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10/01/2018

Os números de Lucas


Ao José Espírito Santo, que me deu a conhecer “Os números de Lucas”
Quando Édouard Lucas, no século XIX, elaborou a sequência numérica que é conhecida como “Os números de Lucas”, poderia ter imaginado também o seguinte episódio, porque não lhe eram estranhos Fibonacci nem os outros protagonistas que, ao longo dos séculos, estudaram as relações numéricas e o inexplicável eflúvio de beleza que algumas emanam, sobretudo a chamada “Divina proporção” ou “Número de ouro”.
*
Florença, ano de 1492. Enquanto Fra Domenico não chegava, Tommaso da Fiesole, acompanhado do seu aprendiz, Filippo, aproveitava o tempo na contemplação da Trindade pintada na parede interior da igreja de Sta. Maria Novella. Gostava da sua profissão de arquiteto, que não era fácil, mas admirava a capacidade dos pintores de transmitirem para um plano a ilusão das três dimensões, como Masaccio conseguira neste fresco.
O Senhor esteja consigo, senhor Tommaso! — Era o frade, no seu hábito preto e branco. Com ele vinha um noviço.
Como tendes passado, meu irmão? — respondeu, com um sorriso de ternura.
Tommaso sentia sempre alguma estranheza quando cumprimentava o seu conterrâneo e primo por «meu irmão». Tinham sido companheiros de brincadeira, mas cada um seguira o seu caminho — Domenico ingressara no convento de S. Marcos de Florença, e ele tinha feito o percurso dos aprendizes de artes mecânicas até atingir o atual estatuto.
Ouvi dizer que estais a trabalhar para um sobrinho do senhor Lourenço de Médici.
Sim, o senhor Ludovico. Saiamos! É mesmo por causa desse projeto que pedi para vos falar. Sei que vos tendes interessado pelo estudo das formas e das relações entre as suas dimensões. Eu, na minha profissão, não posso ignorar o valor exato da secção áurea, para a aplicar aos edifícios, ou não fosse essa relação tão agradável aos sentidos. E sei como, há muito tempo, o grande Fibonacci demonstrou a sua génese, de maneira tão compreensível. — Fez uma pausa a avaliar se Domenico queria responder.
Sim — assentiu o frade —, partindo dos dois primeiros números, somava-os para obter um terceiro — o 3 — e, para obter o quarto número da sequência, somava os dois anteriores e obtinha o 5. — O frade aproveitava para ilustrar o seu pupilo. — E assim sucessivamente. Obtinha uma sequência que começava por 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. Parece uma brincadeira para obter o interesse de meninos na aritmética, mas a divisão de um número pelo anterior dá o valor da secção áurea ou divina, em que o valor mais pequeno — 5 pés da secção de uma parede, por exemplo —, está para a secção maior — 8 pés —, como esta está para a largura total da parede.
O grupo afastava-se do bulício que envolvia a igreja e dirigia-se para o Duomo, através das ruas estreitas bordejadas de vendas, tabernas e oficinas de artífices.
Ora, essa sequência levanta-me um problema — continuou Tommaso. — Tenho uma igreja para projetar para o meu senhor. As dimensões relativas das fachadas estão decididas. Mas os tamanhos não são tudo. Os elementos que as integram, pela sua forte individualidade, ganham uma força que é preciso ponderar. A fachada lateral, por exemplo, vai ter uma série de arcos monumentais a mascarar a parede da nave. A linha horizontal, que os capitéis das colunas geram, divide a fachada de tal modo que a distância do chão ao topo dos capitéis é exatamente 1,618 vezes maior que do topo dos capitéis à linha do telhado. Está, portanto, de acordo com a secção de ouro: a distância mais estreita está para a mais larga, como esta está para o total, do chão ao telhado. — Parou novamente, desta vez para respirar.
Havia alguma tensão na cidade, porque Lourenço, o magnífico, o patriarca da família mais poderosa de Florença, estava doente e Savonarola, o prior de S. Marcos, não cessava de clamar contra o luxo e o paganismo da sua corte.
Então, o que vos preocupa? — perguntou o frade.
O número de arcos que devo projetar. A relação dourada é obtida com números inteiros. Se ponho oito arcos no lado, deveria pôr cinco portas na fachada principal, o que é muito. Para pôr três portas, deveria pôr só cinco arcos, para respeitar a sequência de Fibonacci, mas ficariam demasiado largos. — Agora o sobrolho de Tommaso mostrava-se carregado de preocupação.
Ponde sete arcos no lado.
Tommaso parou e olhou diretamente para Fra Domenico, tentando descortinar algum sorriso. Mas o rosto do frade estava compenetrado.
Mas 7 não faz parte da sequência!
Não faz da de Fibonacci, mas faz da do Senhor. Há milhares de sequências. Quaisquer dois números a que aplicardes essa regra da soma sucessiva, dá sempre o mesmo valor de 1,618, a partir, aí, da décima soma. Todas apontam para esse número sagrado, mas a sequência 1, 3, 4, 7, 11, etc. faz parte das Escrituras. Há 1 só Deus, em 3 pessoas distintas, a cruz tem 4 braços, as virtudes são 7, os apóstolos fiéis são 11.
Meu irmão, a sequência 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. está em toda a parte: no crescimento das plantas e dos animais, no corpo humano. Sabeis que a relação entre a falange e a falanginha é dourada, assim como a relação entre esta e a falangeta?
Sim, sei, Deus fala por muitas vias.
Passavam agora por S. Lourenço, a igreja da família Médici. O templo estava cheio e cá fora havia uma pequena multidão a conversar em grupos. O governante estava muito mal, dizia-se.
Há muito tempo que os Homens se aperceberam dessa relação, sob a qual as formas transmitem um aspeto completo, perfeito — prosseguiu Tommaso. — Pitágoras descobriu-a no seu pentagrama, Vitrúvio aplicou-a aos edifícios dos Romanos, Leonardo encontrou-a no corpo humano. O nosso Piero della Francesca é exímio a aplicá-la nas suas pinturas. Por isso, elas nos parecem tão perfeitamente equilibradas. Conheceriam estes homens a sequência desses vossos números?
Meus, não! Mas estou certo que um dia alguém lhes dará o nome de um sábio.
Custa-me muito aceitar que possa ser perfeita uma sequência que não tem o 2, o número do casal, a base da sociedade dos Homens.
Pode ter, se quiserdes. Tem o seu lugar de direito, mesmo na origem, antes do 1.
Tommaso olhou para cima, pensativo. Via-se que ficara impressionado.
Antes do 1?! Sabeis o que pensa o vosso prior sobre estes assuntos?
A crítica dele não atinge especificamente questões estéticas, mas não vê com bons olhos a aproximação cada vez maior que a corte e os artistas, que para ela trabalham, vão fazendo aos textos pagãos dos antigos e à sua licenciosidade.
Dizei-me, então, Fra Domenico, sete arcos na lateral era uma boa solução, mas como ficaria a frontaria? Não pode ficar com quatro portas, precisa de uma central.
Como bem dissestes, a individualidade dos elementos é um fator muito forte de visibilidade. Mantende a simetria das três portas, mas fazei sobressair elementos que as enquadrem, colunas volumosas, por exemplo. Reparai que seriam quatro colunas — o 4 de que precisais.
Interessante, irmão Domenico! — Parou, pensativo. Os seus olhos baixos moviam-se à esquerda e à direita. — Tenho que alterar o projeto. Acho que já sei como vou fazer.
Estavam a chegar a Santa Maria dei Fiore. Já se ouvia a vozearia habitual. De repente, da esquerda, do palácio Médici, elevaram-se gritos, vários, intensos, angustiados:
Morreu o senhor Lourenço! Morreu o senhor Lourenço! Deus tenha piedade de nós!
O grupo de Tommaso da Fiesole olhou-se inquieto. Depois, despediram-se rapidamente:
Adeus, meu irmão. O vosso conselho é precioso; mas não sei se poderá ser concretizado, com os tempos que se avizinham. Temo que o filho de Lourenço não consiga resistir a Savonarola.
Aqui para nós, senhor Tommaso, até eu! Que Deus vos acompanhe!

Joaquim Bispo

Imagem: O Homem Vitruviano e a Série de Fibonacci.


(Este conto foi publicado no número 35 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2013.) 
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10/12/2017

Com a Melhor das Intenções


— Eh, pá, não tenho dúvidas; é um desses mails moralistas a puxar ao sentimento, mas mesmo tocante — dizia Barbosa ao seu colega de secção, no regresso do almoço, pelos corredores da Judiciária. — A história é, mais ou menos, assim: na Alemanha do século XV, havia uma família numerosa e pobre, cujo pai tinha de trabalhar dezoito horas diárias nas minas de carvão para alimentar tanta gente. Dois dos filhos queriam ser artistas, mas como? Combinaram que um trabalharia nas minas, para pagar os estudos de pintura do outro, e depois trocariam. Assim fizeram. No regresso da academia, o primeiro, já formado, quis honrar o combinado, mas o irmão disse que era demasiado tarde; que os quatro anos de trabalho nas minas lhe tinham destruído as mãos para a pintura. Então, o pintor desenhou as mãos calosas do irmão, como homenagem. Aí, o mail apresenta o desenho realista de umas mãos todas cheias de rugosidades.
Manda-me isso — concluiu Magalhães, interessado. — Sempre quero ver se é melhor que os poucos que leio. A maioria, nem abro, quando percebo que é pieguice.

Pouco depois, o inspetor Magalhães fechava a página do eBay, onde, de manhã, estivera a pesquisar leilões de azulejos portugueses, e leu o texto do extenso e-mail que emocionara Barbosa, e que vinha acompanhado de umas mãos-postas desenhadas por Durer. Terminava com uma máxima: «quando você se sentir demasiado orgulhoso do que faz e muito seguro de si mesmo, lembre-se de que, na vida, ninguém triunfa sozinho!»
Uou! É potente! Não sabia que o Durer era tão pobre.
Esta máxima final parece feita de propósito para nós, não achas?
Mas, sabes — prosseguiu Magalhães, cofiando a pera — há aqui qualquer coisa que não bate certo. A história puxa muito ao choradinho. Há muita miseriazinha, muita entreajuda cristã, uma grande lição de moral no fim... E as mãos não me parecem as manápulas robustas de dedos grossos de quem trabalhasse numa mina. Os dedos são tão compridos e esguios como os de um desocupado.
Tens razão! Vamos ver de onde é que isto vem.
Olha, “Durer mãos” no Google dá-me vinte mil resultados. É muito.
Com a primeira frase dá novecentos. Isto está bem espalhado!
O melhor é procurar na Wikipédia — racionalizava Magalhães.
Está aqui um site em que o pai de família trabalha dezoito horas, mas no ofício de ourives. E tem dezoito filhos. Caramba!
E tem razão. A Wiki diz que o pai de Durer teve dezoito filhos e era ourives.
Escuta este: «Após uma demorada e memorável refeição, recheada de música e alegria, Albrecht ergueu-se do seu lugar de honra» — tal, tal… — «“agora, Albert, meu bendito irmão, agora é a tua vez. Agora podes ir para Nuremberg realizar o teu sonho, e eu cuidarei de ti.”» — recitava Barbosa, rindo. — Escuta a descrição do irmão: «Lágrimas corriam pela sua face pálida, enquanto agitava para ambos os lados a sua cabeça curvada, e em soluços repetia várias vezes “Não ... não ... não ... não.”»
Que lamechas, esse imaginativo aspirante a escritor! — respondeu Magalhães, e prosseguiu no relato da sua pesquisa: — Parece que a família Durer vivia em Nuremberga, desafogadamente, e não numa aldeia próxima e miseravelmente. Ah, cá está! O jovem Albrecht foi colocado aos quinze anos como aprendiz na oficina do gravador Michael Wolgemut, dado o seu gosto pelo desenho. Pois! — reconfortava-se Magalhães — do que me lembro das aulas de História da Arte medieval e renascentista, as artes plásticas não se aprendiam nas universidades, mas sim em oficinas de mestres do oficio. Eram artes menores, manuais.
Agora já não é o irmão Albert, mas um companheiro… Franz Knigstein. — zombava Barbosa de um dos sites por onde estava a navegar. — «Um companheiro seu, também muito pobre, o ajudou. Os dois iam à igreja, participavam da Ceia do Senhor, e o companheiro de Durer cultivava uma equilibrada vida de oração.» Este site puxa para a Igreja. Pudera! Faculdade teológica… «Um dia, Albrecht encontrou Franz de joelhos, com as suas mãos postas em atitude de oração, ásperas, no entanto, oferecidas a Deus em amoroso sacrifício, orando para que ele, Albrecht, tivesse pleno êxito na carreira de pintor.» — Ah, ah, ah! — «Prontamente, Durer desenhou o momento e produziu um símbolo do significado da oração. Desde então, a oração intercessora, simbolizada por aquela atitude faz-nos lembrar que a oração e a amizade correm juntas. A pessoa a Quem oramos teve Suas mãos atravessadas pelos cravos em nosso favor.»
Para com isso, Barbosa!
«Mãos tortas e calejadas, de pele ressecada, mas apontando para o céu, em atitude de súplica.» — descobria Barbosa.
Para com essas baboseiras! Escuta, há aqui informação séria, apoiada em escritos dele. «Durer elaborava infindáveis estudos de mãos, cabeças, objetos domésticos, plantas e animais: “O mínimo detalhe deve ser realizado o mais habilmente possível”, dizia, “nem as menores rugas e pregas devem ser omitidas.”»
Só mais este — deliciava-se Barbosa. — «Eles trabalhavam juntos numa oficina de escultura em madeira; um deles fez as malas, se despediu e foi para Viena/Áustria; o outro começou a trabalhar numa ferraria. Não demorou muito, as mãos finas e sensíveis se tornaram grossas e cheias de calos.»
Gaita, que esse pessoal não se limita a copiar. Quantas versões já encontraste?
Sei lá! «E cuidou do amigo, que não precisou mais trabalhar na ferraria.
Esta é uma história de quatro mãos, de dois amigos que oravam um pelo outro, e de um artista reconhecido graças a uma forte amizade. “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente. Ame os outros como você ama a você mesmo.”» — Colégio evangélico.
Há gente que não se importa de inventar e deturpar tudo para puxar a brasa à sua sardinha. Sacanas de falsários! Neste caso, fanáticos com as melhores intenções catequéticas.
«1490». «Os dois amigos viviam na mesma pensão». «Não, eu sou mais velho e já tenho emprego no restaurante.», dizia o amigo. Já viste estes, Magalhães?: restaurante! — ria-se Barbosa, virando o nariz avantajado para o colega da secção de Furto de obras de Arte, da Judiciária.
Diz aqui que as mãos foram desenhadas em 1508, como desenho preparatório da figura de um apóstolo para um altar.
«Suas mãos rígidas, endurecidas, articulações grossas e dedos torcidos pela labuta diária durante tanto tempo, impediam o suave manejo dos pincéis.» — continuava Barbosa, imparável. — Mas olha, este site tem comentários. Ouve o que diz quem comenta estas balelas: «A beleza das mãos calejadas de Durer toca-me profundamente a alma. São mãos que trabalharam por amor e com abnegação por toda uma vida. São mãos que carregaram peso, tocaram muitas vezes a água...» Água?; onde é que esta viu a água!? Outra: «Essas são, sem dúvida, “mãos de sol”, mãos iluminadas de uma pessoa idem, que teve a humildade de se sacrificar em prol do irmão.»
Será que ninguém repara que não são mãos de trabalho? — irritava-se Magalhães, fazendo tremer as bochechas arredondadas. — São escuras porque têm as sombras todas marcadas e são rugosas como as mãos de qualquer pessoa, se forem desenhadas meticulosamente.
Só encontrei um a falar em «dedos emagrecidos». Ah! Finalmente o comentário de alguém que agarra a tarefa de desmistificar a trapaça: «Gostaria de informar que li diversas biografias do pintor renascentista alemão Albrecht Durer, escritas por estudiosos como Moriz Thausing, Erwin Panofsky, Ernst Rebel, Matthias Mende, entre outros, e em nenhum deles encontrei qualquer menção aos fatos citados.» Temos uma justiceira, Magalhães — alegrou-se Barbosa, batendo palmas. — É uma tal Constanze de Curitiba. Grande mulher! Ou será homem? «O pai de Albrecht Durer, assim como seu avô, era ourives de profissão, uma das profissões mais reconhecidas na Idade Média. Húngaro de nascimento, mudou-se para a cidade de Nuremberg, onde mais tarde casaria com Barbara, com quem teve 18 filhos. Desses, apenas 3 sobreviveram, o próprio Albrecht Durer (1471-1528), Endres (1484-1555) e Hans (1490- ?), este também artista. Quando Albrecht Durer tinha 4 anos de idade, seu pai, já um renomado ourives, comprou sua casa própria em Nuremberg, onde o artista cresceu e viveu durante 30 anos. Como fonte destas informações os autores citam uma “Crônica Familiar”, espécie de diário que Albrecht Durer manteve durante sua vida. O quadro citado, “Mãos que Oram” — “Betende Hände” — foi desenhado a pincel em 1508, sobre papel azul, e trata de um esboço/estudo de mãos para uma figura de apóstolo para o painel central de um altar encomendado por Jakob Heller para a igreja dominicana em Frankfurt. O painel foi destruído num incêndio por volta de 1729, mas cerca de 20 esboços preliminares ficaram preservados, dentre eles, este citado tornou-se um dos quadros mais famosos de Albrecht Durer. Trata-se, certamente, de uma brincadeira que circula livremente pela Internet, sem o cuidado de verificar sua autenticidade.»
É isso mesmo! — entusiasmou-se Magalhães. — Pesquisei «altar Heller», e olha o que descobri. Chega aqui!
Barbosa aproximou-se da mesa de trabalho do amigo e ambos observaram, reconfortados, a imagem de um grande retábulo em cujo painel central estava pintado um conjunto de apóstolos assistindo à ascensão da Virgem, um dos quais tinha as mãos postas tal qual as do esboço que os tinha intrigado na última hora e meia.
Datado de 1508. Nesta altura tinha Durer… 37 anos — calculava Magalhães.
Mas, o altar não tinha ardido?
Diz aqui que é uma cópia feita por um outro pintor, em 1614.
Sabes o que eu senti? Um grande repúdio pela tacanhez desta gente para quem umas mãos, só por estarem pintadas em escuro, têm de estar encardidas de carvão, e por estarem minuciosamente desenhadas, com todos os volumes, todas as rugas, têm de estar calejadas e deformadas. E uma grande indignação por utilizarem a mentira e a falsificação para atingirem o coração crédulo das pessoas. Por outro lado, fiquei muito agradado que tivesse havido alguém a dar-se ao trabalho de esclarecer estes ataques à verdade histórica. Se calhar, devia haver uma entidade, uma organização não-governamental, engajada com a divulgação do conhecimento, que tomasse por missão desmascarar esta gente que espalha a aldrabice pela Internet, como quem espalha o vírus duma doença epidémica.
Vamos à biblioteca, que quero tirar isto bem a limpo.
Pouco depois, confirmavam quase tudo o que «a justiceira» dissera. E ficaram a saber, também, que o desenho das mãos postas está no museu Galeria Albertina, em Viena.
Mais um caso resolvido — gracejou Magalhães. — Vamos lanchar?
Antes que o parceiro pudesse responder, tocou o telefone. Era o inspetor-chefe a distribuir serviço: «Roubaram mais um painel de azulejos do século XVII, num palacete do Lumiar. Passem aqui a buscar a documentação».

Joaquim Bispo

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Imagem: Albrecht Dürer, Mãos em Oração [também conhecido como Estudo das Mãos de um Apóstolo], Desenho [realce de branco e tinta negra sobre papel azul], 29.1 x 19.7 cm, c. 1508.
Galeria Albertina, Viena.

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10/06/2016

O Messias do Ocidente


Assim que chegou a Tomar, João de Castilho procurou mestre Álvaro Rodrigues para conhecer o estado das obras que fora incumbido de finalizar, ainda antes de conhecer os alojamentos que lhe tinham sido atribuídos. Encarregou um dos homens da sua companha de tratar dessa parte logística. A viagem a cavalo fora cansativa, mas, assim que avistou o volume do castelo, foi tomado de grande curiosidade, dado o que sabia e o que ouvira dizer sobre o complexo religioso que crescia naquela envolvência militar. Foi encontrar mestre Álvaro a supervisionar os trabalhos no estaleiro da pedra, envolvido no ruído cadenciado dos martelos sobre os escopros. Este guiou-o pelos meandros da obra arquitetónica em execução:
Era aqui que mestre Diogo de Arruda se preparava para edificar o portal sul da igreja, mas, como sabeis, ele foi chamado, há uns meses, para uma campanha de obras em Safim e outras praças em Marrocos, e vós fareis como entenderdes, ou as ordens que tiverdes — explicava mestre Álvaro, avançando depois até aos andaimes instalados na charola. — Esta parte está quase acabada; só falta alguma estatuária, que está a ser talhada pelo vosso compatriota mestre Fernão Muñoz, e aplicar as imponentes tábuas já pintadas pela companha de mestre Jorge Afonso — continuava o guia, apontando os inúmeros nichos vazios e os trechos de parede entre as janelas góticas.
João de Castilho passava os olhos pelas alturas vertiginosas da capela-mor, tentanto imaginar o que mestre Álvaro lhe dizia, mas o seu assombro vinha-lhe de, enfim, conhecer no local a inusitada planta do antigo oratório.
Que extraordinário desenho, ao mesmo tempo austero e de subtil apelo à elevação espiritual! Um autêntico “eixo do mundo”.
Sim, esta parte foi construída pelos primitivos cavaleiros Templários, há mais de três séculos, inspirando-se no presumível templo de Salomão, que alguns viram em Jerusalém. Então, o templo era só este espaço poligonal de dezasseis lados, sustentado por estas oito colunas centrais. Entretanto, o espólio dos Templários passou para a ordem de Cristo, de que é Mestre o próprio senhor rei D. Manuel. Mestre Diogo foi incumbido de o rasgar a Ocidente para acrescentar uma nave, como vedes, e esta parte é agora “apenas” a abside.
A seguir, visitaram a nova sacristia de planta quadrada dupla, que João de Castilho devia abobadar. Mestre Álvaro deixou a maior surpresa para o fim. Quando, no exterior, se postaram frente à janela da sacristia, no local onde viria a ser implantado o claustro de santa Bárbara, o novo arquiteto parou um momento, depois sentou-se numa das pedras da obra e quedou-se a contemplar e a tentar compreender os inúmeros ornamentos que a envolviam num emaranhado pétreo.
Que dizeis? — saboreava o cicerone.
Mestre João nada dizia.
Esta é a parte em que mestre Diogo mais se transcendeu — continuou Álvaro Rodrigues. — Todos estes motivos marítimos e vegetalistas são de tais criatividade e beleza que, acredito, farão que se fale por muitos anos do seu arquiteto e do rei que os encomendou.
Entendo todas estas cruzes de Cristo — disse finalmente o novo arquiteto — afinal este é um convento da Ordem, mas porquê todas aquelas esferas armilares?
Esqueço-me que estais em Portugal há pouco tempo — refletiu o inquirido, que tinha ficado a tomar conta das obras até à chegada do novo dirigente. — A esfera enfaixada pelos círculos principais é um símbolo geográfico da bola do mundo e um dos emblemas do rei. Esse e o escudo real são reproduzidos exaustivamente em todas as obras de arte, quer de cantaria, pintura, iluminura ou mesmo estatuária. Os Portugueses andam pelas sete partidas do mundo, de tal jeito e proveito que D. Manuel se intitula “Pela graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'aquém e d'além-mar em África, senhor da Guiné e da conquista da navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. As esferas estão lá para lembrar, em imagem, esse estatuto de rei do mundo.
Bem, Espanha começa a avançar por toda a América… — racionalizava João de Castilho.
E Portugal, pelo Brasil, essa fatia tão grande que ainda não se lhe viu o fim. Há vinte anos, em Tordesilhas, D. João II soube negociar. Mas, a riqueza está a Oriente. Quase que chega aqui o cheiro da pimenta. O nosso rei D. Manuel está exultante. E rico. Por isso lança tantas obras. Chamam-lhe “o venturoso”, porque tudo lhe corre bem. Há duas décadas, não suspeitava que pudesse vir a ser rei — era o nono na linha de sucessão. Caprichosamente, morreram sete desses candidatos. D. Manuel é aclamado rei, sem esperar. No início do seu reinado, é descoberta a passagem a sul para a Índia. E o Brasil. Sente-se predestinado. Vê no próprio nome — Emanuel, que em hebraico significa Deus connosco — uma indicação profética. A esfera já fazia parte da bandeira da família. Sphera Mundi tem sido transcrito em muitos documentos como Spera Mundi, isto é, a Esperança do Mundo. Quem sabe se não será ele o Messias que, unindo-se ao rei cristão da Etiópia — o Preste João — inverterá o avanço muçulmano no mundo, reconquistando Jerusalém e derrotando os Mamelucos do Egito!
Dizeis que há um esforço intencional de realçar alguns símbolos de modo a servirem um determinado interesse real?
O que tem sido ventura para D. Manuel também tem aspetos problemáticos. O certo é que a nobreza habituou-se a vê-lo como “apenas” o Duque de Beja, e não como El-rei. D. Manuel precisa de algumas ajudas de legitimação, por isso alguma desta retórica imagética, que vale mais que muitas proclamações. Toda a obra de aparato é um manifesto da grandiosidade do soberano e do estado. Se, além disso, o rei for mostrado em figura, ou em símbolo, em circunstâncias nobilitantes, maior grandeza adquire aos olhos dos súbditos e dos outros soberanos. Ele ainda alimenta a esperança de vir a ser, também, rei das Espanhas. E, ouvi dizer que se prepara uma embaixada ao Papa que leva um elefante indiano, dois leopardos e outros animais exóticos.
Noto que toda a ornamentação vegetalista como que nasce de robustas raízes que saem das costas de um homem ali na base do janelão. É Jessé? — perguntou incrédulo João de Castilho, que conhecia as iconografias comuns usadas por pintores e escultores, mas não esperava encontrar o pai mítico do rei David naquele contexto.
Sim; mestre Diogo disse-me que o velho representa Jessé. Segundo S. Mateus, como bem sabeis, essa genealogia desemboca em Cristo, após vinte e oito gerações. Aqui, vê-se que do seu dorso nascem vergônteas, que após várias circunvoluções desabrocham em esferas armilares, escudos reais e cruzes de Cristo. Não se pode ser mais incisivo na afirmação de predestinação, ainda por cima apoiada na Bíblia.
Realmente!
D. Manuel tem também realçado e feito representar o milagre de Ourique em que o nosso rei fundador teve uma visão da cruz de Cristo, onde se lia Com este signo vencerás — o mesmo que viu Constantino, o imperador romano que oficializou o cristianismo. Liga-se, assim, o rei fundador da nação portuguesa, com o imperador “fundador” do cristianismo, na pessoa de Emanuel das profecias, que é a cabeça da ordem de Cristo, Cristo que virá a ser o senhor do mundo. Ele pretende ser visto como a junção do poder temporal e do poder espiritual, uma sobreposição de César e Salomão. E Esperança do Mundo. Vários pintores o têm inserido em cenas religiosas, como a Adoração dos Magos, sendo El-rei representado como um dos reis magos vindos do Oriente. E, na verdade, ele é um importante rei, cujo poder assenta, antes de mais, no Oriente.
João de Castilho e Álvaro Rodrigues, arquiteto e mestre, continuaram a conversar sobre a singular figura do rei a quem serviam, e sobre as extraordinárias referências cruzadas que o identificavam. Não era difícil imaginá-lo com uma aura de Messias. A confirmação local de todas as informações que trazia era muito inspiradora para o novo arquiteto, gerando ideias de exaltação arquitetónica, a aplicar no portal sul que se pretendia majestoso. Se D. Manuel queria ser o bastião da cristandade e o seu modelo, o seu engenho estaria ao serviço dessa aspiração, fazendo deste convento um digno templo de Salomão no Ocidente!

Joaquim Bispo

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Imagem: Diogo de Arruda, Janela manuelina do Convento de Cristo, Tomar, c. 15121513.

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(Este conto foi publicado no número 22 da revista literária virtual Samizdat, de novembro de 2009.)

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10/06/2015

O Retrato do Juiz



O pintor contemplava o retrato do juiz no cavalete e os seus olhos teimavam em fitar o olhar incisivo do retratado, muito firme, muito intenso. Parecia vigiar-lhe cada movimento. Era perturbador. O cliente já devia ter ido buscar o quadro, mas não havia maneira de aparecer. Júlio começava a ficar impaciente. Não que o dinheiro lhe fizesse muita falta, mas o olhar do retrato inquietava-o. Cada vez que o observava, parecia encontrar-lhe novos aspetos fisionómicos. Como se tivesse vida. Era, sem dúvida, das suas obras mais conseguidas.
Desde novo que, nas suas mãos, as telas se povoavam de figuras, umas cândidas, outras austeras, umas históricas, outras, que podíamos esperar encontrar na rua, representadas com uma naturalidade notável. Manobrava os pincéis com destreza, como se já tivesse muitos anos de prática. Quase sempre fazia as misturas das cores na paleta mas, em obras de maior arrebatamento, aplicava as cores puras diretamente na tela, em empastamentos de força cromática avassaladora.
Com o tempo, percebeu que o retrato próprio era das imagens que as pessoas mais prezavam e passou a especializar-se nesse género, adotando Columbano como referência. Ao seu “atelier” da rua de S. Paulo, em Lisboa, acudiam militares, magistrados, catedráticos, políticos. Cavalheiros graves em fundo escuro e damas vistosas em “toilettes” requintadas nasciam nas suas telas. Os olhares eram sempre inteligentes, a pose sempre nobre e elegante.
Ultimamente, a clientela já não abundava mas Júlio, de sessenta e três anos escorreitos, gostava do que fazia e tencionava continuar a trabalhar indefinidamente.
O último cliente fora este juiz. Tinha querido pagar a totalidade do trabalho, mas Júlio aceitara apenas metade; o resto seria pago contra a entrega da obra. Era um cliente fácil. Chegava sempre pontualmente às nove da manhã, no seu fato preto impecável, e mantinha-se firme na pose escolhida, durante as duas horas da sessão. Era de poucas falas, mesmo no pequeno intervalo que faziam a meio.
O rosto, que era a parte mais delicada e a que dava mais trabalho, foi nascendo, mancha a mancha nas carnações da face, pincelada a pincelada nos fartos cabelos grisalhos e nas sobrancelhas rectas e espessas. Ao fim de duas semanas, os olhos vivos e inquisidores do juiz acenderam-se na tela como se fossem reais. Pouco depois, Júlio disse ao cliente que só faltava rematar os fundos e que podia ir buscar o retrato daí a uns dias.
Tinha-se passado mês e meio e o juiz não aparecia.

O retrato estava muito realista. Júlio olhava-o e não conseguia evitar uma inquietação difusa. Começava a tornar-se uma obsessão.
Não ficara, do juiz, com mais que o nome e a morada, rabiscados num papel. Pensou em telefonar-lhe, mas das Informações disseram-lhe que aquela morada não tinha telefone fixo. Resolveu procurar o cliente, pessoalmente. Apanhou o comboio para Carcavelos e, lá chegado, foi perguntando até encontrar a casa do juiz. O que descobriu não podia ser mais perturbador.
Realmente, ali era a casa do juiz, mas ele não estava. Nem ele nem ninguém. Perguntando à vizinhança, soube que a casa estava abandonada desde que o juiz morrera, havia quinze anos.
Júlio deixou-se cair num banco de jardim e ali ficou, sem tomar conta das horas, mergulhado num assombro de que não sabia como sair. Se havia coisa com que não sabia lidar era com o sobrenatural.

Desde então que Júlio não pinta. No primeiro mês após a traumática revelação, só voltou ao “atelier” uma única vez. Tornar a encarar aquele olhar foi aterrador. Podia jurar que o juiz o olhava de cenho mais carregado, num misto de tensão e recriminação. Voltou a face da tela para a parede, mas Júlio continuou a pressentir a intensidade do olhar através dela. Sentiu medo. Saiu rapidamente, ofegante, sem saber o que fazer, sem vontade de voltar.
Em casa pensou que, se calhar, estava na altura de parar de pintar. Foi falar com um amigo, vizinho do “atelier”, que há tempos se propusera comprar-lho para alargar a sua loja de aprestos marítimos. Fizeram negócio, depois de o amigo aceitar ficar também com o recheio.
Júlio recolheu-se à sua pequena casa de Montemor, sobranceira ao vale de Loures, disposto a desanuviar o espírito, mas não o tem conseguido. Passa as tardes na varanda, de olhar perdido no horizonte. Não consegue tirar da cabeça o olhar mau do juiz. Nem consegue entender que intuito teve ele, ao voltar do outro mundo e lhe encomendar o retrato.

Por um desses dias, na sua casa de Azeitão, Armando Magalhães levantava-se da mesa e improvisava um pequeno discurso para uma dúzia de familiares reunidos à volta do almoço dominical:
Meus queridos, é com agrado e enorme orgulho que celebro convosco a próxima expansão da nossa pequena empresa. Foi um negócio bem sucedido de que todos saíram a ganhar, como gosto que sejam todos os nossos negócios. Ganhámos nós e ganhou o Sr. Júlio, que agora pode gozar uma bem merecida reforma. Era um grande artista. Vejam como ele captou o olhar austero do tio ― apontava Armando o quadro na parede. ― Aliás, quero fazer um agradecimento muito especial ao tio Jerónimo, pelo esforço que fez de ir todas as manhãs a Lisboa e assumir tão bem aquela personagem. Sem a sua ajuda, talvez não tivéssemos conseguido o que há tanto tempo pretendíamos: a expansão do nosso armazém de vendas e do nosso negócio. Obrigado tio! E faço questão, é claro, que fique com o quadro. Bem o merece! De qualquer modo, estamos todos de parabéns. Por isso, peço que me acompanhem num brinde.
Armando levantou um copo e pronunciou a fórmula habitual:
A família é a nossa fortaleza!
Todos se levantaram, de copo na mão, respondendo em coro:
À família!
O brinde terminou com uma longa salva de palmas, que comunicou, ao espírito de cada um, o enternecimento de quem se sabe participante no bom sucesso de um projeto comum.

Joaquim Bispo

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(Este conto obteve um 3º prémio ex-aequo de um concurso de contos promovido pelo site Ora, vejamos…, em 2007, integrando a respetiva coletânea, e foi publicado no número 19 da revista literária virtual Samizdat, de agosto de 2009)

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Imagem:
Columbano, Retrato de Abel Botelho [escritor], 1897
Lisboa, Museu do Chiado (Museu Nacional de Arte Contemporânea)

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10/05/2015

A Luz de Delft



O que vou contar começou na semana após o Natal, ao chegar a casa, cerca das cinco da tarde. Depois de me pôr à vontade, preparei um copo de leite-com-chocolate morno, juntei um pacote de bolachas recheadas e fui lanchar para a sala, enquanto via televisão.
Foi já no fim do lanche que o vi: o carteiro de Pablo Neruda, como eu me lembrava dele no filme, estava mesmo atrás da rapariga que lê uma carta junto a uma janela aberta, na reprodução pintada de Vermeer, que tenho por cima da escrivaninha. Primeiro, fiquei estático, sem saber bem o que pensar. Depois, observei as bolachas e cheirei o leite-com-chocolate, mas pareceram-me em bom estado!
Levantei-me e mirei-o de perto. Estava com aquele ar ingénuo e satisfeito de quem finalmente sabe o que são metáforas. E parecia bem implantado na camada cromática, como se tivesse sido pintado ao mesmo tempo que a mulher. Esquecendo o anacronismo do vestuário, não ficava mal de todo no quadro. Aparentemente, tinha sido ele a trazer a carta à jovem holandesa de Vermeer.
Bem”, pensei, “é melhor não dizer nada a ninguém, sem dormir sobre o assunto”. E foi isso que fiz no sofá, a meio de um diagnóstico delicado do Dr. House.
Quando acordei, a primeira coisa que fiz foi olhar para o quadro. O carteiro já lá não estava. Fiquei aborrecido. Frustrara-se a hipótese de mostrar o fenómeno aos amigos. Logo a seguir, fiquei preocupado. O que quer que tivesse perturbado a minha perceção devia estar em mim e podia ser um grave problema de saúde.
Resolvi fazer umas pesquisas na Net sobre alterações de perceção. Um site francês advertia que níveis elevados de açúcar no sangue podem provocar alucinações. Nessa noite, dormi mal.
No dia seguinte, via-se uma alcoviteira de Murillo assomando à janela, a falar com a rapariga da carta. E nos outros dias sucederam-se outras imagens de menor dimensão: um jarrão azul com flores, de Cézanne, junto à fruteira; uma joia a imitar Lalique no cabelo da jovem; o gato da Olímpia de Manet, sobre a tapeçaria; eu sei lá! Isto, apesar de eu ter começado a conter-me nas sobremesas e a lanchar só fruta fresca.
Entretanto, fui ao médico. Impôs-me uma dieta rigorosa sem açúcares e receitou-me uns comprimidos de lítio. Disse que devo ter uma predisposição genética visionária que foi potenciada pelos excessos da quadra natalícia. Para eliminar todos os fatores desencadeantes, aconselhou-me ainda a parar com quaisquer leituras sobre arte durante uns tempos. Certo é que, passadas umas semanas, deixei de ver imagens estranhas a perturbar o recolhimento da holandesa de Vermeer na leitura da sua carta.
Quando já dava por seguro que o meu problema estava sanado, certa manhã, dei pela falta da própria mulher do quadro. Calculam como fiquei! O coração acelerou-se e quase entrei em pânico. Se antes era açúcar, o que seria agora?!
Telefonei logo para o meu médico, que também se mostrou alarmado e me disse que eu, provavelmente, teria abusado da dieta. Mandou-me tomar imediatamente um pacote de açúcar dissolvido em água e que fosse ao consultório dele no dia seguinte. Tomei o que ele mandou e estaquei pensativo a olhar para o quadro deserto. Que intrigante a situação!
Então, reparei nuns pequenos vultos refletidos na vidraça do quadro, agora noutra posição. Eram-me familiares. Apesar de minúsculos, não deixavam margem para dúvidas – eram as silhuetas da holandesa desaparecida e do carteiro de Pablo Neruda, passeando de braço dado numa praça de Delft!
Instantaneamente, entendi todo o percurso de aproximação e sedução: o primeiro contacto, o recado influente, as flores, a prenda…
No dia seguinte, já não fui ao médico. Nunca mais lá voltei. Percebi que o amor é mais forte que quaisquer dietas ou comprimidos. E encontra sempre o seu caminho.

Joaquim Bispo

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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77


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(Este conto foi publicado no número 16 da revista literária virtual Samizdat, de maio de 2009)

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