o fole e aproximou-se dos visitantes.

Não te abespinhes, verão! Sei que és jovem e sanguíneo mas a hospitalidade é um dos meus princípios. Sim, já a vi. A pobrezinha está lá dentro, deitada. Mas, descansai um pouco. Sentai-vos.

Que lhe fizeste, velho perverso? Abusaste dela? — a coroa do verão faiscava.

O inverno olhou-o com indulgência. Juntou uns cavacos e acendeu uma fogueira.

Esqueces-te que é minha filha? — murmurou. — Está um pouco atrasada, só isso. A juventude não tem o sentido das responsabilidades! — a sua voz parecia denotar algum desapontamento, enquanto lhes servia um ponche quente.

O outono, mais cordato, sorveu um trago e indagou:

Mas diz-nos, inverno, que se passa com ela para deixar assim as plantas e os animais em completa desorientação?

Ela esteve no outro hemisfério, como faz todos os anos, mas desta vez parece que conheceu lá alguém interessante — um tal a quem chamam El Niño — e só voltou há meia dúzia de dias. Vinha exausta e toda alvoroçada, de modo que eu achei melhor ela descansar uns dias antes de reiniciar as suas tarefas. Esperai que eu vou chamá-la!

Enquanto se afastava para a zona mais escura da caverna, o verão mostrava-se inquieto:

Acreditas nele?

Não sei. Vamos esperar. Mas, se for verdade, acho incrível que a menina tenha ficado no bem-bom, para lá da licença, e que, chegada aqui, o papá ainda ache que a filhinha precisa de descansar. Não é espantoso?

Claro! Eu acho que isto não pode continuar! Ou bem que se assumem compromissos ou não!

Pouco depois, entrava a jovem, deslumbrante num vestido de pétalas de amendoeira e uma tiara de flores amarelas de giesta que acentuavam o azul celeste dos olhos.

Oh, que queridos! Preocupados por minha causa! — beijou ambos, ao mesmo tempo que lhes fazia uma festinha no rosto. — Estava cansadíssima. Foram umas férias e tanto! Fiz falta?

Afastada a crispação e posta a conversa em dia, a primavera despediu-se. Com as suas asas brancas elevou-se nos ares, sob o olhar embevecido do trio. As nuvens negras rasgaram-se e dissiparam-se, o céu azul apareceu e o sol beijou os prados, os pomares e os bosques. Do alto, começaram a cair pétalas de todas as cores que esvoaçavam e pousavam delicadamente sobre todas as plantas. Os talos esqueléticos em que elas tocavam começaram a lançar rebentos que se abriam em folhas e flores. Cheiros adocicados flutuavam ao sabor da brisa suave. Nuvens de abelhas, besouros e gafanhotos cruzavam os ares em azáfamas surpreendentes. Passarada de todos os tamanhos e cores revoluteava a alimentar-se, a acasalar, a construir ninhos. Os seus inúmeros chilreios misturavam-se com as cegarregas de grilos e cigarras e o coaxar das rãs.

A temperatura era agora fresca mas amena, os campos fervilhavam de cores e vida e os homens estavam felizes. Atrasada, mas fulgurante, tinha chegado finalmente a primavera.

 
Joaquim Bispo

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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77

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(Este conto foi publicado na revista CAIS, em maio de 2007, e no número 15 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2009)

10/03/2015

Os ratos




Pelo Carnaval, encontrei um amigo que já não via há uns anos. Falou-me com entusiasmo de uma compra que entretanto fizera — uma casa no campo que, segundo disse, era um elixir miraculoso para a pressão da vida na cidade. Satisfeito com o meu interesse, acabou por insistir em me emprestar a casa, para lá ir passar uns dias. Eu aceitei com agrado e muita curiosidade. Mas o meu amigo avisou-me:
— Olha que é capaz de haver lá ratos! Da última vez que lá estive, havia.

Na manhã do sábado seguinte, rumei às Beiras, com a minha mulher. Mas antes preveni-me. Fui à drogaria e comprei uma embalagem de pastilhas de raticida.
Efetivamente, o sítio é lindíssimo: muito arborizado, junto ao espelho de água de uma barragem, com a sombra azulada de uma serra, em fundo. Feito de encomenda para um fim de semana romântico. E a vivenda tem o encanto das casas tradicionais: antiga, toda em granito, com lareira, e quartos forrados a madeira.
Mas, realmente, está infestada de ratos. Na cozinha, havia restos de embalagens que o meu amigo lá teria deixado — pacotes de sumos, garrafas plásticas de refrigerantes, caixas de flocos — tudo misturado com xixi e caganitas. O aspeto da cozinha era desolador.

Foi uma tarde de sábado pouco romântica. Limpar toda aquela porcaria, provocou-nos sentimentos perversos de vingança. À noite, antes de adormecer, distribuí uma meia dúzia de pastilhas, pelos cantos da cozinha, sentindo o rancor prestes a ser saciado. De noite, uma vez que acordei, apercebi-me, nitidamente, de um restolhar na cozinha. Virei-me para o outro lado, com um sorriso consolado.

Ao romper do dia, acordei sobressaltado. Ouviam-se guinchos, correrias, ruídos vários, vindos do forro da casa. Era um chinfrim enorme. Como se um bando de gatos perseguisse os ratos, numa luta feroz e prolongada. Não se assemelhava nada à débil agonia de dois ou três ratos envenenados. Parecia até que o reboliço aumentava.

A minha curiosidade não me deixou continuar na cama. Como havia um alçapão no teto do quarto, fui buscar um escadote e, um pouco receoso, espreitei.
O que vi não pode ser completamente transmitido por palavras. Uma dezena de ratos copulava, freneticamente, num desespero alucinado. Corriam. Rebolavam. Saltavam. Trocavam continuamente de parceiro. Formavam-se mesmo, molhos de três ou quatro, em tentativas de cópulas improváveis. No soalho, jaziam já uns quatro, mortos por exaustão.

Fiquei um minuto atónito, a olhar para aquele cenário, sem compreender o que estava a acontecer; a perguntar-me porque é que os ratos se estavam a comportar daquela maneira. 
A explicação atingiu-me então como um soco. Fiquei gelado. Devo ter feito um esgar de horror, ao tomar consciência da incrível estupidez da minha troca de embalagens. Do alto do escadote, olhei para a mesa-de-cabeceira. Lá estava uma pastilha azul de raticida, que eu estive quase a tomar, se não fosse a enxaqueca providencial da minha mulher!

Joaquim Bispo
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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77

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(Este conto foi o primeiro que publiquei na revista literária virtual Samizdat, no número 7, de agosto de 2008)